Com passagens pela Folha de S.Paulo, Agência Folha, BBC e CNN, o jornalista Lourival Sant´Anna, atualmente na função de repórter especial do Estado de S. Paulo – onde já foi editorialista, redator da Editoria Internacional e editor-chefe –, esteve em Manaus na sexta-feira (16/01) e participou do projeto ‘Conversas com a FAS’, da Fundação Amazônia Sustentável.
Autor do livro Viagem ao mundo dos Taleban, no qual tenta descobrir uma justificativa para os ataques ao World Trade Center, o jornalista goiano veio à capital amazonense para palestrar sobre sua mais recente obra: O Destino do Jornal. No livro, busca uma reflexão sobre o que os jornais impressos podem e devem fazer para sobreviver às inovações tecnológicas e, sobretudo, à internet.
Após o evento, que contou com a presença de vários jornalistas locais, o repórter especial do Estado de S. Paulo conversou com o Portal Amazônia sobre o futuro dos jornais impressos, o gênero reportagem e suas experiências como correspondente em áreas de conflito, como Líbano, Faixa de Gaza e, mais recentemente, na Geórgia.
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Apesar dos avanços tecnológicos, que têm mudado os rumos do jornalismo, muitos periódicos insistem em usar velhas fórmulas para a notícia, dedicando-se pouco ao gênero reportagem. O que você tem a dizer hoje sobre esse estilo?
Lourival Sant´Anna – A reportagem é a forma natural da narrativa. Ela é tão velha quanto o homem, quanto o ser humano. E tem um apelo muito forte exatamente por isso. Desde criança, a gente gosta de histórias porque a gente se identifica, se compara. A gente viaja junto com o narrador, a gente vive uma outra vida por meio da narrativa.
Então, isso tem um apelo muito grande e pode causar muito prazer. Os jornais podem fornecer ao leitor, a cada 24 horas, a compreensão dos fatos por meio da história narrada. Eu acho que aí está a chave para o jornal ter uma sobrevida e encontrar um espaço muito nobre no mercado.
Então você acha que os jornais devem sair do padrão tradicional?
L.S. – Sim. Eles devem abandonar a forma de dar a notícia sobre o que aconteceu ontem, simplesmente porque isso é uma coisa que todo mundo já sabe graças aos outros meios que existem. E ele deve fazer isso de forma a conciliar a narrativa, a análise, a interpretação, a contextualização, as pessoas que estão ao redor da história, as causas e as conseqüências. Eu acho que eles têm condições de fazer isso, desde que abram mão de querer dizer tudo o que aconteceu ontem. Isso é insano.
Publicar a matéria quando estiver pronta
Em seu site, você disponibiliza reportagens escritas desde 1990. Na maioria delas, você relata informações de bastidores. Como é para um jornalista, na função de enviado especial, trabalhar a relação entre o que está nos bastidores e a informação que seria tida como a mais objetiva no que diz respeito a uma região de conflito?
L.S. – Essa separação entre os detalhes e o que seria a notícia é falsa. Nós somos adestrados, principalmente no Brasil, embora isso aconteça em outros lugares, a acreditar que o contexto e os detalhes não são importantes. Como se a notícia fosse algo acabado, quase uma coisa meio divina, de outro mundo. Quando você lê uma notícia no jornal, parece que não aconteceu no nosso mundo porque o mundo vivido, o mundo que a gente conhece, é cheio de detalhes, tropeços.
Eu estou aqui conversando com você e estou vendo a cor da sua camisa, estou vendo que você tem barba, que é um cara jovem. Estou vendo que você está gravando com a mão direita, então provavelmente você é destro. E estou assimilando tudo isso. Isso compõe aqui a nossa história e esses detalhes são importantes. Você pode dar-lhes sentido numa reportagem.
No modelo tradicional, não há nada disso. Eu reproduziria a sua fala, mas o leitor não sabe como você é, e isso é muito triste e não é nada atraente. Assim, nós não estamos estimulando nossos leitores, que não são mais obrigados a nos ler. Antes, eles eram obrigados, mesmo não tendo prazer, já que não havia outra forma de saber o que aconteceu ontem. Agora, eles já sabem pelo celular, pela internet, pelo rádio, pela televisão… Então, não vão mais se sentir na obrigação de ler essa chatice que vemos hoje.
A tendência que você sugere é uma fusão entre o jornal e a revista?
L.S. – Sim. É uma revista diária. Soa pretensioso, mas temos que reorganizar nossas equipes não para produzir material todos os dias, mas fazer um revezamento, ficar trabalhando um, dois, três dias, o quanto for necessário até a matéria ficar pronta. Vamos parar de publicar matérias antes de estarem prontas.
Israel e palestinos desafiam a física
Agora vamos falar um pouco sobre sua experiência como enviado especial em áreas de conflito. Em agosto do ano passado, você esteve na Ossétia do Sul, assim como em outras oportunidades esteve em Gaza e no Iraque. Em quais desses locais você se viu diante de um perigo concreto?
L.S. – No Líbano, em 2006. Eu fiquei sob bombardeio e tive a sensação de que era uma formiguinha no sul do Líbano, com os aviões israelenses bombardeando a região. Passei a noite inteira ouvindo os aviões decolarem muito perto. E eles bombardearam a mesquita onde eu estava e tudo tremia. Realmente eu senti ali que não era nada.
Mais algum local?
L.S. – No ano passado, na Geórgia, passei um dia na Ossétia do Sul quando, em um mesmo dia, por três vezes tive um fuzil apontado pra mim. Fui preso pelo exército russo e interrogado. Essas foram as experiências mais marcantes.
Em seus relatos, parece haver uma receptividade melhor no caso de jornalistas brasileiros. Isso realmente procede?
L.S. – Procede. Os brasileiros não se metem no assunto dos outros. Talvez só na Bolívia e no Paraguai exista algum ressentimento com o Brasil, mas de maneira geral é muito mais difícil ser um repórter americano ou inglês do que brasileiro. O brasileiro é simpático. O problema e que às vezes a gente não tempo de dizer que é brasileiro (risos).
Os informes internacionais que vêm do conflito árabe-palestino são muito confusos. Pelas notícias, não se sabe as reais pretensões de cada grupo envolvido, como Hamas, Fatah, do Estado de Israel, dos Palestinos. Qual sua interpretação dos papéis desses grupos no conflito?
L.S. – Primeiro que eles estão desafiando a lei da Física. São dois povos querendo ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, não tem jeito. Israel oscila entre a força bruta e a tentativa de negociar. O Hamas tem uma agenda muito radical, muito apoiada pelo Irã, que procura ter um papel ali na região cada vez mais forte. O outro lado da liderança palestina, o Fatah, que é mais moderado, tem muita dificuldade de atuar porque é visto como traidor do povo palestino. Já o Hamas supostamente defende o interesse do povo palestino.
Não sou neutro, mas tento
E os EUA, com Obama?
L.S. – Tanto a vitória do Obama como a próxima eleição em Israel, no dia 10 de fevereiro, só fizeram catalisar a violência. A forma mais fácil de ganhar uma eleição em Israel é matar palestinos. Isso une a nação, une a pátria em torno de um inimigo em comum.
E como você vê a cobertura da imprensa nacional e internacional diante do conflito?
L.S. – É difícil generalizar. A gente tenta fazer a nossa parte, mas é difícil. O acesso a jornalistas na Faixa de Gaza está controlado, está praticamente fechado. Só jornalistas de agências internacionais estão tendo acesso. Você não vê o que acontece com seus próprios olhos, pois Israel controla muito o acesso à informação.
Um relato jornalístico é apenas um recorte da realidade, e não a realidade propriamente dita. E o que um jornalista precisa ter, no aspecto técnico e humano, para fazer um relato mais próximo possível da realidade?
L.S. – Humildade. E tem que gostar de ser jornalista. Se você é jornalista porque acredita em certas coisas, em política, em religião, acho que você não pode ser um bom jornalista. Você tem que se despir realmente o máximo possível, deve tentar pelo menos. Eu não acho que seja tão difícil quando você se dispõe a isso.
Você se torna mais cético e é difícil acreditar em certas coisas quando você vê o mundo real, o mundo complexo. É mais difícil ter uma visão unilateral. O bom repórter se concentra nas coisas do mundo lá fora e esquece um pouco de si mesmo, embora suas crenças estejam lá, e influenciando, é claro.
É importante ter consciência disso e lutar. Eu tenho minhas crenças, mas elas vão mudando de acordo com realidade. Vou abandonando minhas opiniões quanto mais reportagens eu faço. E acho que é isso que me estimula na verdade, ser desmentido pelos fatos. Isso me causa muito prazer intelectual. Aprender, descobrir que estava errado, que tinha um preconceito, me surpreender e depois surpreender o leitor. Acho que isso é jornalismo.
Se você quer defender uma bandeira, vai ser político. Para que ser repórter? Acho que isso está errado. Eu não gosto disso de jornalismo engajado, sou contra. Sei que não sou neutro e independente, mas tento.
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Para ler na íntegra as reportagens de Lourival Sant´Anna para o Estado de S. Paulo, visite o site do jornalista.
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Estudante de Jornalismo em Manaus (AM), repórter do Portal Amazônia e redator freelance