Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As lições de um repórter

Se existe um profissional de imprensa que se tornou exemplo para seus pares – sobretudo pelos que buscam a aventura da reportagem impressa –, esse profissional é Fernando Morais. Não bastasse sua perícia em farejar assuntos que viraram livro sob um texto primoroso e bem apurado – como A ilha, Olga, Chatô e Corações sujos –, Fernando Morais traz em sua biografia histórias saborosas que o situam na traiçoeira fronteira entre a lucidez e a insanidade, ou, para ser menos dramático, entre a convicção e a irresponsabilidade. Saborosas, obviamente, para o leitor que aprecia degustar o making of de uma investigação jornalística.


Doze dessas histórias estão reunidas no livro Cem quilos de ouro – e outras histórias de um repórter (328 p.), lançado no fiM do ano passado pela Companhia das Letras. Trata-se de uma compilação levada a termo pelo jovem jornalista Marcos Simieli, a pedido da editora, com a ajuda e a bênção de Fernando Morais. O livro estava inicialmente destinado à coleção Jornalismo Literário, mas… foi publicado como obra autônoma. Para o repórter que não possui a crença no ofício, a leitura é uma boa oportunidade para começar a tê-la. Para quem já a possui, um exercício para reafirmá-la.


Além das reportagens, o grande atrativo do livro são os comentários feitos pelo autor no início de cada matéria, sugestão do editor Luiz Schwarcz. Por meio dessas introduções, Fernando Morais contextualiza, com riqueza de detalhes e uma precisão de repórter zeloso, a origem de cada reportagem, em que jornal ou revista foi publicada, como era o Brasil da época, quais as implicações socioculturais da matéria, que personagens fizeram parte dela e que importância tinham, entre outros dados preciosos. Sobressai desses comentários a constatação de que sair às ruas à cata do que possa virar notícia pode ser encarado como um ato insensato, próprio de quem não têm amor pela vida e não pensará duas vezes em arriscar a pele por uma informação, por ínfima que seja.


Surpreendente diálogo


No fim da leitura, porém, triunfa impressão contrária. Ninguém mais apaixonado pela vida – e pelo ofício – do que o repórter. Apenas que ele não consegue conceber a vida sem a adrenalina de uma boa história fermentando na cabeça, pautado ou não. É o que se depreende do comentário de Ricardo Setti, amigo de mais de três décadas do repórter: "Fernando Morais tem sangue, nervos, vísceras e alma de repórter. Nas redações onde trabalhou, bastava vê-lo macambúzio, com cara de cachorro sem dono, para logo saber que estava momentaneamente sem alguma missão ‘na rua’ ".


Curiosamente, a reportagem que abre o livro, e que dá título a ele, apesar de contada com perícia, no conjunto não é a melhor (embora já circule a notícia de que um cineasta quer levá-la às telas). Se a intenção dos editores foi fisgar o leitor logo no início, o tiro poderia ter saído pela culatra. "Cem quilos de ouro" – a reportagem – fala do seqüestro do empresário Guilherme Affonso Ferreira, conhecido em seu meio como Willy, que passou cinco dias num cativeiro, em Salvador. Talvez a história, ocorrida no fim da década de 80, ainda que inclua todos os ingredientes dramáticos que envolvem um seqüestro, tenha perdido a força diante da enfiada de seqüestros e outras formas de violência urbana que habitou a mídia nos anos que se seguiram. Ainda assim, é um típico modelo de narrativa jornalística bem conduzida.


Mesmo os primeiros esboços de A ilha – que constituem a terceira reportagem – não se mostram tão interessantes quanto aparentam num primeiro momento, exceto pelo fato de serem o embrião do livro que tornaria Fernando Morais conhecido do grande público. Mas, como ocorre no livro todo, quando a matéria perde um pouco do viço, sobretudo pela diferença de contexto, é salva pelo comentário inicial do autor. Tais comentários, escritos com a vantagem da distância no tempo – tempo jornalístico, tempo histórico e tempo de vida do autor –, erigem-se numa baliza de jornalismo ético e responsável, uma revitalização da perseverança de que todo repórter deve se munir contra o cenário desanimador que o desafia diariamente. Ao escrever cada comentário, Fernando Morais pôde exumar episódios dos quais já nem se lembrava, rever conceitos, identificar os momentos em que agregou aprendizados que se consolidariam em sua formação. Enfim, lembrar e repensar sua trajetória.


Com exceção da primeira reportagem, as demais seguem uma seqüência cronológica. Isto talvez explique – talvez – por que o livro vai melhorando com o correr das páginas. O início desse ponto culminante é a sétima reportagem, uma reveladora entrevista com Frei Beto ("Confissões do frade"), feita em 1992. O leitor encontrará um sincero e surpreendente diálogo sobre política, jornalismo, sexo, drogas e revelações pouco conhecidas do religioso dominicano sobre os porões da ditadura.


Aulas magnas


A temperatura continua alta nas duas reportagens seguintes, ambas com Fernando Collor: "O Napoleão do Planalto" e "O solitário da Dinda". Não é difícil adivinhar o motivo da escolha dessas matérias: uma traz Collor no ápice do poder, ventilando o ar olímpico que acompanhamos na mídia; outra, o ex-presidente no auge da queda, remoendo ressentimentos e distribuindo nacos de seu ódio ainda fresco sob o calor do impeachment. Fernando Morais possui o condão de arrancar do entrevistado aquilo que o leitor quer saber. Suas descrições, minuciosas e precisas, denotam um repórter com a teleobjetiva da intuição sempre atenta e um senso de oportunidade apuradíssimo.


O livro fecha com matérias dignas de estudo em qualquer faculdade de Jornalismo. Em "Entre Kane e os malditos da beat generation", vemos o repórter combinar de forma magistral investigação cultural e serviço ao leitor. Pautado em 1996 pelo Jornal da Tarde para escrever uma matéria sobre o Hearst Castle, o castelo que o magnata da imprensa William Randolph Hearst mandara construir em San Simeon, na Califórnia, Fernando Morais acabou abrangendo, por extensão, o paraíso da beat generation americana Big Sur, que fica próximo do castelo de Hearst. Resultou um texto cult que mimetiza uma viagem pela Costa Oeste americana recheada de informações prosaicas mas essenciais para o turista, como total de quilômetros rodados, qualidade dos hotéis e restaurantes e endereços dos lugares citados na matéria.


Em "Ele mandou prender Pinochet", o repórter vai em busca do que se esconde por trás da imagem do jovem juiz espanhol Baltasar Garzón, que ficou conhecido na mídia mundial como o artífice do mandado de prisão contra o ex-ditador chileno Augusto Pinochet. Para chegar a Garzón, Fernando Morais teve pela frente obstáculos desanimadores: o juiz não gosta de jornalistas, era avesso a entrevistas e, por estar no epicentro de um julgamento que envolvia paixões extremadas, estava cercado por um espartano esquema de segurança. A matéria, publicada na revista Playboy em agosto de 1999, é um proficiente exemplo da pertinácia que um bom repórter deve trazer no embornal.


No fim, o que fica para o leitor é a sensação de ter participado de uma aventura em que fatos pitorescos e informações históricas surpreendentes interagem. E se esse leitor for um estudante de Jornalismo, terá tido diante de si aulas magnas de um ofício cada vez mais rarefeito nas redações atuais e que talvez traga em sua práxis a salvação do jornalismo contemporâneo: o ofício de repórter. Um ofício que Fernando Morais exerce com a maior competência.


Trechos


"Confissões do frade" – entrevista com Frei Betto publicada na revista Playboy em 1992:


E como é que você resolvia para fazer xixi, cocô, essas coisas?


Todo dia vinha uma laranja na comida, embalada em um saquinho plástico da firma que distribuía para a PM. Então eu fui colecionando aqueles saquinhos para urinar. Amarrava-os na grade da cela, que era pregada em uma porta de madeira, para que não se visse nada do outro lado. Eu amarrava ali os saquinhos cheios de urina e quando ia ao banheiro era um verdadeiro trabalho de chinês. Eu derramava todos os saquinhos no vaso, um por um, lavava e trazia de volta para a solitária para poder fazer xixi várias vezes por dia. E como não podia tomar banho, na única visita diária ao banheiro eu usava a água da pia e me lavava feito gato. Ali eu aprendi alguns segredos para sobreviver na solitária: primeiro, nunca dormir de dia. Segundo, nunca soltar a imaginação. Então como você retém a imaginação? Criando uma rotina intensa ao longo do dia.


Rotina como? Não há rigorosamente nada para se fazer dentro de uma solitária…


De manhã, eu dava aulas de Filosofia para classes imaginárias, andando de lá para cá, para mover o corpo e me cansar, falando alto. Do lado de fora os soldados acharam que eu tinha ficado louco mais cedo do que eles esperavam – quando na verdade eu estava justamente combatendo a loucura. Aos gritos eu recitava tudo que sabia de filosofia. (p. 196-7).


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"O solitário da Dinda" – entrevista com Fernando Collor publicada na revista Playboy em julho de 1995:


Apesar de ter se reconciliado com os irmãos, algumas feridas familiares parecem continuar abertas. É com visível desconforto que Collor fala do irmão Pedro. Quem perguntar por que não compareceu ao enterro dele, vai vê-lo incomodado, mexendo-se na cadeira, baixando os olhos:


– Ao enterro de minha mãe não compareci porque não havia tempo. Ela tinha que ser sepultada e eu não tinha como chegar a tempo. O do meu irmão? É preciso falar disso? Bem… Não fui porque os sinais que recebi eram de que minha presença não seria bem aceita. Para evitar constrangimentos, eu não podia estar lá, criar desconforto em um enterro.


Sinais vindos de quem?


– De minha cunhada Tereza, a viúva de Pedro.


E Collor não acha que podem ter causado mal-estar as fotos em que ele apareceu nos jornais, feliz, em férias, beijando a esposa, enquanto o irmão agonizava em um hospital, com câncer no cérebro? Não, ele não concorda com isso:


– Tentei uma aproximação durante a doença, mas senti que não seria bem recebido. Nem por ele nem por minha cunhada. O que pude fazer foi mandar rezar uma missa na Dinda pedindo por ele, quando estava doente. (p. 246)

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Editor na Editora Ática, jornalista e escritor