Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Muro caiu, mas a unificação não existe

‘`Nada além, nada além de uma ilusão.´ Essas palavras soavam como profecia e tocavam o coração de um utópico com 69 anos de idade. Era madrugada do dia 9 de novembro de 1989, uma quinta-feira. Camilo não conseguira dormir; dali a horas o Muro de Berlim, ou da Vergonha, iria ruir. O fim estava próximo. O eixo soviético, que sempre deu as regras do mundo comunista, estava em crise. Países como Romênia, Tchecoslováquia, Hungria, Bulgária e Polônia já se desfizeram dos seus regimes ditatoriais. Na União Soviética, Gorbachev, eleito em 1985, começara a implantar reformas na economia estagnada. Um dos últimos redutos dos revolucionários era o tal muro.

O partido está fragmentado, as ilusões perdidas. […] Na TV, Sérgio Chapellin chama o repórter Silo Bocanera, direto de Berlim, de onde começa a maior transmissão da história da TV. […] O primeiro guindaste se aproxima. Gente de todas as idades chega perto do muro, onde anos antes seria impossível chegar. Pessoas que foram separadas pelo ódio ideológico, por um muro de quatro metros de altura por 162 km de extensão, estão prestes a se reencontrar. Vai começar a cair. […] A primeira pancada. Cai a primeira viga. O povo, que até então só observava, corre e começa a arrancar pedaços do Muro da Vergonha como pode. Ao vivo na TV, em cores, o cinegrafista dá um close em dois homens, um com barba e o outro sem; um com uma foice o outro com um martelo. Contradição. Reflete Camilo […]’ (Trecho retirado do romance-reportagem No terreno da Fantasia – uma história do PCB/RN nos anos 1980, de Bruno Rebouças e Roberta Maia).

Uma vitrine do capitalismo

Dia 9 de novembro fez 20 anos da queda do Muro de Berlim, fato que concretizou a vitória do capitalismo sobre o socialismo real. Fato comemorado pelos países do ocidente, embora tenha causado tristeza na ala da esquerda pelo mundo. Todos os jornais do Brasil praticamente publicaram o fato em suas páginas. Umas boas reportagens, outras ruins coladas de agências internacionais. Todas alardeando e pegando depoimentos de pessoas separadas pelo ódio ideológico.

Verdade que sem o muro as coisas ficaram melhores e que antes morreram muitas pessoas nas tentativas de atravessar o Muro da Vergonha, como o ocidente costumava chamar. Está certo, também, que muitos que tentaram de forma legal, levaram não, ou conseguiram. Não é uma defesa, mas não podemos exagerar e manipular como fez toda a grande imprensa nesse dia tão especial para humanidade. Festas e comemorações marcaram os 20 anos da queda. Discurso ao pé dos restos do muro e insinuação da queda total em formato dominó fora realizado. Histórias marcantes e emocionantes contadas nas telas da televisão.

O fato deve ser comemorado e nunca esquecido. O muro foi construído pela Alemanha Oriental para o país da cidade capitalista ocidental. Berlim Ocidental foi transformada numa vitrine do capitalismo, onde os táxis eram Mercedes Benz. Tudo para manipular e corromper a realidade de um sistema ambíguo como o capital, que produz riquezas para mil e é alimentado pela miséria de milhões.

‘Salários iguais e pensões iguais’

O muro foi construído em 1961, tinha 300 torres de vigilância e 162 km de extensão. Muitos veículos de comunicação do RN publicaram, erroneamente, que seriam 155 km. Tinha 4,20m de altura, próximo ao portal de Brandemburgo, e em outras localidades era mais baixo. Estima-se que morreram 80 pessoas, identificadas; 112 ficaram feridas e milhares foram presas tentando atravessá-lo. Com a queda do muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, foi decretado o fim da guerra fria. Dali a três anos, em 1992, a União Soviética também seria extinta e o mundo voltaria a ser polarizado pelo capitalismo. O passo mais importante desde a queda do muro foi a dita unificação das Alemanhas. Tal fato aconteceu em 3 de outubro de 1990.

A unificação veio e a Alemanha, desde então, é uma só. Mas a imprensa não relatou uma pesquisa recente, que demonstra a desigualdade no tratamento entre os alemães ocidentais e os antigos orientais. A pesquisa foi publicada no semanário alemão Der Spiegel [citações retiradas da reportagem de Julia Bonstein, do Der Spiegel; e tradução para o UOL de Eloise De Vylder] O Foque fez uma reportagem sobre tal pesquisa (leia a íntegra aqui) que revelou que 57% dos alemães orientais (os comunistas) preferiam viver na antiga República a hoje em dia na Alemanha unificada.

A pesquisa revela vários aspectos, mas o principal, o que a maioria dos entrevistados disse, foi em relação à solidariedade, igualdade e justiça que, na atual Alemanha ‘unificada’ e capitalista, não existem. ‘No que me diz respeito, o que tivemos naquela época foi menos ditatorial do que o que temos hoje. Quero ver salários iguais e pensões iguais para os moradores da antiga Alemanha Oriental’, relatou Schön, um artesão que não revelou seu sobrenome.

Imprensa só publica o que convém

‘Sob a perspectiva atual, acredito que fomos retirados do paraíso quando o muro caiu.’ Além da pesquisa boca a boca, os entrevistados responderam a perguntas por cartas e essa citação é de uma delas. A pesquisa revelou ainda que os cidadãos da antiga Alemanha Oriental são injustiçados em relação aos antigos alemães ocidentais [capitalistas]. Os ‘ex-comunistas’ recebem piores salários e não têm tanta liberdade quanto os capitalistas dizem que oferecem. ‘A RDA (República Democrática Alemã) tinha, na maior parte, pontos positivos. A vida lá era mais feliz e melhor do que na Alemanha reunificada de hoje’, diz outro cidadão numa carta.

A pesquisa faz questão de revelar que não só foram entrevistados ‘velhos’ saudosistas, mas jovens que nasceram na Alemanha Oriental, como Birger, de 30 anos. ‘Não dá para dizer que a RDA era um Estado ilegítimo e que tudo está bem hoje. A maioria dos cidadãos alemães orientais tinha uma vida boa. Com certeza, não acho que aqui é melhor’, disse, referindo-se à unificação da Alemanha em 1991.

Por fim, não faço a defesa do muro, pelo contrário. A sua queda colocou fim a uma era perigosa e de conflitos indiretos que poderiam ter acabado com o mundo, caso a guerra fria tivesse esquentado. Mas é fato que a imprensa só publica o que lhe convém. Agendando e fazendo questão de que a queda do Muro seja uma glória do capitalismo e dos EUA e entre em discussão em todas as esquinas, mesas de bares e rodas sociais novamente. Os pecados cometidos pelo mundo socialista e a censura do direito de ir e vir, não podem ser cometidos novamente. Mas a manipulação e defesa do capital pela mídia não podem passar batidos pelos jornalistas comprometidos com a história e a verdade.

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Jornalista e editor de O Coletivo [www.foque.com.br] e autor de No terreno da Fantasia