A imprensa nos diz que, no início, a Alemanha Oriental era um exemplo de socialismo que conseguiu dar uma boa qualidade de vida para a população, sobretudo devido ao apoio financeiro recebido do governo da União Soviética. No entanto, prossegue a mídia, a situação econômica do bloco soviético piorou drasticamente a partir de 1973, desde a chamada Crise do Petróleo. A situação econômica teria se deteriorado ainda mais, segundo a imprensa, devido aos gastos impostos ao bloco soviético pela corrida armamentista provocada pelo governo Reagan. Explicada dessa maneira na imprensa, a queda do Muro foi um efeito cuja causa seria a crise econômica que, nos anos imediatamente anteriores à queda do Muro, assolou a União Soviética como um todo, atingindo a Alemanha Oriental.
Em parte considerável da imprensa, há a ideia, em geral, de que o Muro foi construído devido à decisão das autoridades comunistas. Factualismo estreito: há um fato – a construção do Muro – e imediatamente antes, outro fato – a ordem das autoridades do governo da Alemanha Oriental; portanto, há uma relação de causalidade e efeito entre os dois fatos.
Ao invés de pensar em termos de causa e efeito, que pretensamente tornaria a decisão do governo comunista a causa da construção do Muro, é melhor escolher uma perspectiva diferente: a condição de possibilidade para que ocorresse a construção do Muro de Berlim foi o movimento incessante de pessoas que migraram da Alemanha Oriental para a Alemanha Ocidental: cerca de dois milhões e meio de pessoas fizeram essa migração entre 1949 e 1961, mais de duzentos e cinquenta mil apenas em 1960 e mais de cento e sessenta mil nos sete meses de 1961 que antecederam o início da construção do Muro. A irritação das autoridades comunistas não foi a causa do Muro, mas foi consequência do comportamento das pessoas que insistiam em migrar para o outro lado.
O muramento da sociedade
É preciso não acreditar nas impressões das aparentes evidências tidas em estado bruto: olhando-se o mapa físico do Muro de Berlim, pode-se ter a impressão que a decisão de se construir a barreira foi tomada com o propósito de cercar Berlim Ocidental: o Muro dá a volta em torno do lado ocidental da cidade que ficava como uma ilha no meio do território da Alemanha Oriental. Muitas pessoas parecem se deixar impressionar com isso: como se se tratasse de isolar e clausurar Berlim Ocidental, tornando-a cercada. Na verdade, foi precisamente o inverso: quem a construção da barreira procurou fechar foi a população de Berlim Oriental.
Enquanto as práticas discursivas propaladas pelas autoridades orientais insistiam que o Muro servia para impedir a entrada do ‘perigo fascista’, na verdade se tratava de vedar a saída da sua própria população, tornando-a murada dentro da barreira que suposta e aparentemente cercava a outra cidade.
A preocupação que motivou a construção do Muro era com as migrações da população do lado oriental para a parte ocidental. O propósito foi impedir a fuga dentro de sua própria população. Assim, passou-se a criar o inimigo interno, tratando quem queria sair como inimigo do Povo. O verdadeiro perigo não era o suposto inimigo externo: tratava-se de delimitar a existência do inimigo interno. Delimitação, cercamento, muramento: tudo estava voltado para manter a Alemanha Oriental como uma sociedade fechada.
Perda considerável de mão-de-obra
Nesse sentido, cabe lembrar, são conhecidos os relatos das tentativas de evasões feitas: os pelo menos setenta túneis construídos, ao longo dos anos, por baixo do Muro interligando os dois lados em que Berlim estava dividida, as fugas usando balões ou asa-delta por cima do Muro; a corda lançada por uma flecha ligando dois prédios, um de cada lado da barreira, num ponto cego entre duas torres de vigilância; o tanque do exército roubado e dirigido pelas ruas de Berlim Oriental até ele se arremessar contra o Muro (o que fez as autoridades soviéticas mudarem, reforçando, a estrutura do Muro); as corridas simplesmente através do espaço que separava as fronteiras, as fugas feitas se esgueirando à noite, as travessias do rio etc.
A história das fugas e das tentativas de fuga não é meramente o conjunto dos relatos sensacionais das fugas, bem sucedidas ou não. É preciso inverter: os relatos sensacionais fazem parte da história das fugas, que marcam a lógica totalitária em funcionamento na sociedade (não totalmente) fechada. Tal como o Muro, a história das fugas é marca da sociedade fechada.
A decisão de se erigir o Muro em 1961 envolvia aspectos políticos – não externos, referentes à guerra fria com os governos ocidentais, mas, sobretudo, internos: o número grande de pessoas que migravam criava um constrangimento, além de ser potencialmente um incentivo para mais pessoas seguirem o exemplo e o caminho.
Há, também, um aspecto econômico importantíssimo: Berlim Oriental perdia uma parcela considerável da sua mão-de-obra produtiva, causando transtornos para sua economia. Nesse sentido, é preciso considerar algo que pouco se considera quando se diz, e se repete, que a queda do Muro foi determinada pela crise econômica: a construção do Muro serviu para impedir que houvesse uma grave crise econômica provocada pela fuga de mão-de-obra em grande escala (dois milhões e meio de pessoas entre 1949 e 1961 é um número grande em termos absolutos; era mais de 10% da população total quando o Muro foi construído).
35 mil dissidentes presos
Então, se é para falar nos aspectos econômicos envolvidos na queda do Muro, talvez seja uma perspectiva mais interessante, ao invés de nos atermos aos fatos em estado bruto da crise econômica em 1989, considerar que não é que a derrubada do Muro foi determinada pela crise recente no bloco oriental, mas que a construção do Muro impediu que uma imensa crise econômica ocorresse muito antes de 1989. É preciso considerar, também, que compensava para o regime oriental gastar grande quantidade de dinheiro para renovar o Muro constantemente, com inovações, e para manter a vigilância permanente funcionando adequadamente.
Dizer que a queda do Muro ocorreu devido à crise econômica, seja por causa dos gastos do bloco oriental provocados pela escalada armamentista do governo Reagan seja por causa da crise do petróleo de 73, faz tanto sentido quanto dizer que a Guerra das Falklands provocou a derrocada da ditadura militar na Argentina. Efetivamente, sabemos que foi o contrário: o governo argentino usou a guerra nas ilhas como tentativa, quando já tinha perdido sua credibilidade de se fortalecer e de viabilizar sua permanência dali em diante. Não é inadequado observar que, se não fosse o conflito bélico que ela provocou com a Inglaterra, a ditadura militar argentina poderia ter acabado mais cedo; certamente, a guerra não apressou a queda da ditadura militar; muito provavelmente, o conflito com as forças inglesas deu sobrevida ao governo militar argentino. Assim, a guerra foi feita com o propósito de desviar as atenções da sua própria população das questões internas para o conflito com as forças inglesas. Ao invés de apressar, o conflito nas Falklands retardou o fim da ditadura.
Evidentemente, não se trata, aqui, de negar a existência da crise econômica no lado oriental durante a década de 80 nos anos imediatamente anteriores à derrubada do Muro: a existência da crise é tão incontestável quanto são reais as práticas do governo do lado oriental, na década de 80, de libertar prisioneiros dissidentes para o lado ocidental em troca de dinheiro: mais de trinta e cinco mil dissidentes estavam presos num mesmo momento na década de 80.
Os limites da lógica totalitária
A crise econômica não determinou os eventos políticos que passam pela queda do Muro. A crise nos anos 80 é consequência do esgotamento da lógica totalitária: o que estava em questão era como se preservar um Estado regido por uma lógica paranóica que perseguia, sem freios, inimigos dentro de sua população, permitindo efetivamente o comportamento de denúncia. A população oriental sabia das práticas da Stasi e dos comportamento que ela mais do que incentivava. Dizer que a queda do Muro foi causada pela crise econômica é, ainda uma vez, procurar o princípio da transformação no âmbito dos processos econômicos.
As autoridades soviéticas obtiveram êxito, de certo modo, no seu propósito ao construírem o Muro: durante os pouco mais de vinte e oito anos em que o Muro esteve em pé, cerca de mil pessoas morreram tentando fugir do bloco soviético, muito mais pessoas conseguiram fugir, mas um número imensamente maior deixou de migrar para o lado ocidental devido à existência do Muro e da vigilância estrita que se fazia para se evitar que mais pessoas fugissem.
O Muro caiu pelo mesmo motivo que foi erguido. Enquanto o propósito de levantá-lo foi evitar que as pessoas migrassem do bloco soviético para o lado ocidental, há um motivo que condiciona por que ele foi construído que antecede aquele propósito: o motivo, afinal, é que as pessoas saíam às centenas de milhares, do lado oriental. E o faziam em profusão, de maneira que nos doze anos que antecederam a construção do Muro dois milhões e meio de pessoas migraram. Por esse mesmo motivo também, o Muro foi destruído: as pessoas queriam sair do lado oriental devido à configuração, então, dos limites da lógica totalitária.
A paranóia da Stasi
A imprensa repetiu exaustivamente dois enunciados correlatos: enquanto esteve vigente, o Berliner Mauer era símbolo da Guerra Fria e sua superação definitiva simbolizou o fim da Guerra Fria. Esses enunciados partem de uma formulação negativista, constituída por uma oposição que parte da dicotomia entre dois regimes políticos, duas ideologias, dois sistemas antagônicos. No entender dessa formulação, o Muro implicava simbolicamente essa oposição.
O principal problema é que essa formulação não reconhece a positividade da lógica totalitária da sociedade fechada. A afirmação da positividade da doutrina antecede a pretensa negatividade da oposição. Assim, o Berliner Mauer deve ser visto como marca da lógica totalitária e como signo do fechamento de uma sociedade fechada: fechamento que, pela lógica totalitária, devia ser máximo, total.
Nesse sentido, as fugas que se seguiram à construção do Muro e que persistiram, mesmo com as mudanças na barreira, durante todos os anos entre 1961 e 1989 mostram, inequivocamente, os limites do totalitarismo, incapaz de fechar completamente a sociedade. Esses limites do totalitarismo levam à paranóia crescente que é caracterizada, por exemplo, tanto pela obsessão em aperfeiçoar continuamente a muralha para evitar que as fugas e as tentativas de fugas continuassem ocorrendo quanto pelas práticas, exageradas ao nível da afecção, da Stasi.
Um pretenso ‘problema técnico’
Então, a barreira não foi símbolo da ‘guerra’ surgida depois da Cortina de Ferro. Antes disso, o Muro deve ser considerado símbolo, por exemplo, do que ocorreu em Kholodomor, na Ucrânia, entre 1932 e 1933, durante o período de um ano e meio em que morreram oito milhões de campesinos ucranianos (incluindo três milhões de crianças e um número semelhante de idosos e mulheres, todos camponeses) no que se chamou ‘Massacre pela Fome’, referindo-se, assim, às consequências da decisão do governo stalinista de confiscar todos os alimentos produzidos nos campos ucranianos, deixando sua população camponesa completamente à míngua, reduzida à miséria total.
Além disso, o exército soviético perseguiu aqueles ucranianos que tentavam fugir do território ucraniano, impedindo-os de procurarem os meios de sobrevivência fora de sua terra: os soldados soviéticos serviram de muro para fechar os camponeses ucranianos nas suas terras. Política decorrente da lógica totalitária: desde que os campesinos ucranianos foram considerados, pelo governo, como inimigos internos, foram tratados com brutalidade atroz. O Muro de Berlim foi uma concretização dessa lógica totalitária que, muito antes da Guerra Fria, se abateu violentamente sobre os campesinos ucranianos. Durante décadas, essa história permaneceu desconhecida, a não ser pelos sobreviventes ucranianos e seus descendentes.
Em tempo: os historiadores comunistas ainda hoje alegam que o que ocorreu em Kholodomor foi um ‘problema técnico’, uma crise referente à produção de alimentos, tentando assim sobreporem essa ideia às evidências, inclusive os testemunhos dos ucranianos sobreviventes que viram seus familiares, amigos e conhecidos serem debilitados até à morte pela fome imposta pelo Estado soviético. Aqueles historiadores não conseguem explicar porque o pretenso problema técnico, tendo existido, teria se abatido apenas sobre a população do território que era o celeiro da União Soviética, enquanto as populações fora da Ucrânia nada sofreram, alimentadas que foram, efetivamente, pela produção dos campos ucranianos.
Redefinindo inimigos internos
Então, a imprensa comete uma imponderação ao repetir que o Muro era símbolo da Guerra Fria. Era, antes disso e muito mais, a marca da lógica e dos limites do totalitarismo. Mesmo os diferentes documentários recentes (exibidos em vários canais de televisão) que enfatizaram as fugas, bem sucedidas ou não, das pessoas de Berlim Oriental ocorridas durante a vigência da barreira não questionaram, tratando de repisar, a ideia de que o Muro simbolizou a Guerra Fria. Ao insistirem na ideia fácil de se repetir, não souberam, nesse momento, assinalar o sentido da história dessas fugas. O Muro não foi efeito da dicotomia entre duas ideologias opostas, entre dois regimes políticos, em dois territórios opostos. Foi consequência da lógica totalitária dentro dos limites de seu território.
Ao se pensar de forma negativista, se enfatiza a oposição, a dicotomia, entre as ideologias. Em contrapartida, é uma perspectiva melhor considerar os mecanismos de funcionamento interno da lógica totalitária na sociedade fechada: é próprio do totalitarismo dirigir-se contra sua própria população. A consequência é a necessidade em grau obsessivo, conforme essa lógica, em procurar eleger continuamente os inimigos internos e assim procurar fazer o controle completo sobre toda a população. Esse é um movimento de voltas sem fim, voltado contra sua própria população, da lógica totalitária.
Assim, se viu, tanto no regime hitlerista quanto no regime soviético, de tempos em tempos, a necessidade imperiosa de redefinir os inimigos internos, fazendo sucessivos expurgos atingindo muitas vezes até mesmo aqueles grupos e pessoas que estavam próximos do núcleo totalitário: sempre que inimigos internos eram eliminados, era preciso procurar novos inimigos dentro da sociedade fechada (na União Soviética, essa consequência da lógica totalitária permaneceu suspensa durante o período em que ela esteve em conflito com os nazistas durante a Segunda guerra Mundial).
Formulações negativistas
A questão que importa, então: quem considera o Muro como símbolo da Guerra Fria? Ou seja, quem pensa de maneira negativista, partindo da ideia de que oposições (entre ideologias e entre regimes antagônicos) constituem fundamentalmente a realidade? De um lado, ‘as viúvas da ideologia’, que, em variados graus, se identificam com o regime derrubado a partir da queda do Muro: preferem pensar em termos maniqueístas do grande inimigo externo do que admitir a lógica totalitária (em funcionamento, por exemplo, no caso de Kholodomor). De outro lado, aqueles que se identificam com a completa oposição ideológica, como os reaganianos.
Tanto uns quanto outros preferem achar que a escalada armamentista promovida pelo governo Reagan pode ter sido ou a responsável (opinião à direita, identificada em certo grau com o Partido Republicano norte-americano) ou a culpada (opinião à esquerda, de quem lamenta a derrubada do Muro e demoniza o governo Reagan por isso). Apesar do que eles pensam, no entanto, não se demonstra que os gastos militares com a escalada armamentista feita pelo governo Reagan possam ter causado uma quebra na economia do governo soviético. Desde o governo Putin, a Rússia tem aumentado enormemente seus gastos com uma nova escalada militar. Na verdade, faz mais sentido considerar que as despesas feitas pelo governo Reagan com o armamento militar seja condição de possibilidade inicial da crise econômica que atingiu os Estados Unidos nos últimos anos (o alto grau de endividamento dos Estados Unidos remonta ao governo Reagan, grande gastador, assim como o governo de seu sucessor e o do filho de seu sucessor).
A imprensa repisa aquelas formulações, marcadas pelo modo de pensar negativista, que começa atribuindo ao Muro a qualidade de símbolo da Guerra Fria e termina achando que a escalada armamentista foi a causa que teve como efeito a queda do Muro.
A ênfase nas ‘diferenças’
Esse tipo de leveza no esquema interpretativo sobre os aspectos constitutivos da história do Muro e do seu redor também atinge a compreensão do tempo atual, duas décadas após a queda da barreira. Vejamos um exemplo.
‘Diferenças se mantêm após vinte anos’, pode-se ler num jornal semana passada. ‘Diferença entre Leste e Oeste ainda persiste’, escreve-se, pretendendo-se assim que a matéria, publicada num outro jornal, relate essa persistência. Os enunciados pretendem, assim, se referir ao desnível econômico que existiam entre as populações durante a existência do Muro e quando esse caiu e que ainda persistiriam hoje em dia. No entanto, os próprios jornais assinalam que houve ‘melhora de vida da população do Leste’. Até Eric Hobsbawm aponta que ocorreram mudanças nesse sentido ‘– embora seus habitantes [da Alemanha Oriental] estejam hoje muito melhor do que estavam antes de 1989 –’ (grifo meu) ele apenas não as considera relevantes, como indica o advérbio adversativo inicial na passagem transcrita.
Hoje em dia, certamente há desnível econômico entre os territórios e as populações, mas tudo mudou e as diferenças não ‘se mantêm’ nem ‘persistem’, ao contrário do que as frases fáceis dos jornais pretendem. Não é mera questão de semântica: as diferenças são tão grandes, tudo é tão diferente, que as diferenças de hoje são muito diferentes das que existiam na época do Muro. Mas a imprensa acha que rende melhores manchetes ignorar as diferenças efetivas entre as duas épocas, preferindo enfatizar então a manutenção e a persistência, atualmente, das ‘diferenças’ que existiam antes. A vida e as suas mudanças são menos importantes do que esquemas interpretativos e manchetes fáceis, no entender de muitos intérpretes e dos jornais.
A ausência de um confronto violento
Na imprensa, repete-se a ideia de que a queda do Muro se passou de forma surpreendentemente pacífica, sem confronto violento, sem derramamento de sangue. Mais do que isso, sugere-se que a derrubada do Muro ocorreu de maneira rápida, o que também deveria ser igualmente considerado surpreendente.
Surpreendentemente pacífica? É preciso observar que, no início da década de 60, muitos já tinham achado surpreendente que a construção do muro não tenha deflagrado violências, no sentido de um conflito bélico entre as superpotências. Sobretudo em setembro de 1961, quando tanques dos dois lados se posicionaram frente a frente e se encararam durante diversos dias na fronteira em torno do Checkpoint Charlie, o principal posto de fronteira na Berlim dividida depois da Segunda Guerra Mundial.
Além disso, houve muita violência relacionada ao Muro cometida brutalmente, sobretudo contra todos que tentaram se evadir dos limites dele nos pelo menos 27 anos decorridos entre a primeira e a última tentativas de fuga durante a vigência da barreira murada. É preciso observar também a violência associada ao medo que se lançava sobre todos que pensavam em escapar para o lado ocidental, incluindo-se a truculência paranóica da Stasi; medo que atingia também todos os que simplesmente podiam ter considerado seus comportamentos como inadequados. Era a violência e o medo associado a ela que impulsionaram a queda da barreira.
Quando se fala sobre o caráter surpreendentemente pacífico da queda do Muro, esquece-se de considerar que essa está associada a toda a história de conflitos e violências efetivas em torno (literalmente) do Muro ao longo dos anos. Certamente, o correto é inverter, considerando que a ausência de ‘violência’ (no sentido do confronto sangrento aberto) é mais surpreendente durante a construção e a vigência do Muro do que no seu fim, na sua derrubada. Quando a linha-dura do lado oriental já estava sem condições ‘morais’ e sem forças para manter, na perspectiva interna do regime totalitário, as barreiras que delimitavam o totalitarismo é que havia menos possibilidades ainda de confronto violento ostensivo. Acabou prevalecendo, entre os defensores da linha-dura, a consideração de que seria ineficaz (no mínimo inútil) para eles perpetrar um massacre violento como o que acontecera pouco antes em Pequim. A ausência de um confronto ostensivamente violento na época da derrubada da barreira sugere que se deve procurar o que explica por que ela não foi surpreendente: todas as mudanças que já haviam ocorrido antes, ao longo dos anos, e que se constituíram em condições que tornaram possíveis as manifestações populares, como a ocorrida nas ruas de Leipzig poucas semanas antes da queda da barreira de Berlim.
Quem é a imprensa que se deixa surpreender?
Surpreendentemente rápida? É expressivo o depoimento dado por Silviano Santiago – que vivenciou na pele as práticas paranóicas da Stasi ao ser interrogado poucos meses antes de novembro de 1989 – referente à derrubada da barreira: ‘pouco me assustei com as manchetes do dia. Era o esperado (pelo menos para mim). […] Tendo chegado a tal ponto […], [eu] esperava a queda iminente’. Nesse sentido ainda, Eduardo Coutinho declarou: ‘em 1968, eu estava em Praga e presenciei a invasão soviética. Percebi que aquilo não poderia durar’. Quem percebeu em 1968 que ‘aquilo não poderia durar’ não deve ter considerado os eventos – referentes à queda do muro e ao colapso do regime soviético na sequência – no final da década de 80 nem surpreendentes, nem rápidos.
Winston Churchill, que nas décadas de 10, 20 e 30 era muito conhecido por suas declarações asperamente voltadas contra o bolchevismo internacional e contra os comunistas ingleses, e que passou o final da Segunda Guerra Mundial preocupado com o crescimento da União Soviética na Europa central, ao ser indagado, poucos anos depois do final da Segunda Grande Guerra, porque não se pronunciava mais com a mesma contundência anterior contra a União Soviética, respondeu que ela não era mais um problema considerável e que o fim dela era inexorável devido à sua própria lógica e funcionamento internos. Para Churchill, então, era só esperar a desintegração da União Soviética, o que, no seu entender, ocorreria, no máximo, em 40 anos (o que não pareceu ser muito tempo para ele). Ele disse isso em 1949! Se pudesse estar vivo em 1989, o primeiro-ministro inglês durante a Segunda Guerra, o grande responsável pela principal e mais importante oposição a Hitler, certamente não teria achado nem surpreendente nem rápida a derrubada da barreira.
Então, o mais relevante, quando se trata da ‘surpresa’ inerente ao evento, não é o pretenso caráter surpreendente que se atribui ao objeto do discurso (a derrubada da barreira). As questões mais importantes são aquelas referentes à própria constituição do discurso: quem achou, na época, surpreendente?; quem, ainda hoje, acha surpreendente? Questões importantes que a imprensa em geral não se colocou e não apresentou para o público, desconsiderando, como irrelevantes, as evidências para suscitar tais questões. A imprensa preferiu enfatizar a interpretação ingênua e popular e que é mais caracteristicamente ‘jornalística’: aquilo que é ‘surpreendente’ é mais propenso a manchetes do que aquilo que não surpreende. Essa é a resposta para a pergunta: quem é essa imprensa que, também ela, se deixa surpreender até hoje?
Mudanças já tinham ocorrido
Cabe insistir, a questão não está em se aquilo é surpresa ou não: a questão efetivamente relevante é referente a quem considera surpreendente. Uma imprensa de qualidade precisaria colocar esta questão, ao invés de apenas registrar os depoimentos de quem não se surpreendeu, tratando-os como declarações eventuais e meramente pontuais, como se pudessem ser equiparados, sem que implique acrescentar algo relevante, às declarações de quem considerou (e/ou ainda considera) que o evento foi surpreendente. O tópico sugerido por aqueles depoimentos e que devia ser desenvolvido foi murado pela imprensa. Assim como desconsideraram a relevância do que Churchill tinha dito, também cercaram os depoimentos de Santiago e de Coutinho, tirando-lhes seu valor. Assim, se a imprensa (e não apenas ela) não valoriza as pistas dadas pelos depoimentos de quem não se surpreendeu, tudo o que resta para ela é, tendo se deixado surpreender, permanecer surpresa.
Enfim, deve-se ponderar sobre as mudanças que já tinham ocorrido dentro dos limites do totalitarismo muito antes da derrubada da barreira. Surpreender-se é resultado de não relevar essas mudanças. Então, é preciso inverter a interpretação ingênua e popular propalada na imprensa: a derrubada da barreira murada não foi rápida. Demorou para ocorrer. Segundo o prazo máximo estipulado por Churchill, ocorreu no tempo limite. O Muro não simbolizou a Guerra Fria. Sua queda não foi causada pela crise econômica do bloco soviético na década de 80: uma das consequências da construção do Muro foi evitar (ou pelo menos retardar) o surgimento ou o agravamento de uma crise econômica. A crise econômica na década de 80 não foi decorrente seja dos gastos provocados pela corrida armamentista, seja da Crise do Petróleo de 1973.
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Bacharel em História e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP, Campinas, SP