Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Como é difícil quebrar preconceitos

Por que será que uma publicaçãozinha de bolso de 88 páginas, muito semelhante às listas de ‘palavras perigosas’ de qualquer manual de redação de jornal, está causando tanto barulho e discussões apaixonadas país afora? Será que, por milagre, o Brasil de repente atingiu um grau de civilização tão grande que já pode dispensar o debate de suas taras e preconceitos? Será que a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos constitucionais da República, teria, na expressão de Dom Hélder Câmara, ‘saltado do papel para a vida’ de um dia para o outro?


Para início de conversa, um esclarecimento. Diferentemente do que dizem os críticos, a cartilha Politicamente Correto & Direitos Humanos não é uma espécie de Index Auctorum et Librorum Prohibitorum inquisitorial, destinado a regular, controlar, policiar o linguajar grosseiro da população nacional. Com 5 mil exemplares, num mar de 183 milhões de pessoas, o objetivo da publicaçãozinha era mais que modesto. Dentro do programa de educação da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH), ela foi concebida para chamar a atenção de pessoas que lidam com o público – parlamentares, agentes e delegados de polícia, guardas de trânsito, jornalistas, professores do ensino fundamental – para o fato de que certas palavras e expressões, dependendo do contexto, são discriminatórias, preconceituosas, humilhantes. A SEDH já havia produzido muitas cartilhas semelhantes, algumas com o apoio do Unicef, e nunca ninguém chiou por causa delas. Por que a chiadeira, agora?


Como explicar a cruzada expurgatória que uniu João Ubaldo Ribeiro, Arnaldo Jabor, José Sarney, alguns comunistas do PC do B, o frei Betto, alguns respeitáveis PhDs da Ciência Política, os editores da revista do PSDB e o próprio presidente da República?


Como explicar que Ricardo Noblat, tido e havido como paladino da liberdade de expressão, noticiou a decisão do secretário Nilmário Miranda de suspender a distribuição da cartilha dizendo que ela iria mofar no fundo de uma gaveta se não fosse ‘discretamente incinerada’? Seria uma sugestão?


Julgamentos automáticos


Por que Maria Celina D’Araújo, com a sofreguidão que em nada combina com o método cuidadoso de uma intelectual consistente, que ela parece ser, comparou a iniciativa da cartilhinha com as práticas de censura da ditadura militar?


Por que o presidente da Academia Brasileira de Letras, Ivan Junqueira, qualificou a iniciativa de ‘fascista’, banalizando um conceito que ele, na condição do legítimo delegado de polícia da língua, deveria conhecer melhor do que ninguém?


Por que os PhDistas de plantão reclamaram contra a intromissão do Estado na seara da Cultura, por gastar dinheiro público com a publicaçãozinha, se antes não haviam dito nada contra os financiamentos oficiais do dicionário Houaiss, do Aurélio e de tantos outros? Se o Estado não pode investir na Cultura, por que a tolerância desses liberais casuístiscos com os autores que têm a venda de seus livros garantida pelos programas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação?


Por que tanto mau humor na defesa da liberdade ao direito de fazer piadinhas com crioulos, sapatões, ceguinhos e leprosos?


Por que tanta caradura na defesa do riso? Qual tipo de riso? A quem serviu as gargalhadas dos soldados americanos em Abu Ghraib e Guantánamo? Goebbels também era um piadista, pô! E Al Capone também mandava flores. Talvez Freud, que nasceu a 6 de maio, uma coincidência na semana em que a cartilha foi espinafrada, possa explicar os exageros de tantos julgamentos automáticos (pré-juízos, pré-conceitos).


Militante nervoso


O mais incrível nessa história é que a maioria dos críticos não leu a cartilha, contentando-se apenas com o conteúdo e com as reproduções da primeira matéria publicada a respeito dela, no jornal O Globo (sábado, 30/4). Daí as bobagens e jaborbagens pronunciadas a respeito do assunto.


É evidente, por exemplo, que seria uma sandice classificar como inadequada em si a expressão ‘farinha do mesmo saco’. De fato, como disse, se não me engano, Zuenir Ventura, dessa forma não se sabe se a ofensa atinge a farinha ou a saco. Ocorre que o verbete sobre essa frase diz o seguinte:




‘A expressão, junto com outras semelhantes – ‘Todo político é ladrão’, ‘Os jornalistas são mentirosos’, ‘Os muçulmanos são terroristas’ – ilustra a falsidade e a leviandade das generalizações apressadas, base de quase todos os preconceitos. O fato de haver políticos corruptos, jornalistas imprecisos e muçulmanos extremistas não significa que a totalidade de cada um desses segmentos mereça aquelas respectivas acusações’.


‘Qual é o pó?’, diria Pablo Scholar a respeito desse ponto.


É óbvio que chamar um comunista como Oscar Niemeyer de ‘comunista’ não machuca ninguém, nem muito menos ele, que é mesmo comunista desde criancinha. Mas vá chamar um discípulo do Leonardo Boff (audácia!) de comunista para você ver o que é bom pra tosse. O verbete da cartilha diz que o termo, até recentemente, foi utilizado ‘para discriminar ou justificar perseguições a qualquer militantes de esquerda ou de causas sociais’ e até para justificar genocídios, como na Alemanha nazista ou na Indonésia, em 1965. Isso é um fato, e realmente não deu para entender por que alguns militantes do PC do B ficaram tão irados com a cartilha, logo eles que defendem o projeto de lei do deputado Aldo Rebelo que propõe multas para quem se utiliza de termos de origem estrangeira, certamente uma postura contraditória com a vocação internacionalista do comunismo.


O mais engraçado, no caso dos comunistas, eu li numa carta enviada ao portal Vermelho , na qual um militante muito nervoso afirmou que é um absurdo a proposta de chamar os homossexuais com um estrangeirismo: ‘gay’!


Houve quem dissesse que, para ser isento, o livreto deveria trazer também o verbete ‘fascista’. Mas traz, uai:




‘Fascista – A palavra muitas vezes é utilizada por militantes de esquerda para desqualificar adversários de direita, embora se refira, especificamente, aos adeptos do sistema ditatorial cujas maiores expressões históricas foram os regimes da Itália de Benito Mussolini e a Alemanha de Adolf Hitler, entre as décadas de 20 e 40 do século 20’.


Noel Rosa


O editor da revista Primeira Leitura , ligada ao PSDB, é outro que não leu a cartilha. Para fazer graça, e achar motivo para botar a foto da cachorrinha dele na revista, disse que o livreco deveria ter a palavra ‘burro’. Tem, sô:




‘Xingamento dirigido a quem se atribui falta de inteligência. Conferir às pessoas supostas características de animais é um dos recursos mais comuns para desqualificá-las’.


Já o presidente Lula teria ficado uma arara com o fato da maldita listar a palavra ‘peão’, logo ele, que se considera peão e que gosta de chamar sua turma de ‘peãozada’. É outro que não leu e não gostou, embora a Secretaria Especial dos Direitos Humanos seja diretamente vinculada à Presidência. O verbete respectivo diz o seguinte:




‘Peão – O trabalhador braçal, do campo ou da cidade. O termo tem conotação pejorativa quando é utilizado para inferiorizar alguém na hierarquia das classes sociais, como na frase ‘Isso é coisa de peão’, para significar que se trata de atitude de alguém rude, bruto, ‘inculto’’.


Um verbete em especial ilustra como algumas pessoas gostam de dar palpite sem se inteirar do assunto. É verdade, por exemplo, que a cartilha diz que a expressão ‘samba do crioulo doido’ é utilizada ‘para discriminar os negros, atribuindo-lhes confusões e trapalhadas’. Só que antes dessa afirmação, está dito ali que a expressão é o…




‘…título de famoso samba composto pelo genial Sérgio Porto para satirizar o ensino de História do Brasil nas escolas do País, iniciado pela estrofe ‘Foi em Diamantina/ Onde nasceu JK/ Que a princesa Leopoldina/ Arresolveu se casá/ Mas Chica da Silva/ Tinha outros pretendentes/E obrigou a princesa/A se casar com Tiradentes/ Lá iá lá iá lá iá’’.


Ah, ah, ah!, diria o Stanislaw Ponte Preta, que, para quem não sabe, é o próprio Sérgio Porto. Realmente, há um Festival de Besteira assolando o País!


O meu amigo Armando Mendes, no blog do Noblat, caiu matando, dizendo que a cartilha do ‘politicamente correto’ copia servilmente uma política cultural dos americanos. Meu filho Osvaldo mandou-lhe uma resposta, de gozação, lembrando que, no Brasil, quem inventou o ‘politicamente correto’ foi o Noel Rosa, em 1932, com o samba Rapaz Folgado. Prestem atenção na última estrofe:




Deixa de arrastar o teu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália / E tira do pescoço o lenço branco / Compra sapato e gravata / Joga fora esta navalha que te atrapalha


Com chapéu do lado deste rata / Da polícia quero que escapes / Fazendo um samba-canção / Já te dei papel e lápis / Arranja um amor e um violão


Malandro é palavra derrotista / Que só serve pra tirar / Todo o valor do sambista / Proponho ao povo civilizado / Não te chamar de malandro / E sim de rapaz folgado


Tese de Einstein


Antes de encerrar, e parar de alugar os leitores mais do que fiz, sem querer – diga-se! –, durante uma semana inteira, mais algumas observações.


A execução da cartilha foi uma idéia do subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Perly Cipriano, sensibilizado com o número de reclamações recebidas por ele contra os preconceitos que atingem diversos setores sociais.


Sem ser especialmente adepto do ‘politicamente correto’, sugeri outro título, O inferno são os outros – Respeito é bom e eu gosto. Mas o Perly insistiu no Politicamente Correto, exatamente por conta da controvérsia que nós dois achamos que a coisa provocaria. Mas, por precaução, ele escreveu na apresentação da cartilha:




‘A idéia do título, Politicamente Correto, tem, em parte, um sentido provocador. Foi escolhida com o objetivo de chamar a atenção dos formadores de opinião para o problema do desrespeito à imagem e à dignidade das pessoas consideradas diferentes’.


No parágrafo seguinte, uma advertência:




‘Não queremos promover discriminações às avessas, ‘dourando a pílula’ para escamotear a amargura dos termos que ofendem, insultam, menosprezam e inferiorizam os semelhantes que consideramos ‘os outros’’.


É essa advertência que explica por que o verbete de ‘velho’ diz que é preferível chamar as pessoas em idade avançada de ‘idosos’, e por que ‘melhor idade é uma fórmula ainda mais eufemística do que ‘terceira idade’ para referir-se à pessoas idosas’, que ‘não contribui para ampliar sua auto-estima nem sua dignidade’.


A cartilha Politicamente Correto & Direitos Humanos‘, como a crase do Gullar, não foi feita para humilhar ninguém. Nem para deitar regras. Não tinha como homem-alvo o João Ubaldo Ribeiro nem seus coleguinhas da Academia Brasileira de Letras. Quem não sabe que o João é livre para xingar quem ele quiser?


O livreto foi muito modestamente redigido, certamente com alguns exageros, para alertar algumas pessoas que lidam diariamente com o público de que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República brasileira. Não foi escrito para quem já sabe que os limites da tolerância democrática são os artigos do Código Penal que capitulam os delitos da injúria, calúnia e difamação.


A cartilha não inventa nada. Está conforme o Código de Ética dos Jornalistas e, repito, é muito semelhante aos manuais de redação da Folha de S.Paulo, do Globo, do Estado de S.Paulo.


Francamente, nem eu nem o Perly merecíamos esses 15 ou 16 minutos e meio de fama. Nem ele nem eu somos agentes de um Estado totalitário, pronto para exterminar a liberdade de expressão. O Perly passou vários anos na cadeia, por lutar pelas liberdades democráticas! Eu comecei minha carreira de jornalista no jornal Movimento, que já nasceu censurado pela ditadura militar. PQP, Ubaldo!


No centenário do anno mirabilis do Einstein, mais uma de suas teses se comprova: ‘É muito mais difícil desintegrar um preconceito do que um átomo’. Esta é a principal lição que até agora eu tirei de toda essa confusão.

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Jornalista, comunista libertário, vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal, autor da famigerada cartilha Politicamente Correto & Direitos Humanos, agora censurada