Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Duas Venezuelas, duas verdades






Desde os primeiros meses de governo, o presidente da Venezuela Hugo Rafael Chávez Frías e os meios de comunicação daquele país estão em conflito. De um lado, o chefe do governo critica a atuação da mídia e a classifica de ‘golpista’. Jornais, emissoras de rádio e TV acusam o presidente de autoritarismo, intimidação dos veículos de imprensa e de não aceitar críticas. É um país onde, de acordo com críticos da comunicação, a verdade já não interessa. Bandeiras propagandísticas e slogans ocuparam o lugar dos fatos concretos.


Para discutir o panorama político da Venezuela e a relação entre a imprensa e o presidente Chávez, o Observatório da Imprensa, da TV Brasil, preparou dois programas especiais. O jornalista Claudio Bojunga, colaborador do programa, passou uma semana em Caracas, a capital do país, e produziu entrevistas com jornalistas, intelectuais e políticos para o Observatório. A primeira parte deste trabalho foi exibida na terça-feira (17/11) com a presença de Bojunga no estúdio do Rio de Janeiro, ao lado de Alberto Dines, para contar suas experiências nesta viagem.


Antes do debate no estúdio, em editorial, Dines comentou que a Venezuela está nas primeiras páginas há sete anos consecutivos, mas que a mídia brasileira ‘ainda não se animou’ a analisar com profundidade a conjuntura política daquele país. ‘Mesmo na condição de protagonista, a mídia não pode ignorar que também é observadora e mediadora. Sem mediação e intermediação, um conflito, qualquer conflito, corre o risco de explodir. O drama venezuelano torna-se cada vez mais premente na medida em que o demorado confronto fechou todos os acessos ao diálogo’, afirmou.


A origem da polarização


No primeiro bloco do Observatório, Dines e Bojunga discutiram a conjuntura da qual emergiu o bolivarianismo de Hugo Chávez. A reportagem explicou que em 1988 houve um sangrento levante em decorrência de um severo pacote econômico. Em seguida, o sistema político tradicional entrou em crise e, em 1992, um grupo de militares tentou derrubar o então presidente Carlos Andrés Pérez. O grupo exigia a revisão da política econômica e o combate à corrupção. Hugo Chávez, um dos participantes do movimento, foi preso.


A socióloga Maryclen Steeling, do Observatorio Global de Medios, disse que o processo de ‘fratura da legitimidade e das lealdades’ ocorrido nos anos 1980 foi conseqüência da fragilização dos partidos, dos poderes da República e dos bancos. Com a falência do sistema político, os meios de comunicação substituíram os partidos. ‘Em 1998, o presidente Chávez sai em propaganda eleitoral e se converte em um político emergente que ascende vertiginosamente e ganha a eleição com um discurso voltado aos excluídos, à dignificação da pobreza. Era um discurso de centro-esquerda e aparentemente era um candidato com um discurso que não necessariamente ia romper com o uso e o costume político-eleitoral em Venezuela’, analisou.


O candidato era apoiado por grupos econômicos e sociais e pela mídia. Mas ao ser eleito, surpreendentemente não recompensou as forças que o apoiaram, como é costume na política. Não cumpriu a ‘lei de reciprocidade’. Maryclen Steeling disse que em seu primeiro discurso deixou claro que não iria governar com os tradicionais grupos de poder, que passaram a suspeitar de suas ações. O discurso de Chávez começou a dirigir-se às camadas excluídas. Imediatamente, os meios de comunicação e os grupos econômicos passaram a olhar com suspeita o novo presidente.


Chávez questionava a democracia representativa e exaltava a democracia participativa. Ao propor a lei das terras e das águas, atemorizou os proprietários de terras. Como todos os presidentes da Venezuela, pediu poderes habilitantes. Com a mudança no panorama político, a mídia passou para a oposição. A polarização surgiu quando Chávez quis retomar a legitimidade perdida pelos partidos tradicionais, e que agora estava nas mãos dos meios de comunicação.


Imprensa como partido político


Desde os anos 1990, os profissionais de imprensa ‘tomaram o rumo’ de líderes políticos, de formadores da opinião pública. ‘A discussão que antes acontecia nos partidos políticos e na arena pública se transfere para os meios de comunicação, fundamentalmente a televisão. E a discussão adquire uma lógica televisiva’, disse Maryclen Steeling.


O ex-guerrilheiro Teodoro Petkoff, que foi ministro do governo Rafael Caldera (1994-1998) e atualmente é diretor do jornal oposicionista Tal Cual, explicou que a grande mídia venezuelana está vinculada aos interesses dos grandes grupos econômicos – que chegaram a afirmar poder derrubar ou colocar um presidente no Palácio Miraflores. Ao chegar à presidência, Chávez encontrou esses grupos com um comportamento mais de partidos políticos do que de meios de comunicação. Os partidos estavam enfraquecidos. De um lado estava o governo e do outro, a mídia.


‘O governo tem avançado na criação do que ele mesmo denomina como uma `hegemonia comunicacional´. Não se trata de um propósito igual ao soviético ou ao cubano, simplesmente só um meio de comunicação estatal, em detrimento dos demais. É uma coisa mais astuta, mais complexa, que é criar um enorme aparato comunicacional a princípio do Estado, mas não é do Estado e não é do Governo. É de Hugo Chávez’, comentou.


A reportagem explicou que em 1999 a nova Constituição trocou o nome do país para República Bolivariana da Venezuela. O texto eliminou o Senado, ampliou o mandato presidencial, reduziu a jornada de trabalho e desapropriou latifúndios. O bolivarianismo reivindicava as idéias de Simon Bolívar, o Libertador da Venezuela, que também lutou pela independência da Colômbia, da Bolívia, do Peru e do Equador. De Bolívar, Chávez encampou os ideais da educação do povo, da integração latino-americana e também o alerta para os riscos representados pelos interesses dos EUA. Mas esqueceu-se do caráter autoritário do herói.


Imprensa para quê?


No início do debate no estúdio, Dines comentou que os dois depoimentos exibidos convergiam quanto à origem da polarização. Deixaram claro que ‘a democracia era fictícia’ e que a mídia preenchia o vazio deixado pela política. Para Bojunga, eles estão de acordo com a gênese de Hugo Chávez. O homem ‘carismático e messiânico’ era resposta a uma república falsa. Chávez incomodou a mídia porque é o tipo de político que quer ter ‘uma interlocução direta com a massa, com a rua’. Com estas características, se converte em um político que não precisa do poder constituído do Parlamento nem da mediação dos meios de comunicação.


No segundo bloco do programa, Dines e Bojunga discutiram a radicalização política ocorrida depois do golpe contra o presidente venezuelano e a greve petroleira, em 2002. A reportagem mostrou que em abril daquele ano, após uma greve geral que resultou na morte de 13 pessoas, um grupo de oficiais anunciou a renúncia de Hugo Chávez e colocou em seu lugar o empresário Pedro Carmona, da organização patronal Fedecámaras. Suas primeiras medidas foram a dissolução do Congresso e a demissão dos juízes do Supremo Tribunal. O então presidente dos Estados Unidos, George Bush, conferiu legitimidade ao novo governante. A Venezuela se dividiu. Chávez foi reconduzido ao poder por uma facção do Exército e contou com o apoio de milhares de partidários.


‘O setor opositor tinha suficiente força militar, civil, econômica, midiática e da igreja para derrotar Chávez, e conseguiu. O problema foi que, em menos de 48 horas, houve um reagrupamento da força militar e popular em favor de Chávez, que surge, reage e afasta os golpistas. Quando regressa da prisão, ele observa que as forças que o enfrentaram estão intactas, têm a mesma força, menos as Forças Armadas, que foram depuradas com a permissão do comandante’, explicou Eleazar Díaz Rangel, diretor do jornal Ultimas Notícias.


Sem conversa


Após a tentativa de diálogo com diferentes setores da sociedade, em dezembro, a oposição organizou uma greve patronal que durou mais de 60 dias. A produção de petróleo caiu drasticamente e a crise afetou transportes, bancos e produção de alimentos. André Cañizalles, integrante do Centro de Investigación de la Comunicación da Universidade Andrè Bello, avaliou que o golpe foi um erro da oposição venezuelana e que contribuiu para radicalizar o processo. Para Cañizalles, o início do governo Chávez foi mais plural, e a radicalização começou em 2002.


‘Este é um momento, em 2002, que a mídia em geral e as grandes cadeias de televisão se aliaram abertamente contra o governo, perderam a perspectiva crítica que têm de ter em relação aos outros poderes: econômicos, políticos, a oposição. E creio que ali cometeram muitos outros graves erros, justamente alimentando uma posição política que se reduzia a tirar o Chávez do poder’, disse. A mídia silenciou sobre a volta do presidente venezuelano ao poder e isso foi nocivo à democracia, na opinião de Cañizalles. A presença de Chávez no comando do país, mesmo que não se concorde com ela, correspondia ao desejo da maioria que o elegeu.


Na volta do debate ao vivo, Dines destacou que, mais uma vez, os entrevistados tinham posições políticas diferentes mas concordaram que a mídia radicalizou e não soube exercer o seu papel. Bojunga avaliou que a mídia partidarizada teve o ‘seu pior papel’ em 2002. Uma prova disso é que o golpe nasceu em um estúdio de televisão, na Venevisión. ‘Enquanto as ruas pegavam fogo, a mídia se omitia. As televisões colocavam no ar desenhos de Tom & Jerry’, lembrou. O jornalista explicou que o posicionamento dos meios de comunicação foi apoiado pela ‘América de Bush’.


Dines comentou que a polarização é travada sobretudo na arena televisiva. Bojunga explicou que Chávez tem consciência do poder de penetração da televisão nas camadas mais pobres da sociedade, por isso concentra suas ações na mídia eletrônica. ‘Mas a imprensa escrita, na medida em que a crise vai avançando, o projeto hegemônico comunicativo se implantando e as violências surgindo, vai na verdade desenvolver um papel crítico extremamente importante’, analisou Bojunga.


A verdade que não interessa


O terceiro e último bloco do programa discutiu a polarização do país ocorrida a partir de 2002. Para Maryclen Steeling, a conciliação parece impossível mesmo para um povo culturalmente pacífico porque as partes envolvidas não estão interessadas em pedir perdão nem em perdoar. É necessária uma avaliação psicossocial, mas os atores sociais não estão dispostos a chegar a um acordo.


‘Paralelamente transitam duas Venezuelas, duas verdades e duas representações midiáticas que estão como que em calçadas opostas. Aqui está o país bolivariano e aqui está o país da oposição. Nos olhamos pela rua, mas não vamos atravessar a rua para dar a mão porque não nos perdoamos’, destacou Maryclen. Ela disse ainda que a batalha ideológica na Venezuela transcorre na mídia – privada e estatal – e não através dos canais políticos. E quem alimenta a impossibilidade de conciliação é a própria mídia. Há uma ‘guerra civil midiática’, uma guerra psicológica, na opinião da socióloga.


Ewald Sharfernberg, do Instituto Prensa y Sociedad (IPYS), avaliou que a polarização torna cada vez mais difícil a convivência das diferenças. ‘Cada vez o outro é menos humano e mais uma coisa. É uma espécie de diabo que pensa coisas equivocadas e a quem eu tenho direito de suprimir. E isso, em termos de convivência social, é uma tragédia’, avaliou. Cria-se um ambiente no qual não só é difícil estabelecer a verdade, como também ninguém deseja que ela seja apurada.


O ringue televisivo


‘A primeira vítima da polarização é a verdade. Na realidade, existe um lado que espera uma versão da realidade e um outro, que espera outra versão da realidade; e qualquer matiz entre eles é visto como uma traição. E isto tem feito com que o jornalismo seja outra vítima desta polarização, porque os meios não estão muito interessados nesse jornalismo, mas sim em divulgar posições políticas. E o público também não está esperando se informar’, criticou Ewald Sharfernberg. O cidadão acompanha a imprensa para confirmar suas posições. Busca notícias apenas nos veículos identificados com sua posição política. Neste cenário, não só é difícil encontrar a verdade, como também ‘ninguém deseja que se estabeleça a verdade’, afirmou.


Para Teodoro Petkoff, a Venezuela não tem canais para processar suas diferenças. ‘De um lado, temos um governo que se diz de esquerda – mas que acho fascistóide; não fascista, fascistóide –, que se considera a si mesmo a encarnação da Justiça, da Verdade, da História. Em consequência, trata todos que se opõem a seus métodos como inimigos. Não têm o direito de se opor à justiça, à Verdade, à História. Típico dos fundamentalismos da esquerda e da direita. Negam a existência do outro. É um governo que demoniza a oposição, não distingue matizes nela’, disse. Em suma: classifica todas as correntes da oposição de ‘golpistas’ e não dialoga.


André Cañizalles disse estar preocupado com o ‘processo de deterioração’ ocorrido na Venezuela nos últimos meses. No final de julho deste ano, 34 estações de rádio foram fechadas. ‘Persiste um discurso muito agressivo em relação aos meios, muito questionador por parte do presidente Chávez. Eu acredito que isso ajuda e tem alimentado ações como a que se viveu em agosto, quando um grupo de jornalistas da cadeia Capriles [do Ultimas Noticias] foi agredido brutalmente nas ruas de Caracas. Estavam com uns cartazes pedindo liberdade de expressão e foram espancados’, disse.


Ewald Sharfernberg avaliou a polarização: ‘Se você consome a imprensa chavista terá um olhar do mundo que exclui completamente o que é importante para a outra imprensa, e vice-versa. A imprensa de oposição tem um olhar que não inclui feitos que são muito relevantes para os outros meios. Isso me parece uma imagem de que vivemos em uma espécie de esquizofrenia: a verdade será uma cor ou outra cor, porque não há cores intermediárias’.


[O segundo e último programa da série será exibido em na terça-feira, 24/11]


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Guerra civil midiática


Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV n. 528, exibido em 10/11/2009


 


A Venezuela está nas primeiras páginas há sete anos consecutivos. Sempre acompanhada por sua mídia. Mas a mídia brasileira ainda não se animou a oferecer um relato amplo e contextualizado sobre uma crise que se alastra pelo continente e transborda perigosamente para outras esferas.


Mesmo na condição de protagonista, a mídia não pode ignorar que também é observadora e mediadora. Sem mediação e intermediação, um conflito, qualquer conflito, corre o risco de explodir. O drama venezuelano torna-se cada vez mais premente na medida em que o demorado confronto fechou todos os acessos ao diálogo. Os rancores correm soltos e nestas circunstâncias é imperioso soar os alarmes para evitar uma ruptura incontornável.


Este Observatório da Imprensa foi criado dentro do pressuposto de que a liberdade de expressão é um direito fundamental, inalienável, intocável, cláusula básica do regime democrático. Mas o dever de informar com isenção é a sua decorrência obrigatória, imediata.


Nosso compromisso com a busca da paz e do entendimento reforça a nossa convicção de que guerras e confrontos não são soluções, só provocam outras guerras e confrontos. Este compromisso levou-nos a enviar a Caracas uma equipe especial: o experimentado jornalista e autor Claudio Bojunga e o diretor José Araripe Jr.


Ouvimos as partes, mas não somos juízes – abdicamos da tentação de apontar quem tem razão. Nos contentamos apenas em mostrar as razões de cada grupo, certos de que a mídia não pode ser convertida em campo de batalha.

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Jornalista