O calor me sufoca dentro do ônibus 438, linha Barão de Drummond-Leblon. Salto na Praça da Bandeira. As imagens se turvam e ondulam com as emanações que partem do asfalto. Engulo uma lasanha verde num restaurante meia-bunda da Rua do Matoso, servido por um velho garçom de gravata borboleta e paletó puído. Dali, sob o sol cruel, metido no meu terno da Ducal, inicio a minha árdua caminhada.
O belo chafariz de bronze cheio de barrocas platibandas (depois transferido para o espaço que sobrou com a demolição do Palácio Monroe, na Cinelândia) conforta os transeuntes com gotículas que parecem chuva, mas logo se evaporam no ar quente. Tenho que chegar à UH às 14 horas. Conforme o tempo, apresso ou diminuo o passo e vou observando a vida em volta.
Muitos anos depois dessas minhas jornadas diárias, vim a saber, lendo a biografia de Carmen Miranda escrita por Ruy Castro, que a Sotero dos Reis não deixa de ter sua história. Foi naquela rua remota que se instalou a gravadora de discos alemã Brunswick, uma das primeiras do país, onde a Pequena Notável gravou o seu primeiro disco, em 1929, despontando dali para a fama. Considero que em 1970, 41 anos depois daquele grande acontecimento, nenhuma empresa estrangeira escolheria o lugar para montar uma filial. Algumas fachadas ainda guardavam os resquícios de um antigo requinte, pois a Sotero dos Reis fazia parte do imperial bairro de São Cristóvão e não muito longe dali fica o palácio da Quinta da Boa Vista, onde moraram D. João VI, D. Pedro I e D. Pedro II. Mas agora o clima geral era de decadência: botequins com garrafas de cachaça empoeiradas lotando as prateleiras, pequenas metalúrgicas e uma porção de oficinas onde os mecânicos, com os macacões sujos de graxa, consertavam automóveis pelas calçadas.
Aplausos, com os atores
Para se chegar à Sotero dos Reis era preciso atravessar antes a Praça da Bandeira. Travessia difícil: automóveis, ônibus e caminhões surgiam como bólidos, de todos os lados. Não foi por acaso que Nelson Rodrigues fez daquele logradouro cenário da primeira cena de O beijo no asfalto. Um rapaz cai, atropelado por um lotação, e enquanto agoniza pede um beijo na boca a um passante eventual, o personagem Arandir, que correra para socorrê-lo. A cena foi testemunhada por um repórter venal, dado às maiores canalhices. Ele vislumbra ali uma boa história e, auxiliado por seus amigos da polícia, passa a escrever reportagens sensacionalistas envolvendo Arandir num suposto caso homossexual.
O repórter do Beijo no asfalto se chama Amado Ribeiro, da Última Hora, apresentado por Nelson no preâmbulo como ‘um cafajeste dionisíaco’. Haviam me dito que o Amado da vida real processara o dramaturgo por causa daquela menção pouco honrosa. E deve haver um fundo de verdade nisso: uma foto do Arquivo Público de São Paulo mostra o repórter de polícia, devidamente assessorado por seu advogado, assinando documento em que autoriza o uso de seu nome na primeira montagem de Beijo do Asfalto, pelo grupo do Teatro dos Sete, em 1961.
Não sei se Amado recebeu royalties por sua concessão. De todo modo, a partir daí, parece ter assumido inteiramente o alter ego ficcional.
Quando assistia a uma remontagem do Beijo no asfalto, no Teatro Gláucio Gil, nos anos 1980, o famoso repórter de polícia estava lá, num lugar de honra da primeira fila. No fim do espetáculo, foi chamado ao palco para colher os aplausos junto com os atores. Ocorrência estranha. Deixou-me a impressão de que o Amado devia ter, de fato, afinidades com aquele personagem, capaz de gestos abomináveis contanto que lhe rendessem uma boa notícia.
A vantagem das linotipos
A Praça da Bandeira não era perigosa só por causa do trânsito caótico. Uma vez, um homem ia passando por lá tranqüilamente quando ocorreu uma explosão numa oficina, a alguns quarteirões de distância. Uma lâmina desprendeu-se, voou longe e, por um azar inacreditável, foi atingi-lo no meio da praça, decapitando-o num só golpe. Pior do que qualquer cena bolada por Nelson Rodrigues. Sei disso porque vi a foto pavorosa – a cabeça do homem no chão, sem o resto do corpo, cercada por quatro tristonhas velas quase consumidas – nos arquivos da UH.
Os arquivos ficavam do outro lado da rua, em frente ao prédio da Redação, junto da garagem que abrigava a frota de jipes azuis, com o logotipo do jornal escrito em branco na carroceria, em que saíamos para apurar as matérias. Quem entrasse na UH passava obrigatoriamente pela bonita placa de bronze afixada à entrada com o perfil de Samuel moldado em alto relevo de traços modernistas, e com os seguintes dizeres:
‘A Samuel Wainer, que revolucionou o jornalismo brasileiro, elevando, inclusive, o padrão de salários na imprensa, como primeiro passo para a verdadeira dignificação da atividade profissional, na hora decisiva de mais uma grande batalha, homenagem de seus companheiros de Última Hora e Flan. Rio – São Paulo. Junho de 53.’
No andar térreo, em frente, dava-se de cara com o elevador e a cabine da telefonista. Quem seguisse direto pela lateral ia parar no restaurante do Waldinar Ranulpho. Logo à esquerda de quem entrava ficavam os linotipistas. É, sou da era das linotipos, lembram? Claro que muita gente se lembra, não faz tanto tempo assim. É que os progressos no setor ocorreram muito rapidamente – da linotipo ao offset, e depois do offset à impressão computadorizada foi apenas um passo.
Reconheçamos que as linotipos, até se tornarem, de uma hora para outra, peças de museu, marcavam mais presença que os computadores. Presença imponente, pelo aspecto pré-histórico e pelo barulho que faziam. Tinham ainda uma outra vantagem: observando o desempenho daquelas máquinas fabulosas, pelo menos entendíamos perfeitamente, ao contrário do que acontece hoje em relação aos computadores, como e por que funcionavam.
Recomendava-se leite; tomavam pinga
As linotipos representaram um formidável avanço, foram uma das grandes invenções do século 20. Substituíram com muita vantagem o trabalho artesanal de escolher letra por letra, as maiúsculas na caixa de cima, as minúsculas na caixa de baixo, para com elas se ir compondo cada palavra, cada frase, cada período, até formar o artigo inteiro, a página inteira, o jornal inteiro.
À distância, entrando no prédio da UH, já se podiam ouvir os clangores daquelas formidáveis geringonças, que Luiz Fernando Verissimo chamou de ‘siderúrgicas ambulantes’. Na verdade, nem ambulantes eram, pois jamais saíam do lugar. O operador, à frente, ao mesmo tempo em que lia as laudas descidas da redação, com os textos a serem compostos em letra de fôrma, ia trabalhando no teclado, que a cada toque de dedo fazia acionar complicados e ruidosos mecanismos.
Do seu lado direito ficava a ‘tainha’, uma peça de chumbo que tinha realmente o formato de um peixe e que ia derretendo aos poucos, desprendendo uma quentura infernal e transformando-se em letras com as quais se preenchiam as páginas. Inicialmente páginas de chumbo, emolduradas de ferro, que ninguém agüentava carregar. Tinham de ser transferidas de um lugar a outro sobre carrinhos com roda. Moldava-se a partir delas o flã, tipo de papelão especial onde se imprimiam em relevo as páginas que tinham sido compostas em metal. Do flã se moldava a ‘telha’, também em chumbo. Tinha mesmo o formato de uma telha, o que permitia o seu encaixe perfeito na rotativa.
Por esse processo tão árduo – que não sei nem se consegui explicar de forma correta, pois conheci só de ver – faziam-se, no entanto, jornais de porte enciclopédico, com centenas e centenas de páginas que, para serem lidas, se precisava tirar um domingo inteiro.
Os operadores das linotipos trabalhavam sob um calor de 60°C ou mais. Alguns usavam uma toalhinha no pescoço para absorver o suor. Recomendava-se que tomassem leite como antídoto ao efeito tóxico do chumbo, responsável por uma doença chamada saturnismo. Mas a maioria preferia mesmo uma boa garrafa de pinga, que ficava escondida aos pés da máquina e que ia esvaziando à medida que a ‘tainha’ ia derretendo e diminuindo de tamanho.
Ciúmes e deferência
A Redação ficava no segundo andar do prédio. A nova fase do jornal, com Washington Novaes no comando, fora anunciada por uma boa campanha publicitária, elaborada por conceituada agência, que apresentava ao leitor, em anúncios de alto nível, publicados nas próprias páginas da Última Hora, alguns dos talentos da casa, qualificados por alguma frase de espírito relacionada a seu trabalho e à sua qualificação profissional.
Um desses anúncios trazia o retrato de Amado Ribeiro diante de uma máquina de escrever e vinha escrito em cima: ‘Comeu um sanduíche entre os cadáveres!’ Como se pode ver, tratava-se de uma metatítulo, digamos assim, inspirado nas manchetes de um típico jornal popular – daqueles que, como se dizia, vertiam sangue se alguém espremesse.
Perguntei ao tarimbado repórter de polícia se aquilo tinha algum fundo de verdade. Ele disse que sim. Fora durante a cobertura do trágico desastre ferroviário da Mangueira, que fez dezenas de mortos, em 1958. Apesar do horripilante cenário em volta, numa demonstração de frieza profissional, Amado não perdeu o apetite e nem deixou de se alimentar.
Com a reforma, o jornal ficara de fato muito mais bonito – eu, inclusive, me identificava mais com aquela tipologia sóbria e moderna adotada pelo Washington e com as manchetes mais ponderadas e discretas, informativas, mas sem muita apelação. Mas acredito que lá dentro muita gente não gostava e, mais ainda, se sentia alijada do projeto. Ciúmes do Samuel Wainer, que passou a tratar o Washington, um estranho no ninho, ex-revista Visão, com a maior deferência, virtualmente desprezando a chamada prata da casa.
Intrigas e boicote sistemático
Talvez a reforma não tenha dado os resultados de vendagem a que Wainer aspirava. Talvez os temperamentos dos dois não tenham se afinado. O fato é que esse período de reforma não durou muito. Um belo dia, Washington despediu-se de todos os repórteres e redatores, um a um, cortesmente, e foi embora. Mais tarde, com a seriedade de sempre, se dedicaria à causa ecológica.
Não deve ter sido muito diferente da experiência de Janio de Freitas, que comandou uma reforma na UH, embora bem mais ampla, três anos antes de Novaes. Seu relato talvez ajude a compreender um pouco a complexa psicologia do fundador da UH. Janio estava tranqüilamente em casa, preparando-se para dormir, quando, à meia-noite, o telefone tocou. Era Samuel, de Paris. Disse que precisava encontrar-se com ele com a maior urgência. Assunto: a salvação do seu jornal.
A UH enviou passagens de ida e volta para Janio e no dia seguinte lá estava ele, hospedado num hotelzinho do 16° arrondissement, bem próximo à Rue Davioud, onde morava Samuel. Durante dez dias, os dois tiveram longas e extenuantes reuniões diárias. Exibindo documentos e gráficos, Samuel deu a Janio um quadro completo da situação periclitante do seu jornal. Não o queria apenas como diretor de Redação, mas como diretor-geral, atuando também no setor administrativo, com carta-branca para fazer todas as mudanças que quisesse.
Janio aceitou o convite. Tinha experiência no ramo. Alguns anos antes comandara a bem-sucedida e hoje quase lendária reforma do Jornal do Brasil. Compôs uma pequena equipe, de cinco profissionais de confiança, e iniciou suas novas funções em fevereiro de 1967. Ocupava uma sala do terceiro andar para tratar da administração do jornal; à noite descia à Redação para fechar a primeira página. A tarefa era árdua, agravada pelas intrigas e ciumeiras muitas vezes estimuladas, paradoxalmente, pelo próprio Samuel, de seu posto em Paris, e pelo boicote sistemático de alguns jornalistas da casa, que não viam com bons olhos a sua orientação.
Processado pelo fisco francês
O objetivo de Janio era libertar a Última Hora do velho carma getulista: ‘Queria apenas fazer um bom jornal’. E talvez essa sua assumida neutralidade tenha servido de pretexto para os desentendimentos diários que passaria a ter com o pessoal do ‘Partidão’, que na época cultivava, com certa competência, uma espécie de reserva de mercado nas mais importantes redações cariocas. Quem não compartilhava de suas posições era visto como um ‘cara de direita’, o pior xingamento que podia existir. Não era o caso de Janio. Talvez o seu problema fosse que se posicionava, conforme depoimento a este livro, à esquerda do Partidão, o que a rigor dava no mesmo: não fazia parte da patota.
Na verdade, as escaramuças diárias tinham menos a ver com ideologia que com pragmatismo; os comunistas, afinal, também precisavam de cargos e salários. Apesar de todas as dificuldades, a UH decolou na gestão JF. A tiragem foi aumentando mês a mês, e Janio ainda guarda uma pesquisa da Marplan, realizada no final de 1967, segundo a qual a UH vendia mais, no período, que qualquer outro jornal do Rio de Janeiro. O dono da UH devia ficar muito feliz com esses resultados, mas não foi o que aconteceu.
As coisas não iam muito bem para Samuel, na França. Em 1967, cansado de ficar telefonando a todo o instante para a UH a fim de saber como estavam as coisas, mas sem nada com o que se ocupar de forma objetiva em Paris, Samuel resolveu dar uma de Cecil B. DeMille e virou produtor de um filme chamado Os pastores da desordem, dirigido pelo excêntrico diretor grego Nico Papatakis. O filme, aliás, exibido por alguns poucos dias no cinema Paissandu, do Rio, foi um fracasso de bilheteria. Samuel precisava de dinheiro, e isso vai explicar a confusão em que se meteu com o fisco francês.
Usando privilégios de que profissionais de imprensa gozavam na França, Samuel adquiriu um Alfa Romeo do ano totalmente isento de impostos – e por isso, bem baratinho. Levou aquela maravilha sobre rodas até a Grécia e lá a vendeu, pelo preço de mercado. Foi um ótimo negócio para Samuel, que certamente não teria feito se pudesse pesar as conseqüências. No Brasil, podia ser considerado um pecadilho passável. Era mais ou menos comum que diplomatas, políticos, figurões da República, enfim, se valessem de benesses daquele tipo em proveito próprio. Na França, não. Uma transação como a de Samuel era considerada delito fiscal grave, pois tratava-se de levar vantagem pessoal com dinheiro público, que normalmente teria de ser recolhido ao erário. Processado pelo fisco e, além disso, tendo de pagar as contas pendentes do seu filme fracassado, Samuel achou que era hora de voltar para o Brasil. E, se tivesse de exilar-se de novo, não poderia retornar à França, pois tornara-se persona non grata na terra de De Gaulle.
Apenas um pretexto
O dono da UH mantinha boas relações com Magalhães Pinto, que o socorrera algumas vezes. Dono do Banco Nacional de Minas Gerais, tornara-se, no governo Costa e Silva, ministro das Relações Exteriores. Acredita-se que o glabro banqueiro, agora no poder, tenha facilitado, em outubro de 1967, a sua volta, que aconteceu sem maiores problemas. A partir daí, Janio começou a perceber que seu reinado estava chegando ao fim.
Era como naquela piada do escorpião que pegou carona no dorso de um castor para atravessar o rio. Por um lado, o jornal ia bem. Por outro, conforme ele próprio confidenciou a amigos, não estava no sangue de Samuel admitir que qualquer outro que não fosse ele pudesse estar no comando do seu jornal. Ele queria interferir e mandar em tudo. Afinal, era o velho Samuel Wainer que estava de volta. Janio tinha muito poder – naquele período, mais até que o próprio Samuel – e esta seria a fonte de todos os conflitos.
O diálogo com o patrão não durou muito mais que um mês. Numa noite de novembro, Samuel convocou Janio para uma conversa reservada. Escolheu um território neutro: o apartamento da filha de João Etcheverry, um de seus principais auxiliares. Janio pressentiu que vinha chumbo grosso, como de fato veio. Samuel e Janio sentaram-se em volta de uma mesa. Etcheverry, de quem falaremos mais tarde, preferiu ficar à distância, aboletado numa poltrona, sem participar da conversa. Samuel não estava satisfeito com a reforma de Janio? Claro que estava. Só que achava o seu projeto ainda tímido demais. Queria mais, muito mais. Tinha planos grandiosos para o futuro da UH! Quereria ele reeditar a extinta Rede Nacional de Última Hora? Mais ou menos isso, só que agora em bases realistas, num esquema mais ambicioso ainda.
Foi nesse ponto que Janio começou a divergir do patrão. Na verdade, ele achava toda aquela conversa uma loucura. Estava fazendo o maior esforço para reerguer a UH, com ótimos resultados, e agora Samuel considerava a sua contribuição modesta? Sentiu que era tudo um pretexto para que ele pulasse fora, e de fato era.
De volta à linha ortodoxa
Com que dinheiro Samuel realizaria os seus planos megalomaníacos? O próprio Samuel tinha a solução. Tirou do bolso um papelzinho. Num lado vinham as iniciais S.W., e abaixo dez nomes de banqueiros e empresários – a nata da ‘burguesia nacional’ –, aos quais se podia pedir dinheiro. Este pedaço do papel ficava a cargo de Samuel. No verso da folha vinham as iniciais J.F., seguidas da lista das dez pessoas que Janio devia procurar para levantar fundos. Conforme os planos de Samuel, cada um dos vinte patrocinadores deveria entrar com 50 milhões de cruzeiros. Assim, no final das contas, poderiam contar com a fortuna de 1 bilhão de cruzeiros, o suficiente para reconduzir a UH à sua fase áurea.
Encabeçava a lista de Samuel, Janio pôde ler, o nome do banqueiro Walther Moreira Salles. A sua, ele não quis nem ver. Não era especialista em captação de recursos. Considerou que não fazia parte das suas atribuições e nem era do seu temperamento meter-se num negócio tão, para dizer o mínimo, mirabolante. Declarou, ali mesmo, na frente de Samuel, que estava fora. Levantou-se e saiu sem cumprimentar o agora ex-patrão, não sem antes adverti-lo de que a UH, com ele no comando e com o aquele seu estilo de comandar, ‘ia estourar’ em breve. Estourou três anos e cinco meses depois. Janio voltou à Sotero dos Reis e pediu a um contínuo que embrulhasse os seus pertences. Sua reforma, que durou exatos dez meses, chegara ao fim.
Em 1970, com a saída de Washington Novaes, assumiu o seu lugar na UH como diretor de Redação o repórter Pinheiro Júnior, cria da casa, à qual serviu por 17 anos, quase o tempo que durou o jornal, assinando reportagens de grande repercussão, como aquela que revelou os segredos da chamada ‘juventude transviada’ da zona sul carioca.
No dia seguinte ao adeus de Novaes, a UH voltou ao que era dantes, com suas manchetes de impacto e a primeira página toda tomada por fotos, vinhetas e uma gama de pequenas notícias que chamavam a atenção, mas enfeavam o conjunto. Pinheiro Júnior, via-se bem, era mais afeiçoado à linha ortodoxa da UH. Queria um jornal mais popular, uma estética mais ‘povão’. E era compreensível. Ele começara a trabalhar na UH muito jovem, saído do serviço militar, quando ainda estudava Jornalismo, e era aquele velho estilo que ele conhecia bem e ademais fizera o sucesso da UH na sua melhor fase.
‘Informação e contestação’
Vejo Pinheiro Júnior, cabelos grisalhos, mas ainda moço, sentado à sua mesa. Sozinho, circunspecto, examinando papéis, vez por outra passa a mão pela cabeça como se quisesse livrá-la do peso das novas responsabilidades. Veste-se no mesmo estilo do chefe: camisa de marinheiro, embora de mangas curtas, e um fiapo de gravata azul escura com o nó frouxo pendendo do colarinho.
Na sua gestão, a UH reabilita recursos que tinham saído de moda durante a reforma de Washington Novaes. O jovem repórter Sérgio Martins passa a escrever folhetins ilustrados, ao estilo das histórias em quadrinhos, retomando uma velha tradição da UH. A cada dia, um novo capítulo do romance. Sérgio Martins fazia isso com muito talento. Assim como fazia com talento um tipo de ‘jornalismo verdade’ que estivera em voga em outros tempos. Era quando o repórter se caracterizava como mendigo, por exemplo, ou se fazia passar por camelô, e depois relatava sua experiência aos leitores, com algumas pitadas de literatura. Com o Sérgio Martins, resolvem radicalizar. Simulam uma tentativa de suicídio, toda fotografada à distância. O repórter entra inteiramente vestido no mar de Copacabana. Outro repórter, Jaime Srur, finge que é o passante que o salva da morte. Sérgio Martins é levado por Srur ao Hospital Pinel, para doentes mentais, onde é internado. Até aí foi fácil. O difícil, dias depois, foi convencer os diretores do Pinel que aquilo não passava de uma reportagem e a assinarem a alta do Sérgio Martins. Por causa do trâmite burocrático, ele tornou-se, involuntariamente, um personagem de O alienista. Ao que se dizia, a estada no Pinel lhe deixou seqüelas psicológicas. Jurou que jamais repetiria esse tipo de experiência.
O mestre das manchetes, ao estilo clássico da UH, era o veterano João Ribeiro. Outro manchetista que marcara época no jornal, Flávio de Brito, não estava mais lá em 1970, e por isso não o conheci. Foi ele o autor daquele título – ‘Eleições, só de miss’ – que Samuel, no exílio, desaprovara. Flávio gostava de títulos espirituosos. Por causa de uma manchetinha de sua autoria – ‘Caiu a ditadura lá no Vietnã’ –, foi chamado à sede do I Exército, onde um coronel passou a explicar-lhe a ‘diferença entre informação e contestação’. Contestação, no caso, seria o advérbio ‘lá’ que o jornalista incluíra maldosamente no título.
Criação autêntica
João Ribeiro, um fã incondicional de Samuel, permaneceu na UH depois da saída de Flávio de Brito, e eu tive o prazer de conhecê-lo. Era um maranhense alto e magro, boa praça, que gostava de olhar a gente nos olhos, bem de perto, como que investigando-nos com suas lentes tipo fundo de garrafa. Tinha estrabismo ou problema ocular semelhante. Enquanto um olho observava o interlocutor, o outro se voltava para o infinito, como se estivesse solto assim de propósito, no éter, já antevendo a página do dia seguinte. Maurício Azêdo, no livro Nos tempos de Wainer, fez um relato do seu curioso método de trabalho:
‘Para fazer as manchetes, em duas linhas de 20 batidas, às vezes com menos caracteres – 13 ou 16 batidas de máquina, e os títulos secundários, em duas ou três linhas curtíssimas, por vezes de apenas quatro, cinco ou seis batidas –, João mastigava dezenas de laudas. Colocava o papel na máquina, fazia três, quatro tentativas, arrancava o papel da máquina, esmagava-o com os dentes, como se fosse comê-lo, e partia para outra tentativa. Nos intervalos de uma ou outra lauda assim consumida, colocava um descongestionante nas narinas, talvez obstruídas por uma reação psicossomática desse angustiante e fecundo trabalho de criação. Ao fim de duas ou três horas de deglutição, saía perfeita a vitrina do jornal.’
João Ribeiro era o poeta das manchetes. Tinha o costume, quem sabe herdado de Flávio de Brito, de ler em voz alta, a bem dizer declamando, para que todos ouvissem, cada nova criação sua. Ficava remoendo e escandindo as sílabas dos títulos e manchetes como que testando o impacto que pudessem ter junto ao leitor. Lembro que um dia chegou empolgado ao jornal. Vivia-se o suspense da Apolo 13, a nave espacial que se perdera no espaço pondo a vida da tripulação e o prestígio da Nasa em perigo. A Nasa tentava orientar os tripulantes em vôo cego para um pouso seguro, mas as chances de sucesso eram remotas. Ninguém desgrudava os olhos da TV para ver o que aconteceria nas horas seguintes. Era como um filme de Hollywood rodado em tempo real. O episódio seria, aliás, transposto mais tarde para o cinema.
Se fosse na gestão Washington Novaes, o fato teria merecido uma manchete do tipo ‘Perdidos no espaço – Apolo 13 deixa mundo em suspense’. Mas não na nova velha fase em que João Ribeiro saía do recolhimento involuntário, retomando o velho prestígio com toda a força do seu talento. ‘Tenho a manchete’, avisou. E ela era a seguinte: ‘Vem queimando a nave louca’.
Ele repetia essas palavras e prolongava determinadas sílabas experimentando todas as possíveis entonações: ‘Vem-quaeimaaaando-a-nave-looouca’. Esta manchete por sinal foi recusada, mas isso não quer dizer que João Ribeiro não tenha continuado a dar asas à sua criatividade em proveito do jornal a que tanto se dedicava.
O Museu do Futebol, inaugurado em 2008 em São Paulo, exibe numa vitrine a primeira página da UH saudando a conquista da taça Jules Rimet pela seleção brasileira: ‘Curvou-se o mundo diante do maior futebol do Universo!’ Não tenho dúvida: trata-se de uma autêntica criação de João Ribeiro, só comparável, em matéria de emoção futebolística, a uma outra, esta reconhecidamente sua, que também entrou para a história das manchetes: ‘Morreu gritando gol!’
***
Nota do autor
A rotativa parou! deveria ter sido um artigo em homenagem a Samuel Wainer e a sua heróica e malfadada Última Hora, a propósito dos duzentos anos de imprensa no Brasil e do centenário da ABI, comemorados em 2008. Mas foram tantas as lembranças que me foram surgindo do curto período em que passei na UH que o artigo foi crescendo, desdobrou-se em capítulos e acabou se transformando neste livro.
O que o leitor encontrará aqui é o relato das singelas aventuras de um pobre repórter em começo de carreira, que colhe ‘abobrinhas’ pelas ruas do Rio para rechear as páginas de um jornal sob censura, mortalmente ferido pelo golpe de 1964.
Se vejo uma razão para publicá-las, ela estaria no fato de que o conteúdo pode ser útil aos estudantes de Comunicação. Os mais jovens poderão recolher nestas páginas, acredito, o testemunho sobre um período que, a esta altura, levando em conta a rapidez das mudanças que ocorreram na imprensa nos últimos quarenta anos, já pertence à pré-história do jornalismo brasileiro. Não se trata de um livro de historiador, e nem é este o perfil do autor. Até porque outros autores, Samuel Wainer, principalmente, já contaram com mais propriedade e precisão a história da UH. São apenas flashes, fiapos de lembranças e observações a que tentei imprimir algum sentido e nexo.
Para contextualizar fatos e nomes, recorri a alguma pesquisa e a alguns poucos depoimentos, mas o que tenho de verdade a acrescentar a tudo o que já se escreveu sobre a UH é pura matéria de memória. E, como sabe o leitor, a memória nos engana e trai. Peço, portanto, desculpas antecipadas por possíveis equívocos ou algum anacronismo envolvendo fatos e pessoas aqui citados. Preferia, na verdade, que este livro fosse lido como uma obra de ficção, embora não o seja propriamente.
Enriquece sobremaneira a presente edição o conjunto de fotografias que a acompanha, valorizando e complementando o texto. São imagens inéditas, ou quase inéditas, já que publicadas, no mínimo, há quarenta anos, que integram um valioso patrimônio hoje sob a guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo – destino final do acervo fotográfico da UH carioca.
São vinte anos de cobertura sistemática dos grandes acontecimentos do Brasil e do mundo. Não fossem a sensibilidade da autoridade que as acolheu e o denodo dos funcionários que por elas zelam, essas imagens poderiam ter-se perdido para sempre. Agora estão à disposição do público e foram de grande valia no projeto deste livro.
Lamentavelmente, nem sempre, ou quase nunca, é possível identificar os autores das fotos; no espaço do verso destinado ao nome do fotógrafo ou aparecem garranchos intraduzíveis, ou então as fotos vêm assinadas, simplesmente, pela ‘equipe’ do jornal – entidade coletiva de singular talento e bravura à qual o autor rende, aqui, a sua homenagem.
***
Benício Medeiros foi repórter e crítico literário da revista Veja, redator da revista IstoÉ, editor do Jornal da Globo, editorialista do Jornal do Brasil e editor-executivo da revista Manchete. Atualmente é diretor de jornalismo da ABI e editor da Revista do Livro da Biblioteca Nacional. É autor de A poeira da glória (Relume Dumará, 1998) e Brilho e sombra (Bem-Te-Vi, 2006), sobre a vida e obra de Otto Lara Resende.
******
Jornalista