Um outro mundo é possível, mas se for desorganizado como o Fórum Social Mundial que acabou sem propostas, em Belém, talvez ninguém queira morar lá. A cobertura das 2.000 palestras, tendas temáticas, programações culturais impressas num catatau de 143 páginas num jornal tipo Diário Oficial deixou os jornalistas enlouquecidos. As letrinhas eram minúsculas e ao escolher uma ou outra atividade para cobrir o jornalista penava por que não havia mapas. Como saber a distância entre os três locais de realização do FSM: o Hangar, a Universidade Federal do Pará (UFPA) e a Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA)? Chegar ao local até se chegava, mas, e depois?
Eram 5.623 mil jornalistas credenciados, segundo o site do FSM, dos quais 3.139 do Brasil e os demais vindos de 70 países. Como encontrar a tenda, a sala, o palco se não havia letreiros nem setas e se as voluntárias sequer sabiam onde estavam? Solução: sala de imprensa da UFPA com muitos computadores, todos cedidos pela Bélgica… com teclados belgas, sem mais informações. Nos primeiros dias, os computadores nem funcionavam.
Era desesperante para um jornalista credenciado descobrir o que se passava – e onde. Porque a tal programação impressa acabou logo no primeiro dia e, ao se credenciar, o profissional de imprensa sequer recebia informação oral. O site, onde a programação deveria constar, não abria, e assim os jornalistas chegavam depois da hora à palestra que pretendiam cobrir, iam a uma faculdade quando deveriam estar noutra, andavam quilômetros debaixo do sol e da chuva diários para constatar que o que iam assistir já havia acontecido.
Um barqueiro chegou a informar que era mais perto ir de barco de uma faculdade à outra, quando na verdade de táxi ou ônibus levava-se apenas 15 minutos. A viagem deslumbrante pelo rio Guamá fez a alegria de alguns palestrantes ao verem índios pendurados em árvores, mas também perderam a hora: o trajeto era lindo, mas levava mais de uma hora, ainda com uma longa estrada de terra batida, cheia de poças, a percorrer. O guarda, na beira do barco, indicava a distância: ‘São três quilômetros’.
O jornalista húngaro Zoltán Dujisin, da Terra Viva, teve queimadura de segundo grau no rosto por andar de um lado para o outro ‘e nunca chegar a tempo onde deveria cobrir’, queixou-se. Uma jornalista cubana desesperou-se ao entrar no banheiro feminino da sala de imprensa, um terror de agressão ao meio ambiente pelo mau cheiro e sujeira: ‘Já esperei seis horas para ver se limpavam, não sei quantas agüento mais’.
Não havia kombis, conduções ligeiras de um pólo a outro, e os ônibus desgovernados com tanta gente pela primeira vez em Belém não paravam no ponto, não davam conta da multidão e deixavam os táxis como única opção. Mas ninguém avisou que o engarrafamento, por exemplo, do Hangar à UFPA, poderia levar uma hora. Que saudade de São Paulo. Num calor de 40ºC.
Woodstock tropical?
Uma anunciada entrevista com os cinco presidentes prendeu por quatro horas uma tropa de jornalistas em vão. Quatro deles – Hugo Chávez, da Venezuela, Evo Morales, da Bolívia, Fernando Lugo, do Paraguai, e Rafael Correa, do Equador – acharam melhor participar da mesa dos 25 anos de MST, para a qual Lula não foi convidado. Mas ninguém avisou a imprensa, que mofou à espera da coletiva. No dia seguinte, quando foi anunciada uma possível entrevista de Lula, ninguém acreditou. Aí Lula falou, por 15 minutos, para a imprensa estrangeira, no subsolo do Hotel Hilton.
Os jornalistas, de tanto andar de um lugar para o outro, aprenderam que no Fórum Social Mundial se tratou da importância da capoeira no mundo, da cidadania de lésbicas, gays, transexuais e bissexuais, da aceitação dos umbandistas e afro-religiosos, da defesa da terra paraguaia, do direito de decidir das católicas e das mulheres do Piauí. Pelo caminho, batas, saiões, sandalhões, bolsas de couro, camisetas de Che, Mao, Lênin, Gandhi, movimento pela libertação de Cesare Battisti com a inscrição ‘Libertas quae sera tamen’, um enorme boneco de Sarney sendo levado para a ‘prisão’, um cartaz com a inscrição ‘Petrobras assassina’ – embora a Petrobras tenha doado R$ 200 mil para a organização do Fórum.
Queimou-se a bandeira americana, usou-se o logotipo da Coca-Cola com a inscrição ‘Abaixo o Capitalismo’. Woodstock tropical? 1968 revivido? Cheiro de maconha, como nos anos 1960, 70. Gente concentrada meditando durante horas na relva.
‘Tem tanto evento por aí…’
Na luta contra o sistema e o establishment, CDs piratas eram vendidos a R$ 3 e por três DVDs pagava-se R$ 10. Na tentativa de socializar o espaço, houve gente furando a fila do banheiro alegando ‘isto aqui é social’, querendo tomar lugares marcados por alguém que estava tomando água lá fora porque ‘agora não há privilégio, não’, e chamando de ‘burguês’ quem pedia ordem e silêncio durante a palestra dos cinco presidentes latino-americanos.
Foi bonita a festa, e outro mundo é possível, sim. Mas a cobertura foi impossível. Os palestrantes mais sérios falaram para poucos e organizações como a francesa CADTM Internacional reclamaram que tiveram de imprimir sua própria programação e distribuir para quem passasse, uma questão de sorte.
Depois de uma semana, era possível aprender a locomoção dentro do campus universitário, mas aí o Fórum acabou, com 250 toneladas de lixo acumuladas. Muita gente optou por tomar banho no rio, improvisar um campinho de futebol, pintar o rosto por R$ 10 como ofereciam os índios de cocar, tanga e flecha.
Quando os jornalistas reclamavam que perderam o foco da cobertura, os voluntários aconselhavam a cobrir outra coisa – ‘tem tanto evento por aí’. Ou perguntavam: ‘Você nunca cobriu um Fórum Social?’ Alguns olhavam desconfiados esses ‘defensores da ordem’ burgueses: ‘Não sabem o que é um mundo alternativo?’
Quem sabe deveriam estar cobrindo os inimigos no Fórum organizado de Davos, na Suíça?
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Jornalista