Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

À publicidade o que é da publicidade

Após dois artigos que escrevi recentemente sobre a máquina de propaganda dos governos (‘O ecossistema da publicidade oficial‘ e ‘O Estado-anunciante‘, ambos publicados em O Estado de S. Paulo, nos dias 15 e 29 de janeiro, e também neste Observatório), recebi reações que justificam uma retomada do assunto. Não para fazer esclarecimentos ou correções, uma vez que não tenho o que corrigir, mas para afirmar princípios gerais sobre os quais não pode haver dúvida.


Ponto 1. As estatais, sua atividade de mercado e sua atividade de palanque


As estatais devem anunciar, sim, mas apenas como parte de suas estratégias comerciais. Uma das maiores distorções da publicidade governamental é o uso de campanhas de empresas estatais para fazer proselitismo governista. É claro que bancos estatais, como o Banco do Brasil e outros, disputam mercado. Por isso, devem anunciar, exatamente como fazem os bancos particulares. O mesmo vale para outras empresas públicas.


Ocorre que, com uma freqüência constrangedora, a ‘assinatura’ de peças de propaganda dessas instituições – as ‘assinaturas’, no jargão publicitário, são os logotipos que aparecem ao final da peça – promovem, além da marca comercial da empresa, o símbolo do governo ao qual ela está vinculada. Há outras distorções. Há mesmo campanhas inteiras, pagas por estatais, que não têm nenhuma finalidade de mercado. Seriam, oficialmente, campanhas ‘institucionais’, sem objetivo comercial. Na prática, são campanha política. Sob esse selo, o de ‘campanha institucional’, propagam slogans, causas, motes mais ou menos ufanistas e chapas-brancas.


Aí está o pior problema com a publicidade das estatais. Todo dia a gente vê algo desse tipo no rádio e na televisão. Felizmente, pouco a pouco, a sociedade vai se dando conta de que há algo, não de podre, mas de esquisito no reino da propaganda de governo. Pouco a pouco, a sociedade começa a reagir. Agora mesmo, na terça-feira (3/2), a Folha de S.Paulo noticia que ‘Comercial da Sabesp em rede nacional vira alvo do TRE-RJ’. A reportagem de André Zahar e Catia Seabra saiu na página A8. Reproduzo, abaixo, as primeiras linhas da matéria, que merece ser lida na íntegra:




‘O TRE (Tribunal Regional Eleitoral) do Rio pediu às TVs Globo e Bandeirantes informações a respeito de campanhas publicitárias da Sabesp (Companhia de Saneamento de São Paulo) veiculadas no Estado. Só à Globo foram pagos R$ 7,450 milhões para participação da campanha nacional de verão.


O TRE quer analisar eventual uso da máquina em benefício de possível candidatura do governador José Serra (PSDB) à Presidência. As inserções foram exibidas pela Globo duas vezes por dia, durante 45 dias, de dezembro a janeiro.


Segundo ofício da emissora ao tribunal, a agência Nova S/B pagou um total R$ 7,450 milhões para patrocinar a campanha. Uma das inserções, de cinco segundos, foi ao ar antes do Mundialito Feminino de Triatlo Rápido. O evento, realizado em Balneário Camboriú (SC), teve exibição nacional.


O pacote também incluiu a exibição, em cadeia nacional, de peças publicitárias do projeto Onda Limpa veiculadas anteriormente apenas em São Paulo. Em uma delas, a locução: `O governo do Estado traz uma onda de boas notícias para o litoral paulista´.’


Aqui não importa tanto o desfecho da história. A Sabesp tem ou não tem razão? Deixemos esse debate com a Justiça. Como a empresa paulista pensa em expandir suas atividades para outros estados, alegou em nota que a campanha faz parte desse movimento de expansão. Isso, enfim, será julgado – e não é, como eu disse, o que mais importa. O que deve ser destacado é que a sociedade está abrindo os olhos para os potenciais desvios da atividade publicitária das estatais na direção de promover pessoas, partidos, personalidades, candidatos, idolatrias e tudo o mais que temos visto sem descanso. Talvez a velha prática de politizar deslavadamente as propagandas de Estado ou de estatais esteja chegando, não ao fim, mas pelo menos a uma contradição mais explícita com a cultura democrática. Que isso comece a ser discutido com seriedade é muito bom.


Portanto, estatais devem anunciar, sem a menor dúvida, mas quando isso é comercialmente justificável. Podem fazer campanhas institucionais? Claro que sim. Todas as organizações se valem dessas campanhas. O que elas não podem é fazer proselitismo partidário ou governista.


2. O poder de fogo da propaganda oficial


E por que não pode? Simples: isso desequilibra o jogo democrático. De posse das estatais e de suas verbas no mercado anunciante, os governos amplificam seu poder de fogo na formação da opinião pública. Além dos seus recursos próprios, que já são hipertrofiados, contam também com os recursos das estatais para falar bem de si próprios. Com isso, mesmo na entressafra das campanhas eleitorais propriamente ditas, permanecem bombardeando a audiência para fortalecer positivamente a imagem de quem governa. Depois, quando a campanha eleitoral começa, quem está no poder já sai em clara vantagem na disputa.


A outra questão – talvez a mais grave – é que os governos dispõem de um volume tal de dinheiro para injetar no mercado anunciante que se põem em condições, ao menos em tese, de influenciar o comportamento dos órgãos de imprensa mais vulneráveis a pressões políticas. Isso conspira contra a liberdade de imprensa. O montante de verbas públicas no mercado anunciante, conforme demonstrei em artigos anteriores, é francamente desproporcional e desequilibra as coisas.


3. Publicidade não é ruim – desde que não seja estatizada


A publicidade é uma atividade legítima e necessária. Jamais neguei o lugar essencial que ela ocupa e deve ocupar. Sem publicidade, a imprensa livre não poderia ter se viabilizado e, sem ela, não haveria democracia. Mas quando a publicidade é estatizada, sobretudo por vias obscuras, inconfessas, e quando essa estatização se dá segundo critérios partidários ou governistas, aí não temos mais o cultivo dos valores próprios da liberdade e da democracia. É a isso que temos, cada vez mais, que prestar a nossa atenção.

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Jornalista, professor-doutor da Escola de Comunicações e Artes da USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da mesma universidade