Se o comunismo hoje já não seduz a juventude, sendo mais uma manifestação folclórica ou peça de museu, já houve tempo em que era uma palavra generosa que corria o mundo e incendiava corações e mentes, motivando centenas de pessoas a arriscar a vida em favor dos deserdados da terra. Como se sabe, os velhos anarquistas sempre tiveram razão: o comunismo daqueles que lideraram partidos e sindicatos, que diziam falar em nome do povo e defendiam uma ditadura transitória para um socialismo idílico, muitas vezes, acabava onde começava a própria algibeira.
Nos países em que chegaram ao poder, os comunistas fizeram, não raro, pior do que aqueles a quem acusavam de despóticos e sanguinários: organizaram campos de concentração que nada ficaram a dever aos dos nazistas, mandaram fuzilar antigos companheiros de aventura, avançaram no erário público, chafurdaram em negociatas, perseguiram e eliminaram adversários, viveram como nababos, construíram fortunas que colocaram a salvo no exterior e outras tantas iniqüidades.
Dessa história, porém, ficaram exemplos de idealismo daqueles que se sacrificaram em nome de uma causa que se mostrou falaciosa e falida. No Brasil, um desses exemplos é o jornalista Francisco Ribeiro do Nascimento, mais conhecido como Chiquinho, que, aos 77 anos, decidiu registrar um pedaço de sua vida dentro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partidão.
Com tantas histórias para contar, Chiquinho, porém, não tratou de escrever suas memórias nem de reconstituir o passado de acordo com suas conveniências, como fizeram tantos, mas reuniu em livro patrocinado pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo e editado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 91 edições do jornal Tribuna do Pará, de Belém, referentes ao período que vai de 3 de julho de 1954 a 31 de agosto de 1958, tempo em que foi jornalista e, ocasionalmente, diretor da publicação.
Mais importante que as folhas microfilmadas que assinalam um tempo de intenso combate político e social no país, é o registro da própria vida do autor do livro reconstituída em prefácio pelo presidente do Sindicato dos Jornalistas, Fred Ghedini: nascido na Ilha de Marajó, Chiquinho teve dez filhos com sua única companheira e nunca se afastou da coerência política que sempre o fez denunciar e lutar contra as injustiças sociais. Estudante secundário em 1945, quando o Brasil foi democratizado, entrou, aos 18 anos de idade, no PCB recém-legalizado. Reconhece até hoje que esse partido foi a sua ‘universidade’ e responsável por sua formação humanística, mas, em 1983, depois de 38 anos de militância, preferiu deixar a agremiação.
Estilo passional
Nesse intervalo de tempo, enfrentou muitas dificuldades. Em 1954, quando trabalhava como técnico de laboratório em Parintins, no Amazonas, foi preso por liderar uma manifestação que comemorava o aniversário do líder comunista Luís Carlos Prestes. Dez anos mais tarde, quando houve o golpe militar que silenciou e amordaçou a nação, Chiquinho mergulhou na clandestinidade para não ser preso e torturado.
Teve de deixar a família à própria sorte, abandonando Belém às escondidas, viajando de carona rumo ao Sul. Radicou-se em Santos com nome falso, fez força para disfarçar não só o sotaque nortista como para evitar o seu palavreado revolucionário da época, sobrevivendo como vendedor ambulante. Quando pôde, pediu à família que viesse se reunir a ele. Como jornalista militante, desde 1982, participou das atividades da delegacia regional do Sindicato dos Jornalistas em Santos.
Páginas de Resistência: a imprensa comunista até o golpe militar de 1964 – esse o título do livro – resgata do esquecimento, na verdade, apenas uma pequena parte da imprensa ligada ao Partidão, ainda que apresente uma lista de periódicos de linha comunista até 1964, além de prestar uma homenagem a militantes assassinados pela ditadura. Se a leitura da Tribuna do Pará dos anos 50, com seu estilo passional e participativo, semelhante em seus arroubos ao Hora do Povo de hoje, pouco tem a ensinar ao estudante de Jornalismo, muito tem a contribuir aos estudos que procuram recuperar a história da imprensa nacional, muitas vezes apenas restrita à chamada grande imprensa.
Vozes contra a injustiça
Se algum paralelo se pode traçar entre épocas já distantes, é que a tão injusta e desigual sociedade brasileira pouco mudou, pois as notícias estampadas pela Tribuna do Pará na década de 1950 ainda são rigorosamente iguais às que costumamos ver na imprensa tradicional de hoje: reforma agrária, conflitos e assassinatos no campo, salários indignos, desemprego, imperialismo, grilagem de terras, opressão dos latifundiários, trabalho escravo em fazendas.
O jornal Tribuna do Pará, fundado em 1946 e extinto em 1958, fez parte da imprensa popular — não só comunista, aliás — que antecedeu a imprensa alternativa, de atuação marcante durante os 21 anos da ditadura (1964-1985). Ao contrário da imprensa alternativa, que já rendeu bons livros como os de Bernardo Kucinski e Rivaldo Chinem, a imprensa popular anterior ao golpe de 1964 ainda não encontrou o seu grande historiador.
Portanto, com seu livro, Chiquinho dá uma importante contribuição para um trabalho de maior fôlego que ainda está à espera de um grande pesquisador, ao mesmo tempo em que passa às novas gerações uma lição de vida: a história daqueles que nunca capitularam diante dos poderosos e jamais calaram diante das injustiças e que, por isso mesmo, foram mais fortes que o mundo que os sucedeu.
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Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – O perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003)