Brasília, abril de 2005
A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), o Fórum Nacional de Professores de Jornalismo (FNPJ) e a Sociedade Brasileira dos Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), reafirmando entendimento já expresso em documento conjunto entregue em outubro de 2004 ao ministro da Educação, Tarso Genro – de que consideram ‘necessária e urgente uma reforma universitária que venha dar conta de resgatar o justo e imprescindível papel da Universidade brasileira’ – passam a evidenciar aqui suas observações acerca do Anteprojeto da Lei de Educação Superior, divulgado no último dia 6 de dezembro de 2004. Começamos o documento com as considerações de cunho mais geral e terminamos com as preocupações específicas do campo do jornalismo.
1)
Observações geraisDe início, já colocamos como positivo o simples fato de estar em curso um debate sobre a reformulação do ensino superior brasileiro, justamente pela nossa compreensão de que a universidade brasileira há muito carece dela.
Numa análise mais ampla, consideramos que a proposta de reforma universitária apresentada pelo MEC apresenta aspectos positivos quando, pelo menos nas suas conceituações e definições gerais, dá sinais de que pode tentar construir uma ‘Universidade vinculada a um processo de emancipação nacional, envolvendo a produção do conhecimento, da ciência, tecnologia, cultura (no seu sentido mais amplo) e valores humanísticos como forma de superação da dependência econômica e de estímulo ao desenvolvimento com uma distribuição mais eqüitativa das riquezas produzidas’, conforme reivindicamos no nosso documento anterior.
Observamos movimento nessa direção, em pontos do anteprojeto que estabelecem, entre outros, a submissão à função social como contrapartida à liberdade de ensino, a vinculação e a interligação de todo o ensino superior em um Sistema Federal de Ensino Superior, integração das instituições de educação superior com a sociedade, criação dos Conselhos Comunitários, comprometimento de todo o sistema de ensino superior com os demais sistemas e com o desenvolvimento científico, tecnológico e cultural do País, Plano de Carreira e Piso Nacional, eleição direta para reitor nas universidades públicas, eleição (pela respectiva comunidade acadêmica) de pelo menos um dirigente no nível de pró-reitor nas instituições privadas, limitação da participação da entidade mantenedora e dos membros da estrutura administrativa no Conselho Superior da instituição privada, capital majoritariamente nacional nas instituições de ensino privadas, criação da Conferência Nacional de Educação e outros aspectos.
Relembrando nosso documento anterior – no qual alertamos para a necessidade de conter a crescente privatização do ensino superior brasileiro, que ultrapassa 70% das vagas, uma das mais altas taxas do mundo, e para a necessidade de criação de mecanismos capazes de garantir o compromisso social com a educação, especialmente de parte de determinadas instituições privadas –, destacamos positivamente os artigos 2º e 6º do Anteprojeto que afirmam, respectivamente: ‘A educação superior cumpre função social quanto às atividades de ensino, pesquisa e extensão, desenvolvidas e prestadas no seu âmbito’; ‘A liberdade de ensino à iniciativa privada será exercida em razão e nos limites da função social da educação superior’.
Ao mesmo tempo, porém – e agora passamos a ressaltar pontos que consideramos preocupantes e/ou por demais vagos na reforma, muitos dos quais, inclusive, vão contra o que defendemos como reformulação justa e necessária no ensino superior brasileiro –, o anteprojeto não aprofunda a definição do sentido da expressão ‘função social’ nem explicita, em artigos subseqüentes, como se dará o cumprimento deste preceito na prática e na estruturação da universidade. Tememos, por exemplo, que seja insuficiente considerar como função social a pura e simples realização da atividade-fim, isto é, que se considere por plenamente cumprida a função social com a ‘formação de jovens’ ou a ‘oferta de oportunidade de acesso a uma profissão de nível superior’, o que, em si, é insuficiente, porque pode simplesmente estar mascarando uma realidade de ensino de baixa qualidade, de atividade mercantil e descomprometida com uma formação de alto nível.
Embora a defesa da responsabilidade social do ensino superior perpasse todo o anteprojeto, em vários artigos há contradição com esta defesa, como, por exemplo, aqueles que acabam permitindo a cobrança nas universidades públicas por cursos de extensão. Essa falta de clareza, na nossa opinião, pode gerar distorções que acabarão por comprometer irremediavelmente o direito da sociedade a um ensino superior público, gratuito e de qualidade.
Outra observação preocupante sobre o anteprojeto é o do papel do Conselho Nacional de Educação (CNE), que fica com grande responsabilidade na definição das políticas de educação superior, recebendo a função de controle, fiscalização e estabelecimento de normas. Consideramos que esse papel central pode, sim, ser delegado ao Conselho, desde que sua composição atual seja revisada, bem como os mecanismos de escolha de seus membros, hoje nomeados pelo presidente da República. Isso porque, atualmente, inclui representação majoritária das instituições privadas e, portanto, a visão para o ensino dominante nesse segmento. Infelizmente, não observamos no anteprojeto qualquer modificação ou movimento no sentido de rever a composição e os mecanismos de escolha do CNE.
A questão da autonomia também não está suficientemente clara e o mesmo se pode alertar em relação ao financiamento das universidades públicas, com a conseqüente, necessária e urgente ampliação dos seus números de vagas, esta sempre acompanhada do necessário aumento do quadro de professores. A autonomia (parece) e, neste caso a medida poderia atingir tanto instituições públicas como privadas, é ameaçada por algumas contradições que emergem do anteprojeto, uma delas a de estabelecer que o PDI seja submetido ao MEC. Neste caso deveria ficar claro que o PDI seria enviado ao MEC para o acompanhamento da execução das metas mas que a submissão seria feita às Comissões de Avaliação Institucional e das Condições de Ensino, que deveriam exarar um parecer sobre a adequação do plano ao sistema nacional de educação superior, as condições de infra-estrutura da instituição e as demandas da realidade local.
O caso das fundações também preocupa. Por um lado, a maioria delas acabou se constituindo em verdadeira universidade paralela e representa um enorme problema do ponto de vista ético-moral, já que várias se transformaram em espaço de corrupção (alvo constante das investigações do Ministério Público), em foco de desvio e de aumento de preocupação de administradores e professores das instituições e, até, de práticas carreiristas por parte de docentes, representando, enfim, uma forma de privatização das universidades públicas. Por outro, o fim das fundações sem uma contrapartida clara por parte da União e uma flexibilização na Lei de Gestão Orçamentária gera apreensão, e pode mais prejudicar que ajudar a manutenção de uma universidade pública e de qualidade.
Outro aspecto que merece preocupação está relacionado aos programas de formação continuada (Art. 7º, inciso IV), notadamente os ‘cursos de estudos posteriores ao ensino médio ou equivalentes, que não configurem graduação’ (alínea a) e ‘cursos seqüenciais’ (alínea b). No primeiro caso, não está claro de que tipo de cursos se trata, se podem ser enquadrados como cursos universitários, que tipo de certificação permitem. Em ambos os casos, podem dar margem a que instituições atraiam seus clientes garantindo os mesmos direitos profissionais e vantagens legais assegurados aos que freqüentam cursos regulares de graduação, só que com menor duração e com evidente prejuízo para a qualidade, para a sociedade e para a organização profissional. Nesse caso, nem a emissão de diferentes documentos de conclusão de curso, como prevê o Art. 7º, parágrafos 1º e 2º, parece ser suficiente para impedir o exercício irregular e precário de diversas profissões. Ao contrário, estimula-o e reveste-o de legitimidade, como a realidade já demonstrou.
Parecem-nos pouco expressivas, por insuficientes, as exigências de um terço do quadro total de professores com dedicação exclusiva para as universidades e um quinto para os centros universitários. Isso pode representar um problema de vinculação acadêmica e de dedicação efetiva ao ensino, de atualização profissional e intelectual, atualização eficaz de conteúdos e, sobretudo, dedicação à extensão e pesquisa. É claro que a dedicação exclusiva requer remuneração compatível. Da mesma forma, e por óbvias razões de qualidade, consideramos insuficiente a exigência de um terço do quadro dos centros universitários com mestrado e doutorado.
Não está claro o que é o curso congênere, previsto no Art. 26, parágrafo 1º, que os centros universitários poderão criar. Além de não estar claro, parece-nos que já vivemos exageradas subdivisões nos cursos, muitas das quais apenas se justificam como alternativa comercial aos proprietários de escolas. Poderíamos ter um curso congênere (genérico?) de jornalismo, por exemplo? Isso prejudicaria seriamente a luta que as entidades signatárias desse documento têm travado pelo reconhecimento da especificidade profissional e teórica do jornalismo e pela qualidade do ensino, pesquisa e extensão.
Outra dúvida que levantamos é sobre a missão, função e objetivos do ensino superior. O texto parece evidenciar e privilegiar somente um aspecto da formação: o do mercado. Isso contraria a nossa posição histórica e, em outros aspectos, o espírito do próprio Anteprojeto já elogiado aqui, quando propõe a vinculação a objetivos sociais, ao projeto de soberania nacional, entre outros fatores. Evidente que o ensino universitário não pode desconhecer as demandas das indústrias locais, contribuindo para o desenvolvimento regional e, no nosso caso, para a produção de uma informação jornalística de melhor qualidade, mas tampouco deve desconsiderar outro aspecto que consideramos essencial: a formação para a cidadania e a geração de conhecimento..
Quanto ao aumento de vagas no ensino público, que também defendemos, é preciso explicitar no Anteprojeto o comprometimento do Estado com o proporcional aumento do quadro docente. Da mesma forma, entendemos que valorização profissional dos docentes e servidores técnicos e administrativos começa com uma boa e justa remuneração. Também aqui o texto legal precisa ser explícito. Possivelmente, se possa colocar entre as disposições transitórias que até determinada data (2010, por exemplo) o Estado promoverá a recuperação do poder aquisitivo dos salários até atingir os níveis praticados em 1998, quando foi promulgada a atual Constituição Federal, comprometendo-se a mantê-lo daí por diante, sem prejuízo de sua ampliação.
Também vemos com apreensão a delegação de competência aos Estados para autorizar e supervisionar funcionamento de instituições privadas de educação superior não-universitárias. Cabe esclarecer, primeiro, o que são instituições de ensino superior não-universitárias. Estão na mesma linha dos cursos congêneres? Podem dar a mesma brecha legal ou não-legal que os cursos seqüenciais? De qualquer forma, parece temerário que se delegue aos Estados tal poder. É sabida a capacidade de governantes de realizarem os mais diversos desejos daqueles que os apóiam nas eleições, entre eles, várias donos de escolas privadas, um dos setores que mais cresce na economia nacional.
Quanto à redução das desigualdades regionais, acreditamos que não é suficiente o ‘investimento em ensino e pesquisa e de formação de professores e pesquisadores’ (Art. 3º, VI). Precisa haver também por parte do MEC, pelos menos por um certo tempo, políticas diferenciadas de distribuição de recursos para as regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste, a exemplo do que já fazem as agências de fomento à pesquisa.
A princípio, vemos como positiva a medida que institui a figura do professor associado (Art.93), se ela facilitar a atuação na Universidade de profissionais altamente qualificados que atuam no mercado. Mas lembramos que isso exige uma regulamentação cuidadosa para evitar que a exceção possa no futuro vir a se transformar numa norma.
Finalizando esse tópico, acreditamos que o Anteprojeto seja contraditório: de um lado avança no sentido de instituir, ou possibilitar, a participação da sociedade na avaliação da produção universitária; De outro, constitui um modelo de coordenação do processo de totalmente centralizado e dependente do Governo Federal. É preciso discutir melhor o modelo da CONAES, que comanda todo o processo de avaliação. Como está, é uma instância controlada pelo Ministério, o que contraria inclusive o discurso que norteia a reforma, que preconiza a divisão de poder com a sociedade civil. Muito diferente do sistema da CAPES para a Pós-Graduação, em que cada área indica seus representantes. Neste caso, os próprios representantes da sociedade, ainda que em número minoritário, são indicados pelo ministro. Esta parece ser uma ressalva prévia essencial.
Acrescentamos que a participação da sociedade precisa se dar não só de forma global, isto é, avaliação da instituição (universidade, centro universitário ou faculdade), mas inserindo-a nos processos avaliativos de cada curso e integrando um sistema permanente de avaliação – nacional, estadual e por escola. Sugerimos o formato das Comissões de Gestão da Qualidade da Formação em Jornalismo, previstas no Programa Nacional de Estímulo à Qualidade da Formação em Jornalismo, hoje assinado pela Compós, Abecom, Intercom, Enecos, FNPJ, além da proponente Fenaj, é uma medida a ser adotada e aprofundada. O programa prevê a participação de alunos, professores, representantes do empresariado (quando houver) e da categoria profissional. Essas comissões podem ser acrescidas da representação do público diretamente atingido/beneficiário do trabalho realizado pelos profissionais da área. Enfim, são comissões que podem variar de composição, devido à especificidade de área, mas seu caráter é de pluralidade na composição e sistematicidade e regularidade na avaliação e gestão da formação. Regulamentação e normatização posterior terá que aprofundar, detalhar e especificar todo o sistema de avaliação.
2) As preocupações específicas do campo do jornalismo
Como também ressaltamos no nosso documento anterior, para o campo do jornalismo, que é um dos que congrega uma categoria profissional das mais preocupadas com a educação, o Anteprojeto trouxe pontos por demais preocupantes, em especial no caso da imposição do chamado ‘ciclo básico’ e também no que se refere à redução do tempo de duração do curso. Este último aspecto representará um grave retrocesso pedagógico na formação superior específica dos jornalistas e terminará por destruir escolas de jornalismo de excelente qualidade que vêm servindo de referência para melhorar e aperfeiçoar o ensino universitário brasileiro, principalmente na área da comunicação.
No nosso documento anterior já advertimos para a ocorrência deste retrocesso, ferindo principalmente a essencial especificidade do curso ou habilitação de jornalismo, se voltasse a ser implantado o ciclo básico, neste Anteprojeto denominado ‘estudos de formação geral’ na graduação.
O ciclo básico, já imposto uma vez à Universidade brasileira na reforma promovida pela ditadura militar e duramente superado pela evolução da educação superior brasileira nestes anos, reaparece agora no Art. 21 como ‘possibilidade’, mas no § 3? do inciso II do mesmo artigo revela-se uma imposição, na medida em que a aceitação desta possibilidade ‘será considerada positivamente na avaliação das instituições’, o que agride a autonomia didático-científica das universidades ‘garantida’ pelo Art. 16 do mesmo anteprojeto e assim viola o Art. 207 da Constituição que pretende regulamentar.
O ciclo e o diploma de ‘estudos de formação geral’ representam uma tradução colonizada da estrutura dos colleges que vigora no ensino superior dos Estados Unidos e que em nosso contexto servirá como paliativo ao fracasso do ensino médio, matéria-prima da manipulação estatística de políticas públicas e fator de lucratividade das fábricas de diplomas privadas. Aliados à diminuição do tempo mínimo de graduação de quatro para três anos, podem significar um desastre para todas as áreas profissionais que dependem de formação superior de qualidade, com graves conseqüências para a sociedade brasileira e para o desenvolvimento nacional sustentável.
É preciso, de fato, romper com uma tradição positivista e mercantilista de um ensino extremamente tecnificado ou especializado, de forma compartimentada e apartada do patrimônio de conhecimentos acumulados pela sociedade em todas as áreas. É preciso, de fato, lembrar que não se produz conhecimento no isolamento absoluto, como se não dependesse, em maior ou menor grau, de outros saberes. E é necessário, de fato, introduzir no ensino a reflexão crítica do conhecimento que se produz, inserindo-o sempre numa perspectiva humana e de formação para a cidadania, o que requer, naturalmente, um certo nível de interdisciplinaridade e reflexão filosófica a respeito desse saber e da sociedade, em qualquer área do ensino.
No entanto, Interdisciplinaridade não pode ser tomada como eliminação das especificidades. A interdisciplinaridade – que é em si muito salutar, e no caso do jornalismo dependemos muito da formação humanista e dos conhecimentos acumulados em outras áreas – tem de ser lida como a comunicação entre as disciplinas e não a fusão delas, porque a fusão significa a sua diluição, a transformação delas em algo novo. Em alguns casos, é o que precisa ocorrer – e neste exato momento a interdisciplinaridade, que pressupõe a existência de pelo menos duas disciplinas, cede lugar à unidisciplinaridade –, mas em outros é o que deve ser evitado, exatamente para não adotarmos de forma acrítica posturas contrárias às defendidas pelos especialistas de cada campo e que podem fortalecer os interesses econômicos do mercado, que são, na maioria das vezes, o contrário da formação crítica/cidadã, e que não-raro têm prejudicado a qualidade da formação.
Inter quer dizer entre, portanto, o contato, a comunicação, o diálogo para, no caso de disciplinas, potencializar o conhecimento de cada uma delas, mas sem anular aquilo que lhes é próprio ou específico. Anular a disciplina jornalismo como um campo de conhecimento e uma prática profissional específicos, por exemplo, em favor de uma hipotética disciplina comunicação, certamente trará prejuízos muito sérios para a qualidade da formação profissional e, conseqüentemente, para a sociedade. Entre outras razões porque isso desvia o foco da essencial reflexão sobre a técnica e a teoria específicas do jornalismo como singular forma de conhecimento e de mediação social. Também não é demais lembrar que não existe na prática social e legal a profissão de comunicador social, mas de jornalista, publicitário, cineasta…, que têm não só procedimentos teóricos, técnicos e profissionais distintos, mas também éticos, e de uma maneira muito importante para a sociedade.
Há uma excessiva generalização: dependendo do caso, dois anos de ensino básico generalizante extrapolam muito aquela necessidade de conexão mínima com outros campos do saber. Talvez os cursos de filosofia e possivelmente os de ciências sociais ou história convivam bem com essa medida. No caso de cursos híbridos, como o jornalismo, ao mesmo tempo técnicos e teóricos, não há espaço na proposta do MEC para a necessária ênfase, teórica e técnica, na especificidade do jornalismo, na disciplina do jornalismo. A boa formação em jornalismo depende fundamentalmente da interdisciplinaridade, dos conhecimentos de outras áreas do saber, notadamente das ciências sociais e da filosofia, além daqueles já acumulados pelo campo da comunicação social, mas num limite que permita que o objeto próprio não se perca, e com ele, os seus sujeitos. A história dos cursos de jornalismo fala a favor desse argumento. Após imposições de vários propósitos – sempre políticos, mercadológicos ou ditados por ondas do momento, mas quase nunca de sérios propósitos pedagógicos, inclusive com o interesse ideológico de esvaziar a profissão de jornalista de seu conteúdo e caráter crítico – os outrora cursos de jornalismo polivalentes ou de comunicadores sociais, genéricos, sempre mantiveram um enorme abismo entre o que se ensinava no terreno da teoria (genérica) e aquilo que era trabalhado no espaço da técnica jornalística. O resultado é a formação de profissionais que não conseguem aplicar os conhecimentos teóricos ao seu proceder prático e técnico, tamanho o distanciamento. A proposta atual do MEC retoma isso e impede que os enormes progressos – alcançados às custas de enormes dificuldades, pois tratava-se de remar contra a maré – se consolidem e permitam que ao lado da necessária abertura conceitual não se perca de vista a também necessária reflexão sobre o próprio objeto.
Formalmente separados como estão o ensino geral e a habilitação profissional no Art. 21, temos a confirmação do abismo a que nos referimos acima. E esse abismo se materializa na emissão de certificado específico para essa formação genérica. Seria isso um diploma pela metade? Por outro, seria um curso de ciências humanas ou filosofia pela metade (dois anos) para depois, com conteúdo radicalmente diferente, também em dois anos, no máximo, o aluno realizar, verdadeiramente, o seu curso específico? A necessária interdisciplinaridade não encontra espaço nessa fórmula, pois só se acentua a departamentalização de conhecimentos. É preciso, portanto, assegurar que os conteúdos de cunho humanista e interdisciplinar e voltados para a cidadania insiram-se efetivamente nos cursos, potencializando-os, sem desfigurá-los e descaracterizá-los. Afinal, deve ser também preocupação do ensino superior a formação de profissionais competentes em suas áreas.
O Art. 24 estabelece uma medida que também carece de clareza. Pode o aluno optar por não se matricular em um dos ciclos (básico ou geral e profissional)? Se sim, qual o sentido da opção? A instituição da medida não é compulsória, para evitar que o aluno dela fuja para centrar-se apenas em aspectos técnicos e específicos de sua profissão?
Com a readequação dos campos do saber prevista no Anteprojeto, em que se acaba com as Ciências Sociais Aplicadas, o jornalismo provavelmente ficará dentro das ‘Ciências Humanas e Sociais’. Esta é uma mudança que, por sua radicalidade, deveria ser melhor discutida com os especialistas do campo, até mesmo para se evitar pretensos equívocos do passado que a atual proposta pretende vir a resolver como a inserção do Jornalismo no campo das Ciências Sociais Aplicadas. Enquanto teoria pura, a comunicação pode ser colocada sem problemas no campo das Ciências Humanas e Sociais. Enquanto uma prática profissional, parece evidente que o jornalismo encontra-se no campo das Ciências Sociais Aplicadas, área extinta pelo Anteprojeto. O jornalismo não é uma simples teoria, mas sim uma prática profissional sobre a qual se produz uma teoria. Neste sentido, a sua colocação entre as Ciências Humanas poderia reforçar ainda mais os preconceitos existentes sobre a natureza do jornalismo como uma prática profissional.
Ao nos voltarmos de costas para as Ciências Sociais Aplicadas estaremos aumentando ainda mais a distância entre as necessidades de compreensão do jornalismo como uma prática profissional e as demandas teóricas sobre as especificidades desta prática. Quando o exercício da prática profissional requer cada vez mais o desenvolvimento de tecnologias, seria um grave equívoco enquadrar a priori, sem um aprofundamento da discussão, o jornalismo dentro das Ciências Sociais e Humanas. Neste caso, agravando a situação atual, seríamos julgados nos Comitês Assessores por colegas com outras áreas de formação, sem qualquer conhecimento sobre as singularidades de nosso campo de conhecimento. Lamentavelmente, porque até hoje sofremos a hegemonia das Ciências Sociais e Humanas, que contempla o jornalismo como um campo de estudos, mas que está descomprometida com a contribuição para o aperfeiçoamento da prática profissional, os cursos de pós-graduação no campo comunicação renunciaram, com raras exceções, em privilegiar a pesquisa sobre o jornalismo e, mais do que isso, sequer cogitaram a possibilidade de cumprir com uma de suas funções básicas: o desenvolvimento de pesquisa aplicada para produção de tecnologia que atenda às demandas do jornalismo como uma prática profissional.
3) Considerações finais
Acreditamos que há aspectos positivos no Anteprojeto, alguns deles apontados neste documento, e outros preocupantes ou pouco claros. Entendemos como positiva a proposição de uma reforma e como natural a existência de divergências e um determinado nível de dúvidas quando se trata de reforma tão significativa para a sociedade como esta. Ressaltamos que, quando fazemos objeções ao texto, estas têm a nítida intenção de contribuir e de garantir que a reforma universitária seja realizada incorporando os avanços alcançados ao longo dos últimos anos, principalmente no caso da formação específica no campo do jornalismo na manutenção e ao enquadramento do jornalismo dentro do campo científico. Gostaríamos de destacar que o MEC pode contar com as entidades signatárias como aliadas de primeira hora na defesa do controle público e social de setores estratégicos como a educação e manifestamos o nosso profundo desejo de que tal espírito (público e social) se materialize numa nova Universidade.
As contribuições do campo do jornalismo, elaboradas pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), Sociedade Brasileira de Pesquisadores de Jornalismo (SBPJor) e pelo Fórum Nacional de Professores de Jornalismo (FNPJ), aprofundam documento anterior entregue ao ministro Tarso Genro em outubro de 2004 e refletem a preocupação e debates acumulados durante anos em torno da qualidade do ensino, da pesquisa e da prática profissional em Jornalismo, que se aplicam, em grande medida, às mais diversas áreas em que se exige uma formação técnica especializada.
Entendemos a reforma universitária como um processo que exige um debate em constante aprimoramento e que ainda não atingiu no seio dos três segmentos do jornalismo aqui representados e da própria sociedade toda a extensão e profundidade exigida pelo assunto. Por essa razão, esperamos poder continuar contribuindo durante o processo de tramitação do Anteprojeto no Congresso Nacional, tanto como interlocutores do Ministério da Educação quanto do Parlamento, à medida que nossas posições amadureçam ou que seja requisitada a nossa participação.
Ressaltamos, por fim, que este documento expressa nossa vontade de contribuir apresentando comentários em relação aos aspectos gerais da reforma, ao mesmo tempo em que nos debruçamos sobre o campo específico do jornalismo. Reivindicamos especial atenção às considerações sobre a formação do jornalista, pois se trata de uma profissão e atividade de profunda imbricação com a esfera pública social e que cada vez mais está articulada com uma das principais indústrias das sociedades contemporâneas: a indústria da comunicação e da informação. Daí decorrem sua importância, necessidade e riscos que pode oferecer à sociedade se a formação destes profissionais em vez de incorporar os avanços conquistados em experiências pioneiras em que se alia a formação conceitual sem desconsiderar as demandas da prática profissional, optar-se pelo simples retorno de um modelo de Ciclo Básico, desconectado com as demandas sociais de nosso tempo. Por isso, estamos permanentemente à disposição para esclarecimentos e complementações que se fizerem necessárias, inclusive no posterior processo de regulamentação, normatização e implementação da reforma.
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Respectivamente, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas , presidente do Fórum Nacional de Professores de Jornalismo http://www.professoresjornalismo.jor.br/ e presidente da Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo