‘A minha cama… é uma folha de jornal’ (Noel Rosa)
Depois de Fidel Castro, com suas indispensáveis Reflexiones del comandante, e do presidente da Venezuela, com suas densas argumentações em Las líneas de Chávez, teremos agora a coluna que Lula vai publicar regularmente em jornais espalhados por todo este país, cujo título, conforme está na Mensagem do Executivo enviada ao Congresso, será ‘O presidente responde’. Talvez poucos jornalistas tenham lido o documento, o que não é raro em se tratando de jornalistas – há muitos que não lêem esses documentos. Será interessante ter na mesma página que ataca o Lula, suas respostas, suas interpretações e suas análises para fenômenos.
Trata-se de decisão política relevante, com muitos significados e, sobretudo, abrindo novas janelas para os que lutam para transformar os meios de comunicação, o jornalismo em particular, em instrumentos de civilização e democratização. Primeiramente porque o jornalismo ganha em conteúdo informativo, pois, ninguém duvida, trata-se de um ‘colega’ altamente informado. E ganha também porque raramente alguém com a rica experiência de vida e de história que ele possui, com o olhar crítico popular sobre um jornalismo feito pelas elites e para as elites, tem acesso a escrever.
Muitos críticos já se calaram
Não carece repetir a volumosa tendência antilulista predominante no jornalismo atual, o que tem levado o presidente a criticar com alguma freqüência a mídia, a baixaria televisiva e também um certo jornalismo por lhe causar azia. Pois, a decisão de se transformar um colunista político de jornal indica, primeiramente, que Lula dá um novo passo concreto para transformar o panorama comunicativo brasileiro, muito embora até muitos de seus aliados tenham dificuldades em reconhecer mudanças em curso na área, certamente porque a ditadura midiática, rigorosamente hegemônica e onipresente, ofusca, confunde e cega.
Recapitulemos. Em 2002, um Seminário Nacional de Cultura e Comunicação, realizado em cinco regiões do Brasil, produziu um documento chamado ‘A imaginação a serviço do Brasil’, incorporado como programa na campanha ‘Lula-Presidente’ daquele ano. Este documento programático foi duramente criticado pela mídia conservadora, Veja à frente, como de inclinação ‘bolchevique-caipira’. O documento trazia a proposta da TV Pública a partir da fusão entre Radiobrás e TVE, mais tarde realizada pelo presidente Lula, após convocar o primeiro Fórum Nacional de TVs Públicas ocorrido no Brasil. Trazia ainda a idéia de uma nova relação com as TVs e rádios comunitárias, que só agora, vencendo as dificuldades, começa a se delinear, sobretudo a partir da proposta de descriminalização (rádios-com) e também das várias políticas de audiovisual que podem também alcançar as TVs comunitárias.
Há muitíssimo o que caminhar, mas o sinalizado não está incorreto. Os muitos Pontos de Cultura criados expandem a produção audiovisual comunitária e regional, colocando, é verdade, um bom problema: o de se encontrar espaços de divulgação. Não sem razão, a TV Brasil está fazendo a licitação para instalar repetidoras em 200 cidades de grande e médio porte, o que significa, sim, disputa de audiência. Tímida? Pode ser, mas a direção é corretíssima, confere o que está na Constituição que pede comunicação plural, regionalizada, educativa e civilizatória. Sim, mas tem que chegar aos grotões. Sei o quanto é difícil pedir paciência em comunicação, mas o fundamental agora é ajudar a construir esta TV Brasil e até muitos dos críticos já se calaram…
Vargas e a comunicação
Pois Lula, agora, vai um pouco mais além: ele próprio transforma-se em colunista de jornal o que de certo modo já responde a uma descabido pito acadêmico que erroneamente considerou sua crítica a um jornalismo que faz mal ao fígado, como se fosse elogio à não-leitura. Se desprezasse a leitura, não se transformaria ele próprio em jornalista, disposto com o gesto a enfrentar o debate pouco equilibrado em curso no jornalismo brasileiro, com os conglomerados midiáticos unidos numa linha editorial predominantemente oposicionista ao seu governo.
Se o próprio presidente da República sente a necessidade de responder ele próprio às desinformações e manipulações, ou às sonegações praticadas pela grande mídia contra si e seus atos – inclusive aquela que recebe enorme quantidade de recursos financeiros do governo que ataca, até para produzir, por exemplo, programas como o Telecurso, de boa qualidade educativa, mas inexplicavelmente exibido de madrugada –, imagine-se a vulnerabilidade do cidadão comum indefeso diante do poderio demolidor imagético dos meios!
Lições da história, os presidentes mudam a comunicação. Casos positivos: Perón criou a TV que já nasceu pública na Argentina; Guevara tomou o exemplo da Agência Latina de Perón e criou a Agência Prensa Latina, em Cuba: o general Alvarado, no Peru, foi além, nacionalizando os meios de comunicação e entregando-os aos sindicatos que, sem saber operá-los, os devolveram ao Estado. Chávez criou a Telesur. A grande transformação comunicativa de sentido público havida no Brasil ocorreu na Era Vargas. Juntamente com a industrialização, a nacionalização do subsolo, a criação das empresas estatais estratégicas, do Instituto do Açúcar e do Álcool, para abrir a era da energia da biomassa, e da legislação trabalhista, que começava a tirar os trabalhadores da senzala oligárquica do direito trabalhista-zero, Vargas sentiu também a necessidade de mudanças no plano comunicativo e cultural.
O maior dos presidentes
Tendo criado o Instituto Nacional do Livro, o Instituto Nacional do Cinema, do Teatro, o ensino público obrigatório, o presidente gaúcho, que também havia sido redator de jornal no movimento estudantil, assume a criação da Rádio Nacional, da Rádio Mauá – a Emissora do Trabalhador –, do jornal A Manhã, a União, na Paraíba, tendo inclusive nacionalizado outros periódicos como A Noite, e até O Estado de S. Paulo, durante o período em que o tenente João Alberto, ex-integrante da Coluna Prestes, esteve à frente do governo paulista.
Vargas criou ainda outras publicações, mas duas delas merecem registro: O Pensamento da América, destinado à integração latino-americana, e a Revista Cultura, cuja excelência, em ambas, devia-se à qualidade de seu quadro de redatores, entre os quais Carlos Drummond de Andrade, Gustavo Capanema, Nestor de Hollanda, Clarice Lispector, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira etc. Estas publicações desapareceram, soterradas pela mesma ação demolidora do patrimônio nacional que buscou acabar com a Era Vargas.
É verdade que o sindicalista Lula fez muitas críticas a Vargas, quiçá pela proximidade que tinha com uma certa sociologia paulista, inspirada em valores coloniais-oligárquicos, que mais tarde veio a privatizar a Vale do Rio Doce, a CSN, a Telebrás, a Portobrás e, em boa medida, a Petrobras. Tentaram rebatizá-la de PetrobraX, lembram-se? Faz muito tempo, Lula chegou mesmo a declarar que ‘se Vargas era o pai dos pobres, era a mãe dos ricos’. Talvez, com a experiência de quem tem que tocar o barco, não as repita hoje. Basta dizer, é o próprio presidente que hoje fala que nunca antes os banqueiros ganharam tanto dinheiro como em seu próprio governo.
Mais importante é, debaixo do tiroteio das declarações, numa caminhada de décadas, que fazem a alegria de uma mídia que quer condenar para todo o sempre a Era Vargas, descobrir linhas de coincidências históricas entre Vargas e Lula. Lembrando que Lula chegou a se emocionar quando visitou o túmulo de Vargas em São Borja, acompanhado de Leonel Brizola. E, mais recentemente, baixou decreto criando a ‘Semana Vargas’ para que, segundo explicou, todos conheçam profundamente a obra daquele que foi o maior dos presidentes. Declaração dele.
Integração latino-americana
Pois se Vargas criou a Rádio Nacional, a Rádio Mauá, a Voz do Brasil – instrumento de democratização da informação via rádio acessível a uma esmagadora maioria de brasileiros que ainda hoje, como há décadas, continua proibida da leitura de jornal –, Lula, com o mesmo sentido histórico, criou a TV Brasil, a TV pública brasileira cujo projeto estava sendo trabalhado por Vargas como desdobramento da Rádio Nacional, tendo sido sepultado, junto com o gaúcho, para a alegria do capital estrangeiro, das oligarquias nacionais, dos inimigos eternos dos direitos trabalhistas e também da comunicação pública. Hoje continuam tramando contra a Voz do Brasil, atacam o jornalismo chapa-branca, mas perdoam o jornalismo chapa-oligopólio.
Há outras identidades, mantidas as diferenças de épocas históricas: Vargas deu início ao pró-alcool, montou o trem do álcool, Lula o retoma, o valoriza, o expande contra a pressão das potências estrangeiras – ambos os presidentes buscando a independência nacional energética. Vargas concretizou a campanha ‘O petróleo é nosso’; Lula afirma agora que ‘o petróleo pré-sal é do povo brasileiro, não das transnacionais’, as mesmas que levaram Vargas ao suicídio-golpe. E ainda convocou a UNE a sair ás ruas para uma nova campanha ‘O petróleo é nosso’. Vargas criou o BNDS, o maior banco de fomento do mundo, que FHC usou contra o Brasil na privataria, mas não conseguiu demolir. Lula recupera parcialmente a função social do BNDES, o fortalece enormemente, fortalece o sistema financeiro público. Outras coincidências: a política externa da Era Vargas, como a da Era Lula, afirmativas da integração latino-americana, da soberania nacional, da independência, não é de tirar os sapatos e rebaixar-se ante ordens de qualquer guardinha de alfândega dos EUA…
Ditadura vídeo-financeira
Como o tema é comunicação, a partir da decisão de Lula tornar-se colunista somos levados a pensar num sentido histórico para acreditar que estão sendo criadas as condições para que o mesmo desejo do presidente de democratizar informações, de intensificar o debate democrático de idéias, possa ser feito não apenas com sua coluna, mas com a criação de novos instrumentos de comunicação dirigidos à grande massa que continua proibida de ler jornal. Ou seja, uma idéia leva à outra.
Se somadas todas as tiragens dos pouco mais de 300 jornais diários existentes no Brasil, hoje não alcançamos o número de 7 milhões de exemplares. Ou seja, temos no Brasil indigência de leitura de jornais. Temos aí uma charada que o mercado, por si só, mostrou-se incapaz de resolver: como levar os brasileiros a ter pleno acesso à leitura, tornar acessível a eles uma tecnologia do século 16, a imprensa de Gutenberg?
Seja bem-vindo o presidente Lula ao mundo do jornalismo, até porque, com certeza, se ocupará mais diretamente dos desafios da comunicação que ainda fazem com que o Brasil seja um país com informação controlada por uma ditadura vídeo-financeira. Apesar de que exista uma capacidade ociosa crônica de 50% de nossa indústria gráfica, parada, enquanto o povo não tem o que ler! Isto ilustra quando Lula diz que ainda não resolvemos problemas de outro século…
Um jornal público
Quem sabe, o colunista Lula não esteja já pensando – diante da expectativa positiva que criou ao anunciar que suas próprias palavras serão reproduzidas em centenas de jornais – em como superar os limites impostos pelo sistema de proibição da leitura. Diante de dilema similar de uma mídia de corte oligárquico, que ignora até que a Bolívia é hoje considerado ‘território livre do analfabetismo’ pela Unesco, ou que já retomou corajosamente o controle nacional sobre suas riquezas minerais, Evo Morales viu-se impelido a lançar um jornal do poder público, já que o livre jogo do mercado conduz apenas à concentração, a um jornal para as minorias e a uma linha editorial rigorosamente antipatriótica.
Mercado não democratiza, mercado concentra, carteliza, exclui, discrimina, sonega, embrutece… Como hoje mesmo os inimigos do Estado estão ‘convertidos’ a reconhecer o Estado como solução para a grande crise do capitalismo, no campo da comunicação podemos trabalhar com ainda mais desenvoltura as teses que reivindicam mais protagonismo do Estado: só o fortalecimento da comunicação pública, sua qualificação, sua capacidade de disputar audiência, leitores, poderá finalmente possibilitar que a invenção de Gutenberg seja acessível a todos os brasileiros, como aos bolivianos. Evo alfabetiza e democratiza a leitura. Lula cria a universidade da integração latino-americana, Unila, e torna o ensino do espanhol obrigatório. Muitas identidades. A coluna de jornal de Lula é apenas o primeiro passo, no sentido correto.
Que não se diga que os poderes públicos não podem editar jornal! Será um decreto escrito nas estrelas? Ué, por que os críticos não ficam esbaforidos, nem indignados com o fato de que é o Estado que banca grande parte do jornalismo privado? Mas, jornalismo público, não? Aí seria um crime? Na França existe um jornal editado pela Previdência Social que chega a todos os segurados, e não apenas com notícias previdenciárias. É um jornal, traz notícias do país, do mundo, do futebol, das cidades, do clima, da economia, da cultura.
Por que será impossível pensar que o Programa Bolsa Família, que leva farinha, café, macarrão a 13 milhões de famílias não pode também levar um jornal, talvez o único que os brasileiros pobres possam segurar em suas mãos não para forrar banheiro ou para servir de cama, como na música de Noel Rosa? Mas, um jornal que respeite os mais pobres como cidadãos, que lhes traga informação sobre a vida, sobre o funcionamento da economia que eles, os mais pobres, movimentam. Que não fale apenas de crimes, mas fale dos programas públicos, das oportunidades, da música popular, dos heróis nacionais. Que explique sobre medidas simples para a prevenção de doenças contagiosas, como o câncer de pênis, que pode ser prevenido em boa medida com informação em saúde, mas que os jornais sustentados por anúncios da indústria de medicamentos não querem divulgar. Que lhes dê a oportunidade de criar, finalmente, um hábito de leitura. Convenhamos que isto é impossível se não existe um jornal de distribuição gratuita, com linguagem simples e clara – não nos faltará talento para isto, afinal já demos um Monteiro Lobato, um Paulo Freire, um Ariano Suassuna, somos um país de preciosos cordelistas e payadores, mas que não têm onde escrever.
PAC da informação e da cultura
Este é o grande desafio: está muito bem que Lula seja colunista de jornal, sobretudo por ser cidadão de excepcional inteligência política – muito mais bem informado do que os mais bem informados jornalistas – e com sua capacidade de discernimento e leitura do mundo e de escrever uma outra história política para o povo brasileiro ao ter criado instrumentos, a CUT e o PT, que estimularam a participação direta dos mais pobres e excluídos na vida política e nos destinos do país. Mas esta coluna precisa também de um jornal para que seja lida por milhões, distribuído pelo mesmo mecanismo do Bolsa Família, pelas redes do SUS, pelos sindicatos, fábricas, estádios de futebol, metrôs, ônibus e trens. Já que Lula se animou a entrar no jornalismo, tomara que seja o preâmbulo de um esforço para criar, além da TV Brasil, um jornal para os milhões de brasileiros proibidos da leitura.
Aliás, a EBC é empresa de comunicação, não apenas de rádio e de televisão. Já havia sido levada pelo Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal ao congresso nacional da categoria, mas depois esquecida: um Programa Público de Popularização da Leitura e Edição de Jornal, aproveitando a capacidade ociosa da indústria gráfica. É o PAC da informação e da cultura. Gera emprego, mas, sobretudo, gera um cidadão novo, informado, cidadão completo. A gente não quer só comida, diz a música. Ou, como diz o meu xará, ‘Saciar a fome de pão e a fome de poesia também’. Aquela masturbação acadêmica que procura a porta de saída do Bolsa-Família certamente não poderia rejeitar: além de nutridos, seres humanos com acesso à leitura, para enxergar mais longe na vida e na história.. Os acadêmicos conservadores criticam o povo que não lê; então não podem rechaçar, devem apoiar, que se trabalhe para demolir o sistema de proibição da leitura, né?
Que não se venha a inverter o verdadeiro debate falando de diploma: o desafio é criar um jornal para milhões. Se o Bolsa Família é dos maiores programas sociais do mundo, que ele seja enriquecido com a oferta de um jornal respeitoso ao pobre, civilizador, educativo, lúdico e informativo.
Quanto a diploma, é indispensável, sim, uma regulamentação, mas uma que permita às classes populares o exercício do jornalismo. Fica o tema para debate, mas definitivamente o colunista Lula está dentro da lei, além do que seu único diploma, como declarou de modo comovedor, é o diploma de presidente da República que lhe foi dado por 63 milhões de eleitores-professores.
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Jornalista, diretor da Telesur