A aparição na imprensa (e na mídia em geral) da complexa evolução do caso Battisti torna difícil (salvo para uma equipe de pessoas) uma análise completa das diversas formas de manipulação da informação desde o dia 13 de janeiro até agora. Se for feita uma pesquisa geral sobre a atitude da imprensa tradicional (e até de algum órgão da mídia progressista), assume-se o risco de engrossar o coral de vozes sensacionalistas e dramáticas que evitam, em todos os casos, uma apreciação detalhada e rigorosa. Parece, então, que se justifica uma visão rápida da mídia mais representativa.
A Folha de S.Paulo referiu-se a Battisti, até algumas semanas atrás (e depois de que alguns leitores protestaram, embora não saiba se a mudança resultou desses protestos), como ‘terrorista’. Apesar de não colocar qualquer qualificativo adicional, obviamente aproveitou o estigma que esse vocábulo arrasta desde o atentado em Nova York, em 11 de setembro de 2001. Embora o conceito de terrorista tenha virado quase metafísico, há algumas definições de (pelo menos) o que não é terrorismo. É importante a do próprio STF, que agora está sendo considerado o julgador decisivo neste caso, no acórdão do pedido de extradição da Argentina número 493, decidido em 1989. No parágrafo 5 da Ementa afirma-se:
‘Não constitui terrorismo o ataque frontal a um estabelecimento militar, sem utilização de armas de perigo comum nem criação de riscos generalizados para a população civil…’
Disseminando o preconceito
Tradicionalmente, aceita-se que terrorista é aquele que pratica sistematicamente atos de terrorismo, e terrorismo, por sua vez, é o processo de infundir terror na população e no governo, seja com fins de obter um certo resultado político, seja para demonstrar força etc. Esses atos sempre incluem um ataque que produzirá vítimas alheias ao conflito (civis, em geral) e escolhidas de maneira não seletiva: bombas em aviões, escolas, hospitais, tiroteio indiscriminado, explosão de edifícios etc. O terrorismo é caracterizado por atos seriais e massivos, indiscriminados, cruéis e carentes de sentido prático no contexto dado (o que o diferenciaria da sabotagem, como é a explosão de um veículo que transporta armas para certo esquadrão repressivo, ou coisa similar).
É claro que a circulação de bandas armadas como as Brigadas Vermelhas ou Baader Meinhoff, que cometiam assaltos e executaram algumas pessoas em atos que não eram de auto-defesa, infundia terror não apenas nos setores atingidos, mas também em uma população independente que pensava que podia ser vítima deles. Mas esse terror é colateral e, sem qualquer dúvida, muito menor que o produzido por bombardeios aéreos, aos quais (por que será?) a mídia internacional não qualifica de terrorismo.
Então, supondo que o uso de ‘terrorista’ é feito de boa-fé, o emprego alegórico e não real dessa palavra é uma falta de seriedade dos autores, especialmente tendo em conta a sensibilidade que existe em torno do problema. Outros órgãos se referem a Battisti como ex-terrorista, com o que pretendem mostrar boa vontade – ‘ele era, nos 70-80, mas já não é mais’. Ora, como o governo italiano reclama dívidas que ele considera históricas (30 anos!), chamar Battisti de ‘ex-terrorista’ continua a disseminar o preconceito, porque, afinal, a Itália não o reclama por estar praticando terrorismo agora, como faz a Al Qaida, mas porque (segundo a definição destes jornais) teria praticado antes.
A falta de provas
Outro aspecto subjetivo da imprensa, neste caso, é sua quase unanimidade ao sugerir que os defensores de Battisti ‘estão questionando a infalibilidade da justiça italiana’.
O problema está mal colocado e talvez alguns jornalistas não tenham percebido. O questionamento que organismos de Direitos Humanos e organizações afins fazem sobre as exigências do governo italiano refere-se a que, quando uma pessoa é refugiada, não se pode aceitar que seu direito ou ausência dele, a dito refúgio, ‘seja decidida pelo país perseguidor’. É óbvio que nenhum país vai dizer: ‘Sim, podem dar refúgio a Fulano, porque nosso pedido de extradição não é justo’. Isso, em palavras mais sérias, é o que disse a maioria do Conare e o procurador-geral, quando sugerem que a sentença dos tribunais de origem não pode ser discutida. Se é assim, o refúgio político deve ser derrogado como instituição. Se alguém é perseguido por um governo, deveria entregar-se e esperar um julgamento limpo e, uma vez julgado, aceitar a pena.
Mas o problema não é se o procedimento judicial é correto, pois o que está em apreço agora é a mídia. O que importa é que a grande imprensa atribui aos defensores de DH questionar a justiça italiana, sendo que, na verdade, o que se questiona principalmente é a falta de provas. Isto não impede que se diga (e, de fato, quase todos os artigos em defesa de Battisti, o dizem) que, durante os anos de chumbo, o Estado, principalmente a polícia e o judiciário, cometeu inúmeros atos de brutalidade e abuso. Mas o argumento pelo qual se pede negar a extradição não é esse.
Os defensores de DH não dizem que a justiça italiana deva ser ignorada porque é corrupta e tendenciosa: isso é outra história, mais substantiva e menos jurídica. O problema é que o que se conhece publicamente não contribui com prova alguma da culpabilidade de Battisti no caso dos assassinatos, salvo o depoimento de ex-guerrilheiros ‘arrependidos’. Não haveria qualquer motivo legal para pensar que documentos vitais do processo ainda se mantêm escondidos depois de 29 anos. Portanto, cabe pensar que as sentenças – e o histórico do caso Battisti que as vítimas do terrorismo na Itália apresentam em seu site – são os únicos documentos acessíveis (ver aqui).
Justiça da idade da pedra
Nesse pacote (um conjunto de mais de 1.000 folhas digitalizadas, onde estão as sentenças e os recursos) há, como em toda sentença, uma descrição detalhada das circunstâncias em que, de acordo com o entendimento do tribunal, os fatos teriam acontecido, uma análise da legislação e uma justificação das penas. As sentenças não contêm, e não é sua função conter, as provas de que os fatos são reais. Mas, neste caso, tampouco diz onde as provas foram arroladas, cingindo-se, apenas, a tecer surpreendentes elogios a Pietro Mutti, elevando este ex-guerrilheiro quase à condição de herói nacional.
A imprensa, de maneira sutil, insiste de vez em quando no assunto de que a justiça de países que pedem extradição não pode ser questionada. Mas a defesa de Battisti não está usando o questionamento da justiça como argumento jurídico contra a extradição. Não é relevante se a que atua é a justiça sueca, norueguesa ou iraniana. O que importa é que, seja quem for (governo, parlamento, justiça), ninguém está dando provas. Se fossem providenciadas e se fossem consistentes, a avaliação do refúgio deveria ter em conta que o refugiado cometeu aqueles delitos, o que tampouco significa que, necessariamente, qualifique para extradição.
Ou seja, esses veículos de imprensa dizem algo como ‘eles estão duvidando da justiça e italiana e, por causa disso, inocentam Battisti’. Seja que duvidemos ou não da justiça italiana, inocentamos Battisti não por esse motivo, senão porque não há provas contra. Esta crítica pode conduzir a uma justiça da idade da pedra: bastaria que um magistrado ou político diga que alguém é culpado para que se afirme que é.
Polícia no papel de juiz
Outro assunto de duvidosa objetividade é a menção aos desportistas cubanos, cujo caso se compara com o de Battisti para demonstrar que o governo brasileiro está guiado por critérios ideológicos, e não humanitários. Não se salienta, por exemplo, que antes daqueles desportistas, apareceram uns artistas e músicos cubanos que receberam asilo. Aliás, o fator ético e humanitário, decisivo em qualquer problema de refúgio, era menos premente no caso dos cubanos; eles não estão condenados à perpétua, pena que não se aplica no Brasil.
Desde há várias semanas, a Folha Online mantém um link na página de ‘Comentários dos Leitores’, que diz ‘Cubanos decidiram fugir e ficar no Brasil há mais de um ano‘. Quando alguém abre esse módulo para ler os comentários, encontra esse ‘lembrete’ aí, imutável, semanas a fio. É possível, sim, que não tenha sido feita plena justiça com aqueles cubanos; existem sérios testemunhos de que eles, finalmente, não queriam aceitar o refúgio, mas teriam talvez precisado algum tempo mais para pôr suas idéias em claro porque podiam ter medo das conseqüências. Mas isso é subjetivo e não pode ser apresentado (como faz mais ou menos 80% da grande mídia) como um ato iníquo pelo qual o governo brasileiro quis presentear seus colegas da ilha comunista com possíveis vítimas.
Em quase nenhum dos principais jornais e na mídia eletrônica se diz com detalhe qual foi o parecer do Conare, embora ele tenha deixado de ser sigiloso. Apenas se fala que o governo perdeu de 3 a 2. Por exemplo, não se mostra que alguns que votaram contra eram de Itamaraty e da Polícia Federal, duas instituições que pouco têm a ver com justiça ou com direitos humanos. O MRE estava interessado em acalmar os coléricos e ricos sócios econômicos do Brasil. Já colocar a polícia em papel de juiz não é o mais adequado. Enfim, o Conare é uma instituição muito discutível (até porque o principal organismo que faz parte dele, o ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, não tem, absurdamente, direito ao voto) e compreendo que a imprensa talvez não tenha subsídios para avaliá-lo, mas poderia, pelo menos, dizer quais foram os autores de cada voto. Salvo uma jornalista da Folha, que menciona o pessoal de Itamaraty, nenhum órgão da imprensa fornece essa informação.
Irracionalidade e rancor patológico
Finalmente, entre os grandes arroubos de parcialidade está a quase unânime referência ao ‘apoio da UE à Itália’. Do muito material acessível na internet, só lembro uma nota de Reuters que descreve com detalhe as proporções nas quais os parlamentares votaram. Em geral, a imprensa, quando menciona esse apoio, não diz, como deveria:
‘O apóio do Parlamento Europeu [concedido numa reunião em que só havia 54 parlamentares sobre um total de 785 membros, dos quais, a maioria eram italianos, sendo que 46 votaram em favor da extradição e 8 em contra]… etc.etc.’
Tampouco ninguém ilustra a leitor se é possível, no PE, uma eleição sem quorum. Pessoalmente, não sei, e teria ficado muito grato se alguém me tivesse esclarecido se uma decisão tomada pelo 7,13% de um corpo colegiado é válida na Europa. Acho que no Brasil não seria. A imprensa tampouco diz qual é o valor daquele ‘apoio’. É um pedido formal ao governo brasileiro, é uma manifestação também formal, do desejo de que Battisti seja extraditado, ou é, como parece, apenas uma manifestação informal dos 46 parlamentares que votaram a favor e que, ao ser dada a publicidade, ganhou um status que parece oficial?
Realmente, por causa dessa falta de objetividade, alguns leitores ficamos com dúvidas essenciais que não podemos resolver, mas os jornalistas poderiam. Por exemplo, eu acho que em nenhum lugar normal se pode obter quorum para qualquer deliberação, qualquer que seja sua força, com menos de 30%. Será que estou certo ou errado? Se estiver certo, essa reunião não foi formal, e então os 46 deputados que pedem a extradição e os oito que a rejeitam estão manifestando uma opinião tão relevante, como o fariam se estivessem num café. Será que isso é assim? A imprensa não esclarece. Só fala do ‘apoio do PE à Itália’, o que, em princípio, faria pensar que essa decisão tem enorme importância. Por serem fatos atuais, deve ter-se em conta que se os jornalistas não esclarecem isto, não há outra forma de saber, até que algum jurista coloque na internet uma matéria sobre o assunto.
Fora desses pontos, a imprensa evita termos muito sarcásticos ou mensagens de ódio contra Battisti, mas é curioso que alguns poucos jornalistas conhecidos por seus estouros de irracionalidade, raiva e às vezes, rancor patológico, tenham começado a receber mais atenção da imprensa séria. Parece algo como um ataque por proxy.
******
Professor aposentado do IFCH-Unicamp