Na segunda-feira [25/5] uma fotografia ocupou quase um quarto do alto da primeira página deste jornal [O Estado de S.Paulo]. Na imagem, um helicóptero da FAB, naquele tom de cinza quase preto, aparece voando a poucos metros do chão. Pela porta lateral escancarada vemos um militar fardado de verde-oliva, capacete gorducho, na postura típica de quem presta muita atenção ao que se passa em solo. Ele olha para um avião caído no vasto pasto, um capinzal bravio que se estende pelo descampado a perder de vista. A aeronave no solo – como gostam de dizer os alto-falantes de aeroporto – está aparentemente avariada, quer dizer, parece desengonçada, destroncada, um pouco torta, mas jaz inteira, digna, com a compostura que lhe restou da aterrissagem que não há de ter sido tranquila. No céu há nuvens baixas, carregadas, mas o sol bate forte na fuselagem do avião branco, enfeitado por uma faixa lateral vermelha emoldurada por frisos azuis.
O bimotor não é grande. São três ou quatro amplas janelas de vidro do lado esquerdo (deve ser bonito olhar o horizonte viajando ali dentro), no ângulo que foi escolhido pelo fotógrafo Paulo Ribas, do Correio do Estado, jornal de Campo Grande (MS). A cena retratada aconteceu no domingo, nas pastagens da pecuária de Mato Grosso do Sul.
Logo acima da foto, a manchete: “Avião com Huck e Angélica sofre acidente”. Huck é Luciano, apresentador de TV, uma das personalidades mais famosas do Brasil. Angélica é Angélica, simplesmente Angélica, também apresentadora famosa. Eles formam um casal bonito, têm três filhos – que também estavam a bordo, acompanhados de duas babás – e representam um ícone familiar que emula felicidade, prosperidade, união, saúde e mais tudo aquilo que os comuns desejam uns para os outros quando calha de ser réveillon.
Neste ponto vale um alerta ao improvável leitor. Dizer que o casal é uma imagem não significa esvaziá-lo de substância. A indústria do entretenimento entulha o imaginário nacional de marcas fúteis e de personas voláteis. Os dois apresentadores, porém, alcançaram outro patamar. São pessoas de carne e osso que, juntas, encarnam uma imagem que não é efêmera como bolha de sabão. São celebridades de verdade, por assim dizer. Milhões de brasileiros os amam. Qualquer intercorrência dolorosa que venha a machucar um dos dois vai machucar também – e talvez mais – a sensibilidade dos anônimos que os idolatram com devoção e sinceridade. A Huck e Angélica multidões dedicam um amor verdadeiro – e, por favor, não há ironia nesse enunciado (embora exista ironia, corrosiva ironia, nos usos e nos modos que conformam a vida social; e quanto a isso nada a fazer).
Sendo assim, um susto grande que se abate sobre os dois não é assunto que se restrinja aos limites da indústria da diversão, é notícia de primeira grandeza e de primeira hora. Na noite da mesma segunda-feira, o Jornal Nacional dedicou 12 minutos e 51 segundos ao acidente. Mostrou que os passageiros e tripulantes do voo passavam bem, sem ferimentos graves. O piloto narrou para as câmeras, com amplos gestos espaciais, como se desviou das vacas para pousar em segurança. Um ás. “Foi um milagre”, resumiu Luciano.
Vencendo a morte
Durante um tempo, muito tempo, os jornalistas acreditavam que tinham o condão de escolher se queriam o ou não queriam reportar o que acontecia com as celebridades. Estavam iludidos – o que, aliás, é comum (mas isso é outra conversa). Não se trata de uma escolha possível. Pode-se variar a dose, mas não há como ignorar esse ente a que chamamos celebridade, que se impôs como elemento integrante desse outro ente a que chamamos realidade. Não há mais como contar o que se passa no mundo (eis aí uma definição de jornalismo) sem falar de celebridades, ainda que ocasionalmente – e mesmo quando você edita a primeira página do Estadão.
As celebridades – essas personagens de si mesmas em tempo real, essa gente que é célebre somente por ser célebre, esses rostos ultraconhecidos, independentemente de se ocuparem de jogar bola, de atuar em estúdios de TV ou de ganhar dinheiro na especulação financeira – são as protagonistas visíveis do teatro que anima os vazios dos mortais. Povoam micro-histórias afetivas nas solidões anônimas. As biografias delas todas, cruzadas e entrecruzadas, emprestam seu sentido às biografias sem sentido (que também pode ser as delas próprias).
Em curvas mais largas do tempo – no chamado longo prazo –, você pode encontrar o fio da história nas sagas conduzidas pelos grandes estadistas, nos movimentos políticos que contagiam os continentes, nos deslizamentos tectônicos das relações econômicas. Nesse plano, estamos falando da invenção do capitalismo, da queda do Império Romano, da derrota do nazismo. No prazo curtíssimo, porém, na miudeza do rés do chão, nisso que acontece entre uma quinta-feira e um sábado de uma semana qualquer entre os irrelevantes afazeres diários de cada um de nós, a presença fundamental das crenças, dos ídolos e dos mitos alinhava uma teia de sentidos sem a qual tudo viraria pó antes da hora. É aí que entram as celebridades. Para isso são fabricadas.
Uns dizem que elas compõem o Olimpo da nossa era, ou que são a família real de nações sem realeza alguma. Não estão errados. O ponto crucial, porém, não é religioso ou monárquico. O ponto é linguístico. As celebridades são signos de alcance virtualmente universal que organizam as formas de representação das emoções. Elas conformam os tipos que modelam o tempo, ensinam a emagrecer, a casar, a receber convidados para um almoço. Ensinam como se vestir num funeral. Tanto e a tal ponto que tudo o que um político quer ser na vida é isto: virar celebridade (e quando consegue é um problema).
Às vezes as celebridades vencem a morte e quando sobrevoam a tragédia realimentam a esperança inconsequente da sociedade que as venera.
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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP