Ao participar de um talk show na TV russa, no ano passado, o analista político Mikhail G. Delyagin fez algumas críticas contundentes ao então presidente Vladimir Putin. Quando o programa foi ao ar, a participação de Delyagin havia, curiosamente, desaparecido. Não apenas algumas de suas falas foram cortadas; sua imagem foi apagada digitalmente. Em uma delas, é possível ver apenas as pernas e a mão do analista, ‘esquecidas’ na cena.
Delyagin havia sido colocado em uma espécie de lista negra formada por críticos e oponentes políticos do governo. Basicamente, estas pessoas eram barradas de notícias de TV e talk shows com temática política. Segundo o analista ‘cortado’, a lista era ‘uma excelente maneira de reprimir a dissidência’ ao Kremlin. Ela é também um indício de como Putin confiava nas emissoras de televisão controladas por aliados do governo para consolidar seu poder, afirma Clifford J. Levy, em artigo no New York Times [3/6/08].
Dissidência
Em sua maioria, figuras políticas contrárias a Putin pararam de aparecer em programas televisivos nos últimos dois anos. A ação, entretanto, era ampliada a qualquer manifestação de dissidência. O grupo de rock Televizor teve cancelada sua participação em um programa de uma emissora em São Petersburgo em abril depois que seus membros participaram de um evento da coalizão de oposição Outra Rússia, liderada pelo ex-campeão de xadrez Garry K. Kasparov – outro banido da telinha.
Atores que fizeram piadas sobre Putin e o atual presidente, Dmitry Medvedev, em uma premiação transmitida pela TV, também enfrentaram conseqüências. De modo geral, o humor político foi banido na programação russa. O humorista Viktor A. Shenderovich, que apresentava um show de bonecos que satirizavam líderes do país, teve o programa cancelado ainda no primeiro mandato de Putin. Shenderovich também foi afastado da TV.
No caso de Delyagin, ele diz ter ficado surpreso quando foi convidado ao talk show; o analista havia aparecido em uma grande emissora de TV pela última vez há sete anos, antes de começar a atacar o Kremlin e apoiar a oposição. Para ele, Kira A. Proshutinskaya, apresentadora do programa, deve ter se esquecido de olhar a ‘lista’. Em entrevista, Kira admite que o analista foi apagado digitalmente das imagens. Ela diz ter ficado sem graça com o ocorrido, e pôs a responsabilidade na emissora, afirmando que a intimidação do governo é tão intensa que a autocensura acaba sendo excessiva. ‘Eu estaria mentindo se dissesse que tem sido fácil trabalhar estes dias. O alto escalão dos canais, por medo de perder o emprego, exagera em tudo’, completa.
Outro lado
O Kremlin, por sua vez, nega a existência de uma lista negra; justifica a ausência de pessoas contrárias ao governo na TV com o argumento de que seus pontos de vista não são relevantes. Já jornalistas televisivos dizem não acreditar que o governo mantivesse uma lista concreta, mas que as emissoras operassem sob uma espécie de ‘lista informal’ das preferências das autoridades. Eles afirmam também que a pressão governamental sobre conteúdo político na TV foi intensificada no último ano. ‘A eleição levou a uma espécie de paranóia por parte do governo sobre quem aparece na televisão’, diz Vladimir V. Pozner, apresentador de um talk show político no Canal Um, principal emissora nacional. Na prática, Pozner informa aos executivos do canal quem pretende convidar a seu programa, e eles vetam as opções que desagradariam ao Kremlin.
Já Vladimir R. Solovyov, que também apresenta um talk show político, diz que Pozner só está reclamando porque a audiência de seu programa está em baixa e ele quer culpar alguém caso a atração seja cancelada. Solovyov, defensor de Putin, diz que nunca foi incomodado pelo governo. Se no ano passado seu programa contou com a participação de políticos da oposição, em 2008 isso ainda não aconteceu. Questionado, o apresentador diz que estes políticos ‘não têm nada a dizer’.
Controle
Fato é que o Kremlin passou a controlar as grandes emissoras do país ainda no primeiro mandato de Putin, e o presidente se esforçou para enfraquecer toda e qualquer cobertura negativa sobre o governo. Vladimir Gusinsky, dono da emissora NTV, chegou a ser brevemente detido e saiu da Rússia após desistir do canal. A partir daí, executivos e jornalistas de emissoras russas compreenderam que seriam punidos se resistissem ao controle do Kremlin.
Hoje, as maiores emissoras nacionais e regionais do país são de propriedade do governo ou de seus aliados. E, desde a eleição presidencial, em março, nem o novo presidente, Medvedev, nem Putin – agora primeiro-ministro – indicaram interesse em afrouxar este controle. ‘Nossa televisão é constantemente criticada. Dizem que é chata, que é pró-governo, que é guiada pelos interesses daqueles no poder. Eu posso dizer que a nossa televisão – em termos de qualidade e da tecnologia usada – é uma das melhores do mundo’, declarou Medvedev em abril.
Tolerância
Ainda que o governo tenha se voltado diretamente à televisão por causa de sua ampla audiência, estações de rádio e jornais também sofrem com a censura. Ainda assim, há aqueles que fogem à regra. Alguns jornais menores conseguem publicar notícias e comentários críticos a Putin, além de opiniões dos membros da ‘lista negra’. A internet, por sua vez, não é censurada, e também virou espaço de crítica ao Kremlin.
Os líderes parecem tolerar certas críticas em jornais e rádios que têm alcance de público limitado, em comparação com as grandes emissoras televisivas. A popularidade da TV é imensa na Rússia, com o telejornal noturno no Canal Um regularmente entre os 10 programas de maior audiência no país. Informações do New York Times [3/6/08].