Cena 1
Primeiro, de acordo com O Estado de S.Paulo, foi em Bagé. Com boletim de ocorrência na mão, registrando queixa de estupro, a jovenzinha foi com a mãe ao hospital da rede pública em busca de um aborto da resultante gravidez indesejada. Legal, absolutamente garantido pela lei. Mas negado pelo hospital… Arbitrariedade nº 1.
Imagine-se a perturbação da menina. Treze anos, um estupro, a delegacia, a queixa, a gravidez indesejada, o veredicto do hospital.
Com toda essa somatória de emoções violentas, cerca de dez dias depois ocorre um aborto espontâneo. Nova ida ao hospital. Os médicos não constatam nenhum resquício de química ou sinal de uso de aparelho perfurante. Mas a delegada de plantão decide que o aborto espontâneo não lhe parece espontâneo. E ameaça mãe e filha de processo. A sua opinião vale mais do que o parecer dos médicos, e do BO anterior?
Onde está a legalidade e de que lado está o arbítrio? No Rio Grande do Sul ninguém fez nada – aliás, ninguém sabia de nada, visto o assunto nem ter sido reportado na imprensa local.
Cena 2
Severino Cavalcanti, presidente da Câmara dos Deputados, é entrevistado sobre assuntos gerais. E decide dar a sua opinião sobre o tema.
Chama o estupro de ‘acidente infeliz’ (parece compatível com o a famosa frase ‘está com apetite sexual?; estupra, mas não mata!’, de Paulo Maluf). E apregoa a sua convicção de que, se tal ‘acidente infeliz’ der frutos, a mãe ficará sempre feliz em ter o filho… principalmente se tiver a cara do pai? Terá querido engravidar? Freud explica este imbroglio?
A mídia, sempre tão cheia de interpretações, passou a informação sem comentário algum, como quem relata um fato simples, corriqueiro.
Cena 3
Avanço da ciência. Finalmente, para evitar mais sofrimento, a pílula do dia seguinte é distribuída nas farmácias e seu uso, liberado, em caso de falha dos demais métodos anticoncepcionais.
Mas eis que, em São José dos Campos, um vereador (Lino Bispo, do PHS) apresentou um projeto de lei proibindo a distribuição da pílula no município. ‘Foram dois meses de protestos de grupos dissidentes, amarrações políticas e pressão por parte dos padres e líderes da Igreja. O bispo de São José, dom Moacir Silva, ordenou que o assunto fosse divulgado nas missas e um abaixo-assinado pressionasse os vereadores a votar a favor do projeto’ (Estado de S.Paulo, 13/5/2005).
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (segundo o vereador Bispo) deverá encabeçar uma luta para que a pílula do dia seguinte seja proibida no país.
A deputada Ângela Guadagnin (PT-SP), ligada à igreja, pretende apresentar o projeto à Câmara afirmando ser São José dos Campos ‘um exemplo para outros municípios de outros estados, como do Paraná e de Mato Grosso do Sul’, que já a teriam procurado.
Mais uma vez, pequenas notas nos jornal informam assepticamente o fato. Não há polêmica, não há opinião de ninguém a respeito, a não ser o informe aparentemente objetivo e anódino. E, no entanto, a somatória de fatos, de divulgação localizada, caracteriza um fenômeno extremamente interessante e merecedor de discussão.
Afinal, em que mundo estamos? Os direitos, garantidos por lei, parecem estar sujeitos à interpretação livre de quem quiser – hospital, médico, delegada.
Claro que um médico pode se recusar, em função de suas convicções, a atender algum caso qualquer. Mas o hospital é uma instituição pública, mantido com dinheiro público, a serviço da saúde da população e do cumprimento da lei.
A delegada está em seu cargo para fazer cumprir a lei, e não para dar a sua sensação pessoal ante os fatos que não lhe dizem respeito.
Finalmente, o Estado é laico, segundo a nossa Constituição. Mas a Igreja católica parece cada vez mais decidida a intervir neste processo, submetendo não só as suas fiéis, mas todas as mulheres brasileiras ao retrocesso – continua condenando o uso do preservativo, quer proibir a pílula do dia seguinte e continuar a criminalizar o aborto.
Voltaremos à idade das trevas? Sem sequer abrir espaço à polêmica e discussão?
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Psicóloga e pesquisadora do Instituto Opinião