Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Reunião quixotesca

O maior investimento do Itamaraty em 2005 parece ter iniciado fadado ao fracasso e terminado de forma ainda mais lamentável. A imprensa estava em cima do fato e, ainda antes de seu início, os jornais anunciaram o que já se espelhava como um desvio: os líderes árabes, com leques de dólares para se abanar, não viriam ao encontro. Síria, Líbia, Egito, Jordânia, Emirados Árabes, Líbano, nenhum chefe de Estado compareceria à festa tupiniquim, só chanceleres. De fora, 37% do PIB da região.


A reunião dos dias 10 e 11 de maio não era política. Pelo menos não deveria ser. O Itamaraty anunciava pouco antes do evento que a prioridade seria ‘concentrar esforços em aspectos de cooperação e de intensificação de comércio e investimento’. Nem tanto assim. Em seus itens iniciais, realmente o documento pré-elaborado trata de assuntos estritamente comerciais. Do item 2 em diante, a política predomina. Nada de anormal, não tivessem os países latino-americanos presentes à cúpula problemas tão graves quanto os que afetam o bloco árabe. Por aqui, temos pobreza como lá, desrespeito aos mais básicos direitos individuais, um pouco de terrorismo, violência urbana e mais tantos outros problemas. As aves não andam cantando nem por aqui, muito menos por lá, diria um Gonçalves Dias de hoje.


Não é só a unilateralidade da abordagem dos conflitos árabes que incomoda no trato das questões durante a Cúpula América do Sul-Países Árabes. Tampouco a semelhança entre os nossos problemas mal resolvidos e os deles (como diz o ditado, é o roto falando do rasgado). Mas assusta a cobertura nacional e internacional, em sua maioria, desconsiderando a total falta de intimidade entre os dois blocos. Uma reunião esvaziada falando de problemas de estranhos, importados, como se tivéssemos força política internacional para resolver ou pressionar a resolução de alguns deles. Um esforço quixotesco.


Preocupação menor


A presença mal-humorada e desdenhosa do vizinho argentino Nestor Kirchner e a chegada espalhafatosa e atabalhoada do venezuelano Hugo Chávez, somadas ao conteúdo de seu documento final, pareceram mais um esforço brasileiro de se afastar economicamente do maior mercado consumidor mundial, os Estados Unidos. E não há justificativa política que se sustente neste ponto: se o envolvimento econômico implica envolvimento político, então, ao procurar o bloco árabe, estaríamos endossando suas ações contra os direitos individuais, contra a mulher, suas ocupações militares recentes e atuais. Neste caso, também países importadores de produtos brasileiros teriam direito de suspender suas compras baseados em nossas imensas diferenças sociais. Como bem disse a Confederação Israelita do Brasil em documento de protesto à reunião de Brasília, o Brasil ‘condenou meia guerra, em vez de aproveitar a oportunidade e condenar a guerra inteira’.


Como jornalistas, podemos lamentar ainda mais um fato, além da cobertura pautada por release e altamente comprometida, não trazendo benefício algum aos brasileiros, nem à comunidade árabe que aqui vive em paz com qualquer outra, gerando riqueza e desenvolvimento com seu trabalho há tantos anos, e que poderia ser alvo de inimizades, frutos dessa ação desmesurada. É o fato de não haver realmente liberdade de imprensa e expressão em nenhum dos países do bloco árabe que aqui estiveram representados. Neste mês de maio, em que se celebrou, no dia 3, o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, pouco temos a comemorar: no próprio dia 3, o diretor de uma rádio do Equador fugiu do país com sua família, ameaçados de morte; no dia 4, duas jornalistas britânicas foram condenadas no Peru; aqui no Brasil, o livro Na toca dos leões, do jornalista Fernando Morais, teve sua apreensão decretada por um juiz de primeiro grau que acolheu pedido do deputado ruralista Ronaldo Caiado; só aqui na América Latina, sete jornalistas foram assassinados neste ano. Estes e outros tantos fatos lamentáveis podem ser conferidos nos sites de sindicatos e federações de jornalistas no mundo, como o dos portugueses.


O mal-estar internacional causado pela cúpula já moveu o chanceler brasileiro Celso Amorim, que nos dias 28 e 29 estará em Tel Aviv (Israel) num esforço compensatório de reaproximação. Como declarou ao Jornal da Record, ele se desliga da comitiva presidencial que vai ao Japão e à Coréia do Sul. Resta esperar pelas conseqüências de aproximação comercial com o Oriente Médio, justificativa da reunião brasileira. A liberdade de imprensa, que não parece ser uma preocupação maior num país onde se apreendem livros e se expulsam jornalistas, talvez tenha de esperar ainda mais.

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Jornalista, professora e pesquisadora do Monitor de Mídia