Uma notícia recente no jornal anunciava que José Antônio dos Santos, mais conhecido como Cabo Anselmo nos idos de 1964, e depois por vários nomes falsos, vive com identidade falsa no interior do Piauí, segundo seu advogado, e quer ser indenizado e aposentado como vítima da ditadura.
Talvez muita gente não saiba nada sobre o Cabo Anselmo. Era militante da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, no Rio de Janeiro. Teve destaque numa revolta da Marinha, no início de 1964, foi um dos seus principais líderes, com sua oratória arrebatadora.
A revolta provocou os comandantes e foi um dos fatores para a reação da direita que culminaria na derrubada do presidente João Goulart, em 31 de março/1º de abril daquele ano. Muitos marinheiros foram presos, muitos se exilaram. Um marinheiro ficou tão traumatizado com as torturas sofridas que – exilado depois na Suécia – tinha medo de voltar ao Brasil, ser preso e passar pelas mesmas torturas. ‘Tigrão’, esse era um dos seus apelidos, não acreditou em anistia, fim da ditadura, nada disso. Só retornou ao Brasil, ainda temeroso, em julho de 2009.
Olhos arregalados
E o Cabo Anselmo? Andou exilado, voltou para o Brasil e tornou-se militante de uma organização de esquerda, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Segundo consta, foi preso pelo delegado Sergio Paranhos Fleury, do Dops de São Paulo, e cooptado. Tornou-se agente do Dops, ligado a Fleury, com a função de voltar à VPR, como espião infiltrado, localizar pessoas – ex-companheiros que ainda o viam como companheiro – e entregá-las para a prisão, tortura e morte.
O episódio mais famoso de sua atuação como traidor dos amigos ficou conhecido como ‘chacina da Chácara São Bento’. Anselmo, ou Daniel – seu codinome mais usado na época, em Pernambuco – entregou seis pessoas de uma vez para Fleury e sua equipe. Os jornais noticiaram que um grupo de ‘terroristas’ que se reunia na Chácara São Bento, na região metropolitana do Recife, foi cercado pela polícia e resistiu à prisão, em 8 de janeiro de 1973. Todos foram mortos a tiros, diziam os jornais. Mas na verdade não foi isso que aconteceu. Quatro homens e duas mulheres foram presos e levados para lá, onde se montou um cenário falso de combate. A morte foi sob tortura.
Mas há algo ainda mais indigno nisso: entre os seis mortos, dois tinham sido companheiros do Cabo Anselmo na Associação dos Marinheiros. E pior ainda: uma das mulheres era Soledad, mulher do próprio Cabo Anselmo, grávida de cinco meses de um filho dele. Seu cadáver apresentava os olhos arregalados, mostrando pavor. E junto a ela, seu feto.
Valor histórico
Agora, quase 37 anos depois desse episódio, um escritor pernambucano, Urariano Mota, lança um romance sobre o caso, tendo como personagens centrais o narrador – que o escritor garante ser ficcional embora, como leitor, é difícil acreditar dado o texto poético, apaixonado, platonicamente apaixonado – e Soledad Barrett Viedma, a Sol, bela paraguaia de 28 anos, uma mulher sublime, militante da VPR, que, não se sabe como, tornou-se mulher do homem insensível e traidor que se tornou seu algoz.
Soledad no Recife é um livro de ficção, mas – acredito – só no modo de contar, no texto que parece um poema em que o autor se esqueceu de quebrar em versos. É um romance de valor histórico muito importante nestes tempos em que se tenta recuperar a história recente de um período que os adeptos da ditadura, da tortura, das mortes de opositores, tentam fazer que seja apagado da memória do Brasil e dos brasileiros.
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Jornalista e escritor