Quais são os efeitos profundos, no longo prazo, da vigilância clandestina num país? Os debates que estão sendo realizados no Congresso americano sobre a Lei Patriótica oferecem uma oportunidade para uma discussão franca que já deveria ter sido feita.
Minha experiência pessoal pode ser relevante para essa discussão. Foi no dia 12 de setembro de 1973, o dia seguinte ao do golpe militar que derrubou o governo democraticamente eleito do Chile, que comecei a compreender que a linguagem também era vítima quando a espionagem estatal permeia uma nação.
Naquela quarta-feira minha mulher, Angélica, fazia aniversário e o único presente que eu podia oferecer era a notícia de que não havia sido morto no golpe. Não foi um presente fácil de entregar. O único telefone disponível ficava num pequeno bangalô a alguns quarteirões da casa onde eu havia me abrigado com outros militantes.
Os militares haviam bombardeado o palácio, anunciado a morte do presidente Salvador Allende e estavam caçando seus seguidores. Eles viriam a torturar e matar milhares. Mesmo assim, cruzei aquelas ruas perigosas e liguei para minha mulher. Não só porque ela necessitava de conforto, mas porque eu também necessitava. Eu precisava dela para me ancorar a alguma coisa real, uma prova de que nem tudo havia se esfacelado no pesadelo de violência em curso.
A conversa, no entanto, me perturbou. O sobressalto assombrava cada palavra. Sem saber quem poderia estar escutando, cada frase era reservada, cuidadosa, cheia de alusões e duplos sentidos.
“Ouvi dizer que o pai da Amanda está no hospital”, disse Angélica, informando que o cantor e ativista Victor Jara fora preso. “Na UTI?”, perguntei, procurando saber se o haviam matado. “Os médicos não disseram”, ela respondeu. Foi a primeira lição de como lidar com o medo e a ameaça de prisão durante os 17 anos seguintes de ditadura.
Usávamos indiretas e obliquidade, que se tornaram tão onipresentes na comunicação do dia a dia que as pessoas acabaram por internalizar o censor. A privacidade é uma ilusão quando o governo sabe tudo sobre você e amanhã pode trazer esse governo violentamente para dentro de sua vida.
Mais tarde, observei do exílio esse envenenamento de meu país. Ele foi agravado pelo alargamento da distância entre aqueles de nós que haviam fugido e eram livres para falar e escrever, e os que haviam ficado para trás e estavam sujeitos aos olhos e ouvidos invisíveis e às armas perfeitamente visíveis.
Escutando e gravando
Oscar Castro encenou uma peça em Santiago na qual um capitão afundava com seu navio prometendo dias melhores. A polícia secreta, decodificando essa cena como referência a Allende, prendeu, torturou e expulsou o dramaturgo do Chile. Também “desapareceram” sua mãe e seu cunhado.
Com o passar dos anos, o povo conseguiu derrubar as múltiplas barreiras e mentiras criadas pelo regime e encontrar a coragem e as malícias para se livrar da ditadura. Mas os danos a nossa psique, nossa língua, nossa arte e literatura, a nosso vocabulário, persistiram. Persistem até hoje em recessos ocultos de nossos corações e mentes, poluindo e distorcendo a maneira como nos comunicamos.
Essa atmosfera tóxica é uma das razões porque Angélica e eu não vivemos mais no Chile, apesar de muitos esforços para retornarmos antes e depois da restauração da democracia.
Aqui nos EUA, no entanto, a experiência do Chile é hoje tristemente significativa. Não sou ingênuo a ponto de ignorar os muitos exemplos passados em que o governo americano espionou seus cidadãos e os perseguiu com informações ilegalmente obtidas. Mas nada se compara aos vastos poderes de vigilância que as autoridades hoje exercem. O fato de que a tecnologia agora permite que bisbilhoteiros coletem cada conversa, cada segredo ou piada deveria fazer os americanos tremer.
Tremer não só porque o potencial de abuso é enorme, mas também porque um escrutínio sufocante desse tamanho inevitavelmente corroerá e corromperá a liberdade de expressão.
É vergonhoso quando não podemos telefonar para a pessoa que amamos para dizer “feliz aniversário” sem o temor de que alguém esteja escutando e gravando. Também pode chegar o dia em que pessoas que jamais conhecemos, mas que sabem tudo sobre nós, poderão usar brutalmente nossas palavras contra nós.
Mais do que nunca, é a hora de se tomar uma posição sobre o assunto.
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Ariel Dorfman é professor na Universidade Duke, autor da peça “A morte e a donzela” e, mais recentemente, do livro de memórias Feeding on dreams: Confessions of an unrepentant exile