Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Samba do afrodescendente demenciado

O médico da presidente da República, que foi sua madrinha de casamento, promove palestra do líder de um dos movimentos que insistem em pregar o impeachment da presidente. E acha que tudo bem.

O governo federal lança um plano de concessões de obras de infraestrutura e a imprensa apoia veladamente, enquanto representantes de seu próprio partido alinhavam críticas a suas decisões mais recentes na área econômica.

Em meio ao processo de acomodação de interesses entre o Executivo e o Congresso, o ministro responsável pelas relações políticas do governo prega a retirada de funções do vice-presidente, que conduz os entendimentos.

As edições dos jornais de quarta-feira (10/6) poderiam ser lidos como um versão atual daquele sucesso antigo intitulado “Samba do Crioulo Doido”, tal o conjunto de incongruências que o leitor encontra no noticiário.

Não se trata de diversidade de opiniões. É apenas o resultado da fragmentação da cobertura jornalística, que produz um mosaico no qual é difícil enxergar as ligações entre fatos correlatos.

Sobre o pacote de concessões, o leitor tem à disposição uma variedade de interpretações que vão da desconfiança pura e simples à total descrença. O Estado de S.Paulo avança na análise e antecipa na manchete: “Mercado vê com cautela novo pacote de concessões”. A Folha de S. Paulo faz uma interpretação maliciosa do anúncio: “Dilma lança lista de intenções para infraestrutura”. O Globo chama o conjunto de “privatizações” e corta pela raiz qualquer sopro de otimismo com a iniciativa: “Plano prevê R$ 198 bi, mas 40% são incertos”, diz o jornal carioca.

A rigor, cada uma dessas interpretações traz uma parcela da realidade: por exemplo, a entidade mítica que a imprensa chama de “mercado” pode ser um ou dois empresários ou economistas que estão sempre disponíveis para atender o jornalista.

A leitura mais cuidadosa das reportagens revela que as restrições colhidas pelos repórteres partem de políticos, não de empresários. Representantes da iniciativa privada ouvidos pelo Estado, por exemplo, veem o pacote “como um passo importante na retomada dos investimentos e na interrupção do mau humor que assola o País”.

Realismo e exagero

Os investidores, de modo geral, receberam bem o anúncio, manifestando as dúvidas de praxe com relação a financiamento, mas saúdam a inauguração da nova fase do governo enquanto esperam o detalhamento de cada projeto. Para o Planalto, trata-se de convencer a sociedade de que os ajustes nas contas públicas estão encaminhados e que é possível dar novo ânimo à economia com a retomada de obras de grande envergadura.

O Globo destaca a mudança no modelo de outorga de concessões e oferece uma visão mais especulativa do que pessimista, ponderando que a iniciativa tem aspectos mais pragmáticos do que o programa anterior, de 2012, que a imprensa considerou “megalomaníaco”.

A Folha de S. Paulo parece um jornal dividido ao meio: na primeira página, sob a manchete maliciosa, afirma que o programa “é uma versão reciclada daquele anunciado em 2012 e foi inflado com projetos de pouca viabilidade” – mas nas páginas centrais reproduz declarações de empresários que foram à solenidade de lançamento e se mostraram mais otimistas.

O especializado Valor Econômico faz uma súmula mais objetiva, enxergando “Realismo e exageros nas concessões”, com uma análise que vê “um misto de pragmatismo no caso das rodovias e de pouco realismo nas ferrovias”. O ponto crítico citado pelo Valor é o projeto da ferrovia que cruzaria o continente, ligando o Atlântico ao Pacífico. O jornal avança no cálculo de possíveis efeitos dos projetos no aumento do Produto Interno Bruto e nas contas do setor público.

Evidentemente, o anúncio do programa de obras de infraestrutura tem todas as características de um evento político, de tal modo explícito que a própria presidente, segundo a imprensa, fez questão de ressaltar que se trata de uma “retomada” ou de uma “virada” no clima de pessimismo que domina o ambiente de negócios. Também se deve levar em conta um aspecto pouco explorado pelos jornais, que se refere ao recente acordo que prevê investimentos da China no Brasil.

Como se disse antes, quando se mistura o noticiário econômico à crônica da política, temos um repeteco da composição famosa do jornalista Sérgio Porto, que ficou mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta. Só que, nos tempos corretos que vivemos, precisaríamos mudar o título: não dizemos mais “Samba do Crioulo Doido” – agora é o “Samba do Afrodescendente com Disfunção de Estrutura Psíquica”.