‘Os documentários da TV Cultura, por razões várias vezes já mencionadas e postas em discussão aqui neste espaço, continuam sendo apresentados como se todos os telespectadores potenciais e desejáveis da emissora formassem um público de iniciados bem-informados e cultos, disciplinadamente plantados nas poltronas de uma sala do circuito alternativo de cinema. Não é assim, infelizmente, no mundo da TV aberta. Caso exemplar: o belo episódio da série ‘Grandes Personagens Brasileiros’ sobre o cartunista Henfil – um retrato inegavelmente rico e abrangente de um dos principais ícones da cultura, da política e do jornalismo do Brasil nas últimas décadas.
Os realizadores tiveram a boa idéia de dar o mesmo tratamento gráfico aos trechos de entrevistas de Henfil em vários programas da emissora – Super Grilo, Vox Populi, Carta na Mesa e outros – e em várias épocas. Tiveram também a nítida preocupação de ilustrar visualmente todas as modalidades de expressão artística e cultural do irmão de Betinho, com belas citações em forma de cartoon, tiras, cinema, teatro, literatura e televisão. Contaram ainda com um notável time de depoimentos que incluiu o único filho, três ex-mulheres e vários amigos e colegas de profissão.
O episódio tinha, portanto, quase todos os ingredientes para impactar e envolver o telespectador. Quase porque a narração, embora presente, era tímida e, em alguns momentos, insuficiente diante do desafio de contextualizar a figura de Henfil para os telespectadores mais jovens ou menos informados que freqüentam a TV aberta.
Quase porque a abertura do programa, ignorando esse mesmo desafio de contextualizar, de ser mais didático e de agregar mais audiência para um produto de qualidade, não apresentava o personagem no início – o que foi feito nos momentos finais do programa, com a inserção de caracteres – e não chamava a atenção do telespectador para a relação de Henfil com a resistência democrática, a revolução do Pasquim, a luta pela anistia, o debate ideológico brasileiro, o drama dos hemofílicos e a Aids que o matou aos 43 anos, num momento que comoveu milhões de brasileiros.
Sem medo de ser repetitivo, cabe dizer que os problemas deste episódio só reforçam a convicção deste ombudsman de que o maior desafio da TV Cultura não é manter a qualidade do conteúdo que transmite. É ter, em todas as fases do processo – incluindo produção, texto, edição, finalização, programação, chamadas e apresentação – uma disposição de realmente dividir esse conteúdo com quem muitas vezes está em busca de algo que seja ao mesmo tempo diferente e atraente. E que espera ser conquistado, em vez de ser, pela dificuldade, excluído.
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Surto nas redações, 29 de abril
‘Boa noite, mas a notícia que toma conta do mundo não é nada boa. A gripe suína já se espalhou por cinco continentes e a Organização Mundial de Saúde não vê mais condições de controlar a doença. O Brasil já tem 20 casos suspeitos. O número de mortes por suspeita de gripe suína sobe para 151 no México e especialistas acreditam que a produção de uma vacina contra a doença só vai ser possível em seis meses’.
Depois dessa abertura do Jornal da Cultura desta terça-feira, dia 28 de abril, independentemente do que foi noticiado ao longo do programa, muitos telespectadores da TV Cultura devem ter achado que a solução – desesperadora, diga-se – era se trancar em casa e começar a rezar.
Já no dia anterior, o telejornal de maior audiência do país puxava a fila do alarmismo ao realizar uma entrevista, ao vivo, com o médico infectologista David Uip, dando à longa conversa o tratamento que a emissora dá excepcionalmente às entrevistas especiais com presidentes eleitos e técnicos da seleção às vésperas de estréia ou finais de Copa do Mundo. Nos sites, bancas e noticiários de rádio, a tragédia mundial também era iminente.
O agravante, no caso do Jornal da Cultura, era que, no exato momento em que a apresentadora lia o texto de abertura, outras emissoras já informavam que as confusas autoridades mexicanas confirmavam apenas sete casos letais da gripe.
Felizmente é também na mídia que surgem sinais de que a prudência e o senso se proporção não se tornaram, ainda, uma pandemia nas redações. O colunista Vinicius Torres Freire, por exemplo, em artigo publicado na Folha de S. Paulo deste 29 de abril, faz observações preciosas que merecem ser lidas e reproduzidas por qualquer colega de profissão. Depois de descrever o quadro de busca histérica de antivirais, remédios para gripe, máscaras e de sabonetes antissépticos que tomou conta das farmácias de São Paulo, ele faz ponderações sobre as dimensões ainda restritas da gripe, alerta sobre a possibilidade de muitos casos serem versões brandas da doença e observa:
‘Em 2008, 585.769 pessoas tiveram dengue no Brasil. Neste ano, apenas a dengue hemorrágica matou 223 pessoas no país. Quase tantas quanto as mortas por outra sensação gripal que não decolou, a aviária (desde 2003, no mundo inteiro)’.
Outro trecho precioso do artigo de Vinicius pondera:
‘Parece, pois, que estamos dispostos a morrer de doenças conhecidas e razoavelmente evitáveis, desde que enraizadas nas nossas miséria e ignorância. Dengue, malária, disenterias que matam milhares devido a condições sanitárias indecentes, atropelamento, facada, tiro – morrer disso, tudo bem. É coisa nossa. Mas um vírus por hora apenas midiático leva multidões às farmácias’.
Além de Vinicius, outro jornalista, desta vez o colunista José Simão, em sua coluna na mesma ‘Folha de S. Paulo’, destacou uma expressão que se espalha como epidemia nas manchetes e que traduz o grau de excitação dos jornalistas com o vírus: ‘Brasil confirma suspeita’. Que construção poderia ser mais paradoxal?
Pode ser até que a gripe absurdamente batizada de ‘suína’ se torne, infelizmente, algo mais grave, pandêmico, mortal e global. Mas os fatos, até o momento, recomendam, tanto para os editores do Jornal da Cultura quanto para os de qualquer outro veículo de comunicação, um pouco mais de cuidado com os canhões que cada um, respectiva e proporcionalmente, tem nas mãos. Até porque o jornalismo, muitas vezes, nos enquadra a todos no chamado ‘Dilema do Tostines’ e nos leva a perguntar:
‘O fato é grave porque o noticiário é extenso ou o noticiário é extenso porque o fato é grave?’
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No fio da navalha, 27 de abril
Não é apenas no futebol que acontece. As mensagens que chegam a este ombudsman também formam uma caixinha de surpresas que, em alguns casos, tornam-se desafios imediatos à pretensa capacidade deste ouvidor de avaliar, de forma correta, proporcional, fraterna e democrática, a importância e, principalmente, a representatividade de seu conteúdo. Alguns exemplos?
Um telespectador de São Paulo abre seu email dizendo que quando sintoniza a TV Cultura, ‘ou tem um afro-descendente ou um retirante nordestino, na tv que é financiado pelo MEU (sic) estado’. E pergunta: ‘por que não vejo japoneses, que tanto contribuíram para a construção do estado mais rico do país? Será porque eles são a minoria?’
Outra mensagem, desta vez de um telespectador de Salvador, começa com elogios à programação, mas observa que ‘um grande problema’ da TV Cultura é o fato de que ‘ela não consegue dialogar com a grande maioria da população brasileira’. E explica mais à frente: ‘Tenho 28 anos, sou Negro (sic) e como Negro (sic) não me sinto representado por esta TV que tem escrito, em sua missão, diversidade e integridade cultural’.
Já outra telespectadora, esta de Botucatu, protesta com veemência contra o fato de Inezita Barroso ‘cantar uma música tão antiecológica, de um caboclo que mata uma onça e oito capivaras!’, acrescentando: ‘É a segunda vez que escutamos a Inezita cantar isso e isto nos revolta muito. Adoramos a Inezita e por isso pedimos por favor que ela não repita isto, cante outras músicas, não esta, que não respeita o meio ambiente, nossa fauna e nossas matas. Você tem tanta coisa linda pra cantar, não precisa disso; veja o mau exemplo que dá, valorizando o caipira que, até hoje, infelizmente, ainda come tatus, macacos e capivaras! Infelizmente, em protesto, desligamos a tv!’.
Um pai de família se diz ‘muito aborrecido’ por ver a filha de três anos ser ‘prejudicada em sua comunicação’, ao repetir gírias que teria aprendido com o personagem João, do programa Cocoricó. E comunica a decisão de desligar a TV na hora do programa, justificando: ‘Na minha casa, não entra gíria’.
Outro telespectador relata ter assistido a apresentação de um trio que, durante sua participação, cantou uma música que ‘falava de um homem que se casava por engano com uma morena da turma da Roberta Close e que, descoberta a condição da noiva, na lua de mel, ele BATIA (sic) nela e resolvia-se tudo’. Ele pergunta: ‘Há alguma explicação plausível e ética para tal manifestação de homofobia?’.
E uma fã do programa ‘A’Uwe’, depois de fazer muitos elogios, observa: ‘Adoro o A’Uwe.. mas me pergunto: por que nunca falam da sexualidade dos índios? Como funciona? Todo mundo pelado, excitado, tem estupro, pedofilia? Aonde mora a sexualidade deles ? Ou são os brancos que não sabem lidar com isso?’
É por esses e outros tipos de emails cheios de controvérsia que vejo com espanto, na mídia, os entendidos discutirem televisão pública e interesse público como se esses dois conceitos fossem commodities, prontas, acabadas, indiscutíveis e imutáveis, à disposição do telespectador nas prateleiras da academia.
Pelo contrário: a natureza múltipla e o grau variado de representatividade das manifestações enviadas a este ombudsman ensinam que definir televisão pública e interesse público – para poder zelar corretamente por esses conceitos na avaliação do conteúdo da TV Cultura – é um exercício diário de hierarquização, proporcionalidade e tolerância.
Exercício arriscado, mas insubstituível.
Como, aliás, a democracia.’