Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Vera Guimarães Martins

O jovem casal decide pôr em prática uma de suas fantasias sexuais: transar no banheiro do avião durante o voo. Flagrados os dois, o caso redunda em queixa formal e eles cumprem pena alternativa. A história, é claro, vai parar na imprensa.

Muitos anos mais tarde, a mulher procura o ombudsman do jornal e pede que o conteúdo seja eliminado ou seu nome retirado do texto –o deslize da juventude, diz, continua produzindo consequências funestas em sua vida graças à facilidade de pesquisa dos meios digitais. O que você, leitor (ou jornalista), faria?

1) Deixaria tudo como está; a notícia é verdadeira e não tem erros. O jornal é o registro histórico dos fatos do cotidiano e é inconcebível alterar conteúdo já publicado;

2) Retiraria a notícia, como pede a moça; o conteúdo não atende ao princípio do interesse público que deve reger o jornalismo;

3) Manteria o texto, mas apagaria os nomes, porque a identificação faz pouca ou nenhuma diferença no conteúdo e provoca enormes prejuízos aos envolvidos.

Qualquer uma das alternativas suscita prós e contras que não caberiam neste espaço, mas não é propósito da coluna esgotar o assunto ou definir regra. O objetivo é levantar a discussão à luz de fato novo.

O jornal inglês “The Guardian”, pivô dessa história, optou pela alternativa três: manteve a notícia, mas retirou os nomes. A transa a jato foi um dos cerca de 50 arquivos digitais que o jornal alterou em 2014 –basicamente histórias comuns de gente comum que foi parar no jornal por malfeito menor, acusação não comprovada ou declaração que se revelou constrangedora.

Até há poucos anos, qualquer alteração de conteúdo era impensável. Hoje, muitos jornais, principalmente europeus, estão rediscutindo o velho padrão movidos pela percepção de que a era digital mexeu demais com o que está em jogo.

No tempo do impresso, histórias sem importância eram esquecidas em pouco tempo e só sobreviviam em microfilmes de bibliotecas ou bancos de dados. Com a internet, além do alcance infinito, basta um clique para até o passado mais irrelevante vir assombrar o presente e o futuro. O desimportante perdura.

Paradoxalmente, o imenso poder do digital abriga um suposto ponto de fuga, a possibilidade de “apagar” e mudar arquivos ou dificultar seu acesso. Essa condição levou a União Europeia a aprovar em 2014 a lei do “direto de ser esquecido”.

O texto prevê que qualquer cidadão pode pedir a retirada de seu nome de sites com mecanismos de buscas caso o conteúdo seja julgado inconsistente ou tenha perdido pertinência ao longo do tempo.

Desde então, o Google já recebeu 270 mil solicitações. A título de comparação, em 2013, o número de pedidos nos cinco países mais populosos da UE somou 1.084. A página do buscador não informa o total de recursos atendidos, mas o de links removidos –41% (uma solicitação pode incluir mais de um link).

É bom lembrar que o arquivo nunca desaparece, mas, sem o link, fica mais difícil ser achado. Mesmo no jornal inglês, o registro digital do impresso permanece o mesmo.

Se, por um lado, algumas mudanças parecem justas, por outro, elas abrem um precedente perigoso no princípio que norteia a imprensa. Quase todo mundo tem histórias privadas que não gostaria de ver reveladas e, no cenário atual de hiperexposição na redes sociais, a perspectiva é que o número dos que querem apagar o passado cresça de forma exponencial.

Nas últimas semanas, a ombudsman recebeu dois pedidos, que não relato para evitar que sejam reconhecidos. A resposta da Folha é a mesma de sempre: o jornal só retira conteúdo do ar por ordem judicial e não altera nada publicado. Se houver contestação sólida ou evolução relevante do assunto (conclusão de um processo judicial, por exemplo), publica-se outro texto com link para o original.

Até agora, não houve razão para mudar de posição, mas o debate internacional ora em curso sugere que o tema terá de ser rediscutido.

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Vera Guimarães Martins é ombudsman da Folha de S. Paulo