Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Faltam jornalistas
no reino dos arapongas

Os dois estarrecedores flagrantes veiculados pela mídia no último fim de semana desvendam o nível de depravação naquele que outrora chamava-se poder público, hoje transformado num imenso lodaçal privado.


As reportagens da revista Veja (edição 1.905, de 18/5) e o documento apresentado pelo Fantástico (Rede Globo, domingo, 15/5) escancaram a improbidade entranhada e despudorada, institucionalizada e assumida.


A canalhice saiu da sombra, é ostensiva, natural. A bandidagem político-administrativa transita pelos três poderes, alastra-se pelo país afora – da capital federal aos grotões. Virou realidade cotidiana, está sacramentada na vida política, compreendida nos acordos partidários, embutida na divisão do butim ministerial no qual os parceiros dividem fraternalmente escalões e diretorias de acordo com o seu potencial de propinas.


As duas denúncias revelam de formas diferentes que o chamado ‘jornalismo investigativo’ continua mamando nas tetas dos interesses contrariados, nem sempre os mais imaculados. Está lá na página 57 da revista Veja, com todas as letras: não foram jornalistas os autores do vídeo onde Maurício Marinho, o prócer do PTB na diretoria dos Correios, recebe os míseros 3 mil reais como adiantamento pelas futuras facilidades.


A sensacional denúncia foi gravada (com excelente padrão de qualidade, diga-se) por dois empresários na sala de Marinho, na sede dos Correios, em Brasília. E por que resolveram fazer o vídeo? Estavam impregnados de espírito cívico, são militantes de alguma ONG moralizadora ou simplesmente queriam vingar-se de negócios que não conseguiram consumar? Pretendiam ajudar a sociedade brasileira a livrar-se dos maus elementos ou vingavam-se de ex-futuros parceiros por meio deste novo tipo de acerto de contas?


Novo esgoto


Por mais estúpido e boquirroto que seja o protagonista do vídeo é óbvio que não revelaria a estranhos, com tantos detalhes e desembaraço, o mapa da mina dos Correios. Há um evidente grau de intimidade entre os corruptores e o corrupto – o que facilitou enormemente o trabalho dos ‘documentaristas’.


É preciso reconhecer que um(a) jornalista profissional dificilmente obteria a confiança do interlocutor e dele extrairia tão preciosas informações; mas, por outro lado, é imperioso levar em consideração que nosso jornalismo investigativo não pode depender exclusivamente de corruptores mal-sucedidos, ou insuficientemente recompensados, ávidos por vingança.


No dia em que a canalha que ronda os cofres públicos locupletar-se inteiramente, quem jogará no colo dos jornalistas as fitas e vídeos dos futuros escândalos? Quando o pool da corrupção organizar o seu Tratado de Tordesilhas para dividir eqüitativamente o bolo, não haverá insatisfeitos e também não haverá jornalismo investigativo.


Há poucos anos, certas esferas do nosso jornalismo político deixaram-se avacalhar ao enredar-se com figuras do padrão de Paulo Maluf e Antonio Carlos Magalhães, convertidos em municiadores exclusivos do denuncismo então vigente. A partir de fevereiro de 2004, com o caso Waldomiro Diniz, o sindicato investigativo da capital federal passou a servir-se de outro esgoto – os que não conseguem abiscoitar as licitações, os que ficam de fora das mamatas.


Três papéis


A matéria de Veja está bem contada, é clara, direta. O leitor entende tudo. Mas na safra anterior de escândalos, os semanários costumavam cercar-se de alguns cuidados: fitas e vídeos eram examinados por técnicos para evitar manipulações, tentava-se oferecer algum suporte jornalístico a fim de dourar a pílula do ‘esforço de reportagem’, e acrescentavam-se algumas cenas de filme policial para legalizar a receptação de material obtido ilegalmente.


Agora, o empenho jornalístico resume-se à edição competente do material entregue pelos corruptores, à adição de algumas aspas emitidas por fontes secretas de modo a camuflar opiniões e estamos conversados.


Sob o ponto de vista legal, tudo nos trinques: o vídeo é prova válida para enquadrar criminalmente os suspeitos. Sob o ponto de vista político e funcional, as providências são ainda mais fáceis: tomam-se todas as providências formais, demite-se o desgraçado palrador e confina-se a crise ao andar de baixo do Executivo, de modo a impedir que se converta em incêndio de proporções indesejáveis.


E o leitor, continuará aceitando gato por lebre? Até quando se deixará engabelar acreditando que o heróico e desassombrado jornalismo investigativo baseia-se apenas na delação de bandidos contra bandidos?


A moralização da política não pode se fazer pela via da enganação. O governo deve levar isso em conta, a imprensa também.


A denúncia do Fantástico diferencia-se do padrão denuncista, por casualidade. Não pretende ser uma reportagem investigativa, não se baseia em fontes secretas, recusa anonimatos suspeitos, dá nome aos bois. Inclusive ao autor, plenamente identificado: trata-se do governador de Rondônia, Ivo Cassol, que pessoalmente gravou uma seqüência de extorsão explícita encenada por um grupo de deputados estaduais da oposição que exigiam 50 mil reais mensais para não votar um pedido de impeachment.


Caso inédito onde a mesma pessoa desempenha três papéis: é vítima, é denunciador, é o ‘documentarista’. É mais honesto. E, sobretudo, livra a imprensa da eterna subordinação aos impostores, bem ou mal-sucedidos.