A liberação de biografias não autorizadas é, sem dúvida, um marco importante da luta pelas liberdades, pela preservação do patrimônio histórico e pela pluralidade democrática. Nada mal para a autoestima nacional que tem andado, ultimamente, muito arranhada pela recente onda de intolerância, preconceitos de toda ordem e um patrulhamento ideológico inexplicável.
Biógrafos comemoram justamente, intelectuais celebram, juristas se dão as mãos e editores se lançam na disputa para trazer à luz biografias que andavam esquecidas nas gavetas. Sim, nesse período trevoso em que qualquer juiz tinha nas mãos a caneta para decretar a censura e o recolhimento de uma obra, editoras e escritores se retraíram, e muitos preferiram optar pela autocensura, comportamento típico dos anos de chumbo da ditatura militar.
É emblemática, portanto, a disputa que já se dá pela publicação do livro Roberto Carlos em Detalhes, cuja proibição foi o estopim do movimento entre intelectuais para derrubar os dois artigos do Código Penal, herança da era FHC, que dava margens a interpretações equivocadas de juízes. Paulo Cesar de Araújo, o autor, há que se registrar, esperneou, protestou e participou ativamente durante todas as fases dessa batalha contra a obscuridade.
Não foi, por certo, a primeira vítima. Outros casos escabrosos, e sempre devidamente lembrados – como as biografias de Garrincha, Carmen Miranda e mesmo Guimarães Rosa –, sofreram, antes, na pele. Eu mesmo publiquei, como editor, em 1998, às vésperas da Copa da França, uma biografia sobre Ronaldo (que ainda não era o Fenômeno), em seus tempos de bom menino, que acabou censurada, a pedido dos empresários dele e da família, e recolhida das livrarias. Levei dez anos para ganhar o processo na Justiça – mas aí Inês já era morta…
Oxigênio vital
Essa vitória recente da luz contra o obscurantismo percorreu caminhos tortuosos até chegar aqui. Vale a pena recordá-los, e por uma só razão. Isso porque, ao mesmo tempo em que há motivos de sobra para comemorar, vem igualmente à tona um aspecto preocupante demais para a democracia que precisa ser levantado e urgentemente debatido. O episódio escancara o processo de esvaziamento, e mesmo esfacelamento, do Poder Político e sua inapetência para se envolver e enfrentar questões que realmente importam à Nação.
Só, dessa vez, o Congresso passou recibo.
Em duas ocasiões, Câmara e Senado tiveram em suas mãos a oportunidade de corrigir a distorção jurídica e não o fizeram. No primeiro semestre de 2007, quando houve a proibição da biografia de Roberto Carlos, fiz um debate intenso entre especialistas e internautas no meu blog – o Blog do Galeno, voltado para as questões em torno do livro, leitura, literatura e bibliotecas – e dali saiu o anteprojeto de lei, a chamada Lei das Biografias, que o então deputado federal Antônio Palocci (PT-SP) se dispôs a apresentar e a defender em Brasília.
A matéria andou, mas acabou atolada na Comissão de Justiça e Constituição, onde três parlamentares – dois paulistas (um do PSDB e outro do PP, Paulo Maluf) e um nordestino, do clã dos Maia – brecaram a iniciativa, por considerá-la um “absurdo”. Com o arquivamento da matéria com o fim do mandato de Palocci, pedi ao deputado Newton Lima (PT-SP), ex-reitor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e ele a defendeu com gosto e dedicação. Foi esse novo texto que chegou para ser apreciado pelo Senado, porém maculado por uma emenda do deputado goiano Ronaldo Caiado (DEM), que tornou, literalmente, a emenda muito pior que o soneto. Se aprovada, institucionalizaria o ritual de censura pós-publicação das obras.
O Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) percebeu a pusilanimidade do Congresso e criou uma associação específica só para patrocinar a ação judicial. Dessa vez, a Justiça pode até ter tardado, mas não falhou. O mico ficou nas mãos do Poder Político, o que certamente rendeu risinhos de maldade e satisfação entre aqueles que buscam demonizar e criminalizar a atividade política.
Isso é muito ruim e preocupante para a democracia, que depende do oxigênio da atividade política dos seus cidadãos para sobreviver. O vácuo deixado pelo Parlamento que transferira, há mais tempo, a prerrogativa de legislar para o Executivo e, de tempos para cá, para o Judiciário. A pauta equivocada e conservadora atual do Congresso só faz piorar esse quadro e a insatisfação da sociedade diante dos políticos e da política. Talvez esse fundo do poço venha a ser a parteira de uma nova história…
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Galeno Amorim é jornalista e presidiu a Fundação Biblioteca Nacional e o Centro Regional de Fomento ao Livro na América Latina e no Caribe (Cerlalc-Unesco). Atualmente, dirige o Observatório do Livro e da Leitura