Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As raízes da barbárie

A receita é conhecida: pega-se um crime especialmente chocante, destaca-se a notícia de modo a fazer parecer que se trata de uma situação recorrente, agita-se a ideia de impunidade e está criado o clima adequado para uma campanha. No caso, a campanha pela redução da maioridade penal, que sempre esteve latente e ganhou força desde que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou proposta de emenda constitucional nesse sentido, em fim de março deste ano.

A bola da vez é a tortura e o estupro coletivo de quatro meninas em Castelo do Piauí, no interior daquele estado. Quatro menores de idade e um adulto estão presos, acusados do crime, ocorrido em 27 de maio. Depois de seviciadas, as meninas foram jogadas de um barranco. Uma delas morreria dias depois, outra ainda está internada, em estado grave.

O requinte da manipulação

O caso custou a merecer a atenção da grande imprensa. Nesta semana, a Veja preparou a receita com particular requinte: no seu “Especial Maioridade Penal”, estampou na capa a foto digitalmente distorcida dos quatro adolescentes presos: “Eles estupraram, torturaram, desfiguraram, mataram”. E a manchete pergunta: “Vão ficar impunes?”

capa Veja maioridade

O requinte não é, obviamente, a repetição do mantra da impunidade, quando se sabe que jovens são punidos na forma do Estatuto da Criança e do Adolescente, inclusive com reclusão de até três anos para crimes graves como este. O toque de mestre é a exibição dos quatro menores e o “esquecimento” do adulto de 40 anos que, de acordo com um dos rapazes – em depoimento em vídeo reproduzido no site da revista (ver aqui) – e com o próprio promotor (ver aqui), foi o mandante do crime.

“Eu sou você amanhã”

Por que omitir a figura do adulto? Porque é preciso fixar a imagem dos menores de idade como os monstros responsáveis por aquele crime bárbaro, e assim alimentar a campanha pela redução da maioridade penal.

Porém, este é apenas o aspecto mais imediato do que os estudiosos do discurso chamam de “efeito de apagamento”. Exibir aquele adulto, noticiar a punição exemplar prevista e dar o caso por encerrado são uma forma de omitir todo o contexto que produz pessoas assim. Como no círculo vicioso exposto no quase-monólogo de Anna Magnani em Mamma Roma, famoso filme de Pierpaolo Pasolini, que referi em artigo recente (ver “Uma empresa, dois jornais. Um abismo”): aquele homem, um egresso da Cracolândia e do sistema prisional de São Paulo, que retornou à sua cidade natal sem autorização da Justiça, é uma espécie de espelho do futuro reservado aos quatro adolescentes que estavam com ele. Como na frase de um antigo anúncio de vodca, que ficou famosa na época: “Eu sou você amanhã”.

O círculo vicioso da punição

Por sorte, desta vez nem todos os grandes jornais estão comprometidos com a campanha. Cláudia Colucci, colunista e repórter especial da Folha de S.Paulo, já havia manifestado seu espanto em relação ao silêncio sobre aquele crime (ver aqui) mas também se indagava quem eram aqueles menores acusados de tamanha crueldade. Foi enviada a Castelo do Piauí e mostrou a história do rapaz que tinha a ficha criminal mais impressionante – 18 registros em um ano, usuário de drogas desde os 8 (ver aqui) – e constatou que o “histórico de miséria e transtornos mentais se repete nas famílias de outros menores suspeitos do crime”.

No dia seguinte (domingo, 14/6, ver aqui), a psicanalista Maria Rita Kehl ocupava o espaço da Página 3 do jornal para apontar os fundamentos ocultos no empenho pela atual campanha:

“É muito evidente que os que conduzem a defesa da mudança na legislação estão pensando em colocar na cadeia, sob a influência e a ameaça de bandidos adultos já muito bem formados na escola do crime, somente os ‘filhos dos outros’.

“Quem acredita que o filho de um deputado, evangélico ou não, homofóbico ou não, será julgado e encarcerado aos 16 anos por ter queimado um índio adormecido, espancado prostitutas ou fugido depois de atropelar e matar um ciclista?

“Sabemos, sem mencioná-lo publicamente, que essa alteração na lei visa apenas os filhos dos ‘outros’. Estes outros são os mesmos, há 500 anos. (…)”.

Pois, como deveria ser claro, o Estatuto da Criança e do Adolescente nunca é citado quando se trata de algum crime – ou “ato infracional” – cometido por um menor rico ou de classe média. É, de fato, um estatuto da criança e do adolescente… pobres, embora essa distinção obviamente não possa ser feita na lei. Foi pensado para proteger quem está em maior situação de vulnerabilidade, que se vincula evidentemente com a condição social.

Também no domingo, a Folha mostra dados sobre essa vulnerabilidade – o índice de homicídios na adolescência (ver aqui) – e assinala: “Nem é preciso evocar deuses da psicologia para pressupor que, ao se abordar o ‘jovem vítima’, chega-se ao ambiente onde germina ‘jovem agressor’”.

O círculo vicioso da mídia

No dia seguinte (segunda, 15/6, ver aqui), a Folha sustenta em editorial que é preciso “amadurecer o debate” sobre a redução da maioridade penal e contesta o argumento recorrente de que o jovem aos 16 anos já consegue discernir entre o certo e o errado, “entre o que é e o que não é crime”, pois isto é óbvio: o problema seria a falta de “maturidade para exercer autocontrole como a média dos adultos”. Por isso, diz o jornal, “a maioria dos países fixa aos 18 anos a idade mínima para dirigir”.

Ao mesmo tempo, assume a necessidade de alterações no ECA, de modo que “os adolescentes que tenham cometido crimes gravíssimos possam receber sanções mais longas que o atual prazo máximo de três anos”. A justificativa é a de que “uma das funções do Direito é manter a coesão social”, e seria preciso “dar resposta” à “sólida maioria” de 93% dos cidadãos que, segundo o Datafolha, apoiam a redução da maioridade penal.

Faltou indagar o papel dos meios de comunicação – não apenas no jornalismo, mas nos programas de entretenimento – na produção dessa “sólida maioria”.

Jogando para a plateia

No mesmo contexto, o Estado de S.Paulo abriu página inteira em sua edição dominical (14/6) para uma entrevista com o senador José Serra, autor de projeto que altera o ECA de modo a aumentar o período de reclusão do atual máximo de três para até dez anos em casos de crimes hediondos. Seria, diz ele – e o jornal, que reproduz a declaração no título –, uma “resposta imediata aos infratores”.

O debate, portanto, já estaria suficientemente amadurecido.

Tampouco a questão social teria grande relevância para o senador:

“Eu sempre tive uma posição crítica daquela que se dedica a responsabilizar os fatores sociais pela criminalidade, como desigualdade e pobreza, e ao mesmo tempo sugere uma inércia diante do que está acontecendo. O poder público tem de proteger a sociedade contra a violência”.

E, mais adiante, respondendo a quem critica a ineficácia do aumento da punição:

“Essa coisa de que a pena não dissuade é conversa.

“O argumento da ineficácia não pode derrubar a medida. Se não, vamos parar aonde? Você tem de reprimir o crime. Você tem de analisar os fatores que levam a ele, óbvio. Tem de haver prevenção e repressão. Só reprimir funciona? Não. Por isso, vou deixar de fazer? Não”.

É tudo o que os 93% favoráveis à redução da maioridade penal querem ouvir. É tudo o que um político em busca de audiência deve falar. Contra todas as décadas de estudos de criminologia crítica, contra todos os dados que demonstram o contrário, contra toda a memória dos tempos em que o Esquadrão da Morte atuava ostensivamente, produzindo pilhas de cadáveres de todas as idades e da mesma extração social.

Educação, o debate mais difícil

A entrevista de Serra faz lembrar recente artigo de Janio de Freitas, na Folha de terça-feira (9/6, ver aqui), que critica as propostas até agora apresentadas porque, invariavelmente, se resumem a discutir “idade e prisão”.

“Prender mais cedo ou mais tarde, por menos ou por mais tempo, nada melhorou até agora e nada vai melhorar. É mera antecipação ou protelação. Reduz-se a idade para o recolhimento ou se espera mais pelo retorno às ruas do recolhido –mais ressentido, mais experiente, e com menos possibilidades, porque já adulto, de encontrar um encaminhamento diferente para a vida”.

Janio diz que tem uma convicção: “Em qualquer idade penal e com qualquer tempo de recolhimento, haverá apenas castigo inútil, senão agravador, caso não haja ligação rígida e persistente do recolhimento com o ensino”.

É uma observação oportuna para confrontar o clima de histeria que em geral contamina esse tema, a ponto de inviabilizar o debate, substituído pela
disputa para saber quem oferece a proposta mais radical para eliminar as  “sementinhas do mal”, como as crianças e jovens marginalizados costumam ser chamados, inclusive em algumas redações.

Mas, se o Estado é relapso na educação de modo geral – e os atuais cortes orçamentários na “Pátria Educadora” não fazem prever melhora a curto prazo –, seria possível pensar que cuidaria da educação dos reclusos? Mais: se a educação é a prática da liberdade, é possível pensar em educar alguém que está preso?

A propósito, um trecho do texto que o jurista Juarez Cirino dos Santos escreveu na apresentação do livro Criminologia crítica e crítica do direito penal, de Alessandro Baratta, ajuda a esclarecer a associação entre cárcere e marginalização social:

“(…) o cárcere seria o momento culminante de mecanismos de criminalização, inteiramente inútil para a reeducação do condenado – porque a educação deve promover a liberdade e o autorrespeito, e o cárcere produz degradação e repressão, desde a cerimônia inicial de despersonalização; portanto, se a pena não pode transformar homens violentos em indivíduos sociáveis, institutos penais não podem ser institutos de educação”.

E, como sabemos, esses institutos de recolhimento de menores delinquentes não são nada além de prisões, por mais que o ECA fale em instituições “socioeducativas”.

Se pudéssemos fugir das “soluções imediatas” e enxergar além desse binômio “idade/prisão”, talvez começássemos a enfrentar o problema com alguma possibilidade de sucesso. Talvez pudéssemos transformar, então, o espanto e a indignação diante de barbaridades como a que aconteceu contra as jovens no Piauí em ações que possam evitar a repetição dessas tragédias.

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)