“É impossível compreender o funcionamento da sociedade capitalista contemporânea sem analisar a participação das corporações da mídia no processo de domesticação da opinião pública.” (José Arbex Jr., “Quem escreve com as mãos?”, Caros Amigos, nº 25, abril de 1999, p. 9)
Manifesto minha profunda repulsa ao artigo do jornalista Reinaldo Azevedo, publicado no blog da revista Veja no dia 9 de junho de 2015, que qualificou a greve dos professores do Paraná como uma das “mais absurdas de que se teve notícia nos últimos tempos”. Não só: chamou o movimento de “abusivo, violento e politicamente orientado”. De forma descabida, o jornalista assinalou que o “detonador do movimento” teria sido (pasmem) “alterações técnicas no pagamento de um grupo de professores aposentados, o que não acarretaria prejuízo a ninguém”. [O próprio Ministério da Previdência Social considerou irregulares as mudanças na Paraná Previdência, aprovadas em meio à repressão policial. Seguindo o parecer do Ministério, nos próximos sete anos o fundo passará de R$7,3 bilhões em caixa para R$ 4,2 bilhões: “[…] esse déficit será repassado para as gerações futuras. Tudo em frontal desacordo com a determinação do equilíbrio financeiro e atuarial previsto pela Constituição”. Ver aqui, acesso em 21 de junho de 2015.] Segundo acusação do próprio jornalista, “supostos” professores teriam apelado para atos de vandalismo no dia 29/04/2015: “a coisa era mesmo no pau, na pedra e na porrada” [ver “Chega ao fim a absurda e violenta greve de professores no Paraná. Quem sai perdendo? A população paranaense”, disponível aqui, acesso em 18 de junho de 2015].
É inadmissível e digno de repúdio a tentativa do jornalista Reinaldo Azevedo de justificar/legitimar as ações praticadas pela Polícia Militar e pela Tropa de Choque e, simultaneamente, de isentar o governador Beto Richa (PSDB), o ex-secretário de segurança Fernando Francischini (Solidariedade), o ex-comandante geral da Polícia Militar Cezar Vinícius Kogut e demais autoridades pelas graves violações de direitos humanos ocorridas naquele fatídico dia. Em nenhum momento o autor refere-se à quantia despendida pelo Estado do Paraná naquela operação: R$ 948 mil reais com armas de “baixa letalidade” para massacrar professores, estudantes e demais servidores públicos, tratados como inimigos do Estado. [Como bem observou Atila Roque, diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil, “a falta de regulamentação para o uso das armas menos letais é uma prioridade que o Brasil precisa encarar urgentemente. Os protestos de 2013 e também no ano passado, na Copa do Mundo, mostram que o uso desse armamento tem sido feita de maneira desproporcional e abusiva pelas forças de segurança no Brasil, com vítimas entre manifestantes e jornalistas”. Ver aqui, acesso em 19 de junho de 2015.] A PM usou gás lacrimogêneo de forma indiscriminada contra os manifestantes. Atirou com balas de borracha em indivíduos que não apresentavam qualquer ameaça e espancou pessoas com cassetetes. De acordo com os números da própria PM, ao todo, os 2.516 policiais militares designados para a ação dispunham de 2.323 balas de borracha e 1.413 bombas de fumaça, gás lacrimogêneo e de efeito moral, além de 25 garrafas de spray de pimenta. Cerca de 200 pessoas ficaram feridas, entre elas a estudante Taciane Grassi, de 17 anos que perdeu 60% da audição. E a barbárie de que foi vítima o cinegrafista Luiz Carlos de Jesus, mordido na coxa (a três centímetros da artéria femoral) por um pitbull da PM? Nenhuma linha!
Desigualdade e criminalização da pobreza
Como é possível um jornalista desdenhar da brutalidade policial? Sabemos muito bem que Reinaldo Azevedo é um autêntico porta-voz da mídia conservadora e, portanto, incapaz de questionar o papel das instituições policiais nas democracias contemporâneas. Adepto ferrenho de uma cultura política autoritária, o jornalista não foi capaz de dizer que a polícia agiu com extrema violência para reprimir os manifestantes, contando com o aval do próprio governador Beto Richa. Por outro lado, o episódio escancara o vínculo entre a orientação/treinamento de policiais militares e a herança autoritária do período da ditadura militar (1964-1985). [As forças policiais do Distrito Federal, Piauí, Pernambuco e Paraná são treinadas tendo como base o Regulamento Disciplinar do Exército (RDE).]. Sabemos também que quando longe dos holofotes da grande imprensa, a polícia viola sistematicamente os direitos civis de pretensos “suspeitos” (pobres, afrodescendentes, movimentos sociais e a população LGBT).
O jornalista repete em outra passagem do referido artigo os discursos falaciosos do governador tucano: “o Paraná paga um dos melhores salários do país para os professores”. Dado duvidoso que não leva em conta um estudo mais amplo realizado recentemente pela Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em que o Brasil ocupa a penúltima posição em investimento por estudante e média salarial dos professores no ensino básico de ensino, entre 35 países pesquisados. O salário de professores brasileiros corresponde a 1/3 (um terço) da remuneração de europeus, japoneses, sul-coreanos e norte-americanos. Em seguida, tece elogios a atitude do governo em colocar no portal da transparência o salário dos professores. [Segundo os dados do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná (APP-Sindicato), o salário inicial de um professor na rede estadual com jornada de 40 horas semanais é de cerca de R$ 2,4 mil reais.] O que chama atenção é que o jornalista sequer tratou do aumento de salário do próprio governador em 14,6% (cujo valor é de R$ 33,7 mil), aprovado em janeiro desse ano; o aumento salarial de 26,35% concedido aos deputados estaduais (passando de R$ 20 mil para R$ 25,323 mil) e ao auxílio-moradia mensal de R$ 4.700,00 para juízes, promotores, conselheiros e procuradores do Tribunal de Contas. Lembrando que o salário médio mensal da magistratura é de R$ 26 mil. Além disso, não há qualquer menção à prática ilegal do governador Beto Richa que se apropriou do Fundo do Paraná Previdência dos servidores, no valor de R$ 8,5 bilhões, retirando R$ 500 milhões de reais só no mês de maio desse ano para cobrir os rombos do Estado.
Mas por que será que esses dados foram simplesmente omitidos pelo jornalista? Não seria por que os políticos e os magistrados merecem tais benesses e aos trabalhadores resta-lhes se conformar em viver na penúria? Outra possível resposta a esse conjunto de perguntas é que o jornalista desconhece a realidade da educação pública no país e as péssimas condições de trabalho nas escolas. Muitos estados e municípios brasileiros possuem mais professores em contrato temporário e precário de trabalho do que concursados. E a múltipla jornada – necessária para complementar a renda familiar dos professores – atinge quase 30% da categoria, comprometendo a qualidade do trabalho escolar e a saúde dos profissionais [disponível aqui, acesso em 19 de junho de 2015].
Lamentavelmente o artigo como um todo demonstra um desprezo total pelos direitos humanos (como o direito de manifestação, de liberdade de expressão, de integridade física e moral e do direito de greve) e, por conseguinte, uma falta de respeito com as vítimas do massacre. No limite, jornalistas do calibre de Reinaldo Azevedo representam uma ameaça ao pensamento crítico e aos direitos de organização e de luta da classe trabalhadora.
Por fim, retomo a pergunta da abertura deste artigo: na batalha das ideias pautadas pela grande imprensa, quem sai perdendo? Todos nós, pois o único modelo de sociedade que a “mídia dos patrões” (comprometida com a desinformação e com governos autoritários que atacam direitos historicamente conquistados) almeja construir é aquele calcado na naturalização da desigualdade, no individualismo, no consumismo, na criminalização da pobreza e das lutas sociais. Como diria de maneira oportuna o historiador catalão Josep Fontana, “no se trata, sin embargo, de limitarse a resistir, sino que hay que aspirar a renovar lo que se combate” [FONTANA, Josep. El futuro es un país extraño: una reflexión sobre la crisis social de comienzos del siglo XXI. Barcelona: Passado & Presente, 2013. p. 153].
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Marco Antônio Machado Lima Pereira é professor de História Contemporânea (Unespar-Paranaguá/PR) e doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro