A imprensa e o Poder Judiciário têm funções parecidas, em busca da verdade, justiça e da garantia dos direitos e respeito ao cidadão. Mas em alguns momentos a interferência de um setor no trabalho do outro pode gerar conflitos ou atrapalhar o exercício da profissão dos integrantes de cada área. Que digam os jornalistas formados e que ouvem várias vezes da população leiga a indagação: “Você se formou em jornalismo? Mas não precisa mais de diploma…” Mais uma vez o Poder Judiciário brasileiro deve decidir sobre direitos que podem interferir profundamente no trabalho da imprensa. Após polemizar na Corte Europeia, o questionador entendimento sobre o direito ao esquecimento chega aos tribunais brasileiros.
A polêmica do direito ao esquecimento começou quando o cidadão Mario Costeja González abriu um processo no Tribunal Europeu contra a empresa Google e o jornal La Vanguardia. O cidadão queria que um anúncio do Ministério do Trabalho e dos Assuntos Sociais espanhol fosse desvinculado de seu nome nas buscas do site Google e o texto da propaganda fosse retirado do site do jornal. A corte lhe deu razão no caso do Google e negou o pedido referente ao jornal La Vanguardia.
O anúncio divulgava um leilão de imóveis que pertencia a pessoas que deviam impostos ao governo. O leilão foi realizado para que cidadãos devedores pagassem e quitassem com o órgão de seguridade social, do qual Mario era um dos devedores. A corte europeia entendeu que o registro do caso nas páginas do Google violava o direito à vida privada do cidadão em questão. A decisão, que não seria estendida aos veículos de comunicação social, provocou polêmica porque os dados e registros da vida privada de um cidadão vão além do nome e data de nascimento. O temor é que o direito ao esquecimento sirva como pressuposto para a violação da liberdade de expressão e de imprensa.
Buscas sobre indivíduo inocentado pela justiça
Em 2013, chegaram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) dois processos contra a Rede Globo de Comunicações. Em um dos processos, a família de Aída Curi, estuprada e morta em 1958 por um grupo de jovens, alegava que ao relembrar o caso recentemente, a TV Globo trazia de volta angústia e revolta diante do crime. Já o outro processo era de um dos acusados de participar da Chacina da Candelária, ocorrida no Rio de Janeiro em 1993. O autor do processo alegava que ao colocar seu nome em uma reportagem sobre o caso como um dos acusados na época do crime, configurava-se dano moral, tendo em vista que ele já havia sido inocentado das acusações em processo transitado em julgado.
O ministro Luís Felipe Salomão foi relator dos dois recursos especiais que discutiram a tese no STJ. O caso levanta grande polêmica e causa pela primeira vez a discussão sobre o direito ao esquecimento no mundo jurídico brasileiro. O Brasil é uma República que tem como base os direitos elencados na Constituição Federal de 1988. O direito ao esquecimento causa embates na aplicação de dois direitos – a liberdade de expressão e de imprensa e o direito à intimidade e à vida privada.
Vamos imaginar a seguinte situação. Uma pessoa comete um crime. Um homicídio, por exemplo. Em seguida, várias matérias em jornais e sites da internet sobre esse fato são publicadas por jornalistas profissionais. A sociedade passa a saber que essa pessoa é acusada de conduta criminosa. O acusado é inocentado e entra na justiça para que todas as matérias ou comentários na internet sobre ela sejam apagados – tendo em vista que ela não é a pessoa autora de conduta criminosa. Teria ela direito a apagar todos esses registros, visto que no Brasil existe pena perpétua prevista em lei? Mas e a liberdade de imprensa, prevista nos artigos 220 a 224 da Constituição Federal? Isso proibiria que as matérias fossem apagadas. Se partirmos desse pressuposto, qualquer fato da história poderia ser apagado desde que alguém se sinta prejudicado. Poderíamos ter que apagar da história todos os atos de corrupção no Congresso Nacional, pois eles atingem a imagem do parlamento e dos deputados. Ou esquecer os crimes bárbaros, uma vez que os acusados já cumpriram pena definida em processo tramitado em julgado.
A Constituição Brasileira é baseada em leis que já existiam na Europa. Iriam, então, repetir os juristas brasileiros a mesma decisão da Corte Europeia, ou criariam sua própria visão sobre o caso? E na internet, seria possível apagar citações e resultados de buscas sobre determinado indivíduo inocentado pela justiça ou que já tivesse cumprido sua pena?
Polícia e Justiça
Durante palestra no Museu da Imprensa, em Brasília, em maio de 2015, o advogado Antônio Carlos de Almeida, conhecido como Kakay, afirmou que ao defender a atriz Carolina Dieckman, após suas fotos íntimas vazarem na internet, recebeu um pedido de direito ao esquecimento da atriz. Carolina iria solicitar ao Google que todas as buscas referentes ao seu nome fossem excluídas da rede social. Logo Kakay percebeu que o resultado das buscas estaria ligado à própria atividade profissional da atriz, por isso excluindo as buscas estaria excluindo todo o seu histórico profissional. Logo, o direito ao esquecimento, neste caso, traria prejuízos severos ao trabalho da artista, impossibilitando sua aplicação neste caso.
Mas e quanto aos demais cidadãos? O direito ao esquecimento valeria para todos? Atualmente a lei 12.295, conhecida como Marco Civil da Internet prevê a responsabilização dos provedores, caso mantenham conteúdos ofensivos a honra e a imagem do indivíduo no ar. No caso de crimes cometidos pela internet é grande a dificuldade em encontrar seus autores e chegar até o local de onde partiu a publicação. No caso das redes sociais é preciso colaboração da empresa que gerencia o serviço para encontrar os acusados. Além de serem retiradas de sites de buscas as informações nas quais o direito ao esquecimento foi deferido teriam de ser retiradas de redes sociais, blogs e sites de notícias. Além da polêmica da lei faltaria estrutura da polícia e da Justiça brasileira para cumprir essa decisão.
Veja o artigo 220, inciso 1º da CF:
“Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social.”
Decisões do STJ
Nos casos citados anteriormente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) teve decisões opostas para cada um. No caso do acusado de ter participado da Chacina da Candelária e inocentado em seguida o ministro Luiz Felipe Salomão condenou a TV Globo a pagar R$ 50 mil de indenização por danos morais ao autor da ação. Segundo entendimento do STJ mesmo deixando claro que o acusado foi inocentado a emissora causou-lhe dano a imagem por ter citado seu nome. O autor da ação havia tido direito ao esquecimento concedido e por isso não deveria ter sido citado.
Já no caso de Aída Curi, a justiça entendeu que realmente a vítima tem direito ao esquecimento e é legítimo o pedido da família para que esse direito fosse colocado em prática. Mas a emissora deu destaque para o crime e não para a vítima ao relembrar o caso. Mas no caso de um crime que se fez notável pelo nome da vítima caso de Aída Curi e também, por exemplo, da missionária Doroty Stang ou do jornalista Vladimir Herzog, o magistrado entendeu que não há outra solução a não ser falar no nome dos envolvidos.
As decisões das instâncias anteriores afirmaram que a reportagem só mostrou imagens originais de Aída uma vez, usando sempre de dramatizações. O foco foi, segundo o voto do ministro, no crime e não na vítima. Sendo assim, não se poderia falar em dano moral.
Salomão também afirmou que, se o tempo se encarregou de tirar o caso da memória do povo, também fez o trabalho de abrandar seus efeitos sobre a honra e a dignidade dos familiares. No caso de familiares de vítimas de crimes passados, que só querem esquecer a dor pela qual passaram em determinado momento da vida, há uma infeliz constatação: na medida em que o tempo passa e vai se adquirindo um ‘direito ao esquecimento’, na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes.
Caso chega ao STF
A TV Globo e a família de Aída recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) O direito ao esquecimento será julgado na corte e regulamentado em todo o país. O ministro Toffoli, relator, manifestou-se pelo reconhecimento da repercussão geral do tema. “De um lado, a liberdade de expressão e o direito à informação; de outro, a dignidade da pessoa humana e vários de seus corolários, como a inviolabilidade da imagem, da intimidade e da vida privada” afirmou Toffoli. Para o ministro, a definição pelo STF das questões postas no processo “repercutirá em toda a sociedade, revelando-se de inegável relevância jurídica e social”.
***
Renato Souza é jornalista