Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cena de sangue num bar

Uma verdade jornalística: ninguém sabe que editores existem. Ou melhor: da porta para fora da Redação, ninguém sabe que editores existem. O leitor atento conhece o correspondente de guerra, o repórter das matérias exclusivas, o chargista mordaz, o colunista polêmico.

Mas os editores? Aqueles que têm as ideias de reportagens, consertam textos, orientam o reportariado, hierarquizam os assuntos e escrevem os títulos e manchetes? Como diria aquele personagem de “Estação Carandiru”, de Drauzio Varella: sem chance.

Assim, foi com um sentimento de vitória que este editor por vocação leu, na semana passada, um obituário inusitado no “New York Times”: o de Vincent Musetto, morto aos 74 anos de câncer de pâncreas. Não conhece? Óbvio. Musetto era uma figura de bastidores. Um editor.

Mereceu o obituário por ter criado uma manchete histórica: “HEADLESS BODY IN TOPLESS BAR”. Assim mesmo, em maiúsculas, no estilo estridente do tabloide “New York Post”, no qual foi publicada em 15 de abril de 1983.

A manchete desafia traduções. Literalmente: “Corpo sem cabeça em um bar de topless”. Ou, com certa liberdade poética, “Corpo sem cabeça em um bar sem vergonha”, como sugeriu a professora de inglês e leitora da coluna Ana Carolina Monteiro, que me enviou o link do obituário.

O ritmo elegante, as aliterações, uma quase simetria sonora e a perfeição com que se encaixava nas duas linhas (de fora a fora da primeira página) fizeram dessa manchete uma espécie de padrão de ouro do jornalismo popular.

Como é comum nesse universo, a manchete foi “encomendada”. Chegou ao jornal a notícia de que tinha sido encontrado, em um bar na área de Queens, um corpo decapitado, do dono do lugar.

Na Redação, Vincent Musetto, editor da primeira página, ouviu a história e disparou: “Headless body in topless bar”, assim mesmo, sem verbo, e já pensando nas palavras que caberiam no espaço determinado.

Havia só um problema: ninguém sabia se o bar era mesmo de striptease. Um repórter foi despachado para apurar. Ecoou pela Redação um suspiro coletivo de alívio quando ele ligou de volta confirmando: sim, naquele estabelecimento, dançarinas se exibiam com os peitos de fora. A manchete estava garantida.

Hora do algoritmo

No começo dos anos 1990, trabalhei no jornal paulistano “Notícias Populares”. Escrever manchetes era uma de minhas atribuições.

A de que mais me orgulho acompanhava uma foto de Maradona pelado, reproduzida de uma revista alemã: “Maradona: bom de bola, ruim de taco”.

Lembro também de um caso quase sobrenatural. O secretário de Redação, Walter Novaes, bolou, no dia 30 de abril, a manchete “Desempregado mata a mãe no Dia do Trabalho”. E pediu ao repórter da madrugada, o lendário Hélio Santos, que descobrisse um caso assim.

Pois aconteceu: um desempregado assassinou a mãe nas primeiras horas de 1º de maio. Um triste fato, mas mais uma manchete garantida.

Além de fazer a manchete, criar a linha-fina (uma espécie de complemento do título principal) exige precisão de poeta minimalista.

Laudo Paroni, mancheteiro titular do “NP”, era expert nisso. Certa vez, na linha-fina de uma história trágica de final feliz –um menino tinha sofrido um acidente e tivera o pênis reimplantado–, Paroni chamou o pequeno órgão de “pecinha”.

Mas tudo isso é passado. No jornalismo popular e no “mainstream”, escrever manchetes criativas é uma arte em extinção. Como notou recentemente Margaret Sullivan, ombudsman do “New York Times”, o modo de titular reportagens está mudando.

O viés lírico, porém informativo, que sempre norteou o trabalho de edição, hoje dá lugar à literalidade. Ela cita como exemplo um título do próprio “New York Times”: “Apple revela iOS 8 e OS X Yosemite em conferência de desenvolvedores”.

Difícil pensar em algo mais pesado e burocrático. Mas um título assim tem uma função crucial: fazer com que a reportagem apareça com destaque nas buscas do Google, e seja facilmente compartilhável em redes sociais.

A fórmula atual de manchetes e títulos é aquela de sites como “BuzzFeed” e “Daily Mail”. A mais literal possível, a mais óbvia possível, que traga todas as palavras-chave para aparecer no topo das buscas, mas que não conte toda a história, para obrigar o leitor a clicar.

Para isso, não é preciso editor. Um algoritmo faz melhor. Talvez, em breve, os editores, além de desconhecidos, passem a ser também inexistentes.

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Álvaro Pereira Júnior é colunista da Folha de S.Paulo