“É preciso que trabalhemos muito, que haja muita união, parte com parte. Desapareçam as paixões, os espíritos de vinganças que hão de vir ou virão, é preciso que estejamos unidos para o futuro” (João Cândido: Museu da Imagem e do Som/1968)
A abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888, ocorreu sem inclusão social, restando aos libertos a pobreza, o subemprego e o estigma de séculos de escravidão. Este quadro excludente, o historiador e jornalista gaúcho Décio Freitas (1922-2004), que foi dirigente do Partido Comunista Brasileiro, conceituou de Brasil inconcluso, título de um de seus livros.
A censura no governo militar
Em nosso país, entre outras contribuições, o samba se constitui numa herança musical do negro, representando uma das formas da sua resistência cultural. “O Mestre-Sala dos Mares”, composto em 1975 por João Bosco e Aldir Blanc, é um relicário desse gênero musical, cuja letra foi censurada no regime militar (1964-1985) por trazer a público a figura de João Cândido Felisberto (1880-1969), o líder da “revolta da chibata” (1910), personagem que a história oficial soterrou nos porões da memória nacional. Entre outras alterações na letra, destacam-se a substituição de marinheiro por feiticeiro e navegante no lugar de almirante.
No mês de junho de 1880, há 135 anos, nasceu João Cândido e nada mais justo que nos lembremos do samba que evoca a sua figura e o exemplo de resistência contra a opressão. Essa composição, imortalizada na voz de Elis Regina (1945-1982), poderia, também, ser batizada com o título de “Mestre-Sala da Liberdade”, devido à sua luta contra a injustiça e o desrespeito à dignidade humana. Na escola de samba, o mestre-sala corteja e protege a porta-bandeira. No caso do Almirante Negro, ele defendeu a porta-bandeira da liberdade no bailar das águas.
“O Mestre-Sala dos Mares” nasceu em Encruzilhada, no Rio Grande do Sul, em 24/6/1880. Filho dos ex-escravos João Felisberto e Inácia Cândido Felisberto, João Cândido, com apenas 13 anos, lutou a serviço do governo na Revolução Federalista do Rio Grande do Sul (1893-1895). Aos 14 anos se alistou no Arsenal de Guerra do Exército e com 15 anos ingressou na Escola de Aprendizes Marinheiros de Porto Alegre. Passados cinco anos, foi promovido a marinheiro de primeira classe. Ao completar 21 anos, em 1903, foi promovido a cabo-de-esquadra, embora tenha sido rebaixado a marinheiro de primeira classe por introduzir no navio um baralho para jogar. Serviu na Marinha do Brasil por 15 anos, tempo em que viajou pelo Brasil e outros países.
A revolta da chibata/1910
À noite, em 22 de novembro de 1910, eclodiu, no Rio de Janeiro, a “revolta da chibata”, devido aos castigos corporais sofridos pelos marujos, que eram punidos com chibatadas como à época da escravidão. Após Marcelino Menezes ter recebido, como castigo, 250 chibatadas, no encouraçado Minas Gerais, a marujada, composta por 90% de negros pobres, rebelou-se. O movimento tramado por marinheiros, como Francisco Dias Martins, o “Mão Negra” e os cabos Gregório e Avelino, teve como porta-voz o timoneiro João Cândido.
O “Mestre Sala dos Mares” era prestigiado pelos colegas, sendo com frequência designado para exercer liderança a bordo, inclusive, em suas viagens por países da Europa. Na Marinha, João Cândido devido a seu bom comportamento nunca sofrera castigos físicos. Em 1910, foi enviado à Inglaterra para conduzir o encouraçado Minas Gerais ao Brasil.
Durante a viagem inaugural do Minas Gerais, João Cândido e companheiros ficam sabendo do movimento em prol da melhoria das condições de trabalho que exerciam os marinheiros britânicos entre 1903 e 1906. Tomaram conhecimento, também, da insurreição dos russos embarcados no encouraçado Potemkin, em 1905, que se tornaria tema de filme em 1925.
No calor da luta, quando eclodiu a revolta, três oficiais e o comandante do encouraçado Minas Gerais, João Batista das Neves, foram mortos, trazendo consequências trágicas para os envolvidos. O motim se estendeu a outros navios, e seus comandantes foram destituídos. Além do Minas Gerais, os marujos tomaram os navios Bahia, São Paulo, Deodoro, Timbira e Tamoio, hasteando bandeiras vermelhas e um pavilhão: “Ordem e Liberdade”.
Cerca de 2.300 homens comandaram os navios de guerra, direcionando mais de 80 canhões para o Palácio do Catete (RJ). Além da anistia, os marujos exigiam o fim dos castigos, aumento do soldo e redução da carga horária. Em 25/11/1910, o presidente Hermes da Fonseca (1855-1923) lhes deu anistia, porém, três dias depois, decretou as expulsões da Marinha e prisões. Os marujos, após devolverem os navios aos oficiais, foram surpreendidos: haviam sido traídos. Na imprensa, neste ínterim, alguns periódicos começaram a criticar a fragilidade do governo e da Marinha ao concederem a anistia aos revoltosos. Alguns membros da Marinha, inclusive, de alta patente faziam declarações públicas no mesmo sentido. Os jornais da época registram que a população local teve o reflexo de buscar abrigo fora do centro da cidade e das regiões litorâneas, temendo os canhões dos poderosos navios que estavam apontados para o Palácio do Catete. Embora o receio, uma parte da imprensa manifestou simpatia pelas reivindicações dos marujos.
O Museu da Comunicação Hipólito José da Costa (Musecom), instituição fundada em setembro de 1974 em Porto Alegre, (RS) guarda e preserva, em sua hemeroteca, jornais e revistas deste período, nos quais o pesquisador tem a oportunidade de constatar a forma como a revolta da chibata (1910) foi divulgada na época. Um exemplo, do registro desta história, é a revista Careta de 10 de dezembro de 1910, que faz parte do acervo da Instituição. Esta traz uma charge com o título “A disciplina do futuro: Eu to vendo que nom guento ocês sem chibata”, onde oficiais de carreira reverenciam a figura de João Cândido no encouraçado Minas Gerais. Atualmente, o Musecom, responsável por este valioso acervo, é dirigido pelo arquivista e jornalista Yuri Victorino.
Mortes e dor
Acusados de outro levante, no Quartel da Ilha das Cobras, que, segundo alguns pesquisadores poderia ter sido forjado pelos próprios oficiais da Marinha, o governo recebe plenos poderes do Congresso para agir, sendo a ilha cercada e bombardeada. Cerca de 100 marinheiros são presos e enviados para os porões do navio “Satélite” junto a ladrões, prostitutas e desocupados recolhidos pela polícia. A proposta era de “limpar” a capital, enviando-os para trabalhos forçados na Comissão Rondon, ou para serem deixados na Floresta Amazônica. Na lista de nomes, que foi entregue ao comandante do “Satélite”, alguns eram marcados por uma cruz vermelha. Estes morreriam fuzilados e depois seriam jogados ao mar.
18 líderes foram presos na solitária da Ilha das Cobras. Neste local, João Cândido e outro marujo sobreviveram. Os outros 16 morreram sufocados, devido à evaporação da cal misturada à água para lavar o local. Marques da Rocha, comandante do Batalhão Naval, capitão-de-fragata, por motivos que se “desconhecem”, levou as chaves da cela e foi passar a noite de Natal no Clube Naval, embora morasse na Ilha. Sem as chaves, a guarda da madrugada, mesmo ouvindo os gritos de dor e pavor, não conseguiu abrir a cela. Quando o comandante Marques da Rocha retornou à ilha, às oito horas da manhã, já era tarde demais… O Natal dos companheiros do “Mestre-Sala dos Mares” fora de sofrimento e morte.
O desfecho
O médico da Marinha deu como causa das mortes insolação e o comandante Marques da Rocha foi absolvido em Conselho de Guerra, além de ser promovido e recebido em jantar oferecido pelo presidente da República Hermes da Fonseca (1855-1923).
No ano de 1911, o “Mestre-Sala dos Mares” foi internado como louco no Hospital dos Alienados sob o choque emocional de presenciar a morte dos companheiros de cela. Ao obter alta, retornou para a prisão da Ilha das Cobras, saindo em 1912. Estigmatizado como rebelde e perigoso à sociedade, foi expulso da Marinha. João Cândido viveu o resto da vida pobre, como estivador e vendedor de peixe, na Praça XV, do Rio de Janeiro.
Em 1917, a sua primeira esposa faleceu, e João Cândido começou a trabalhar como pescador para sustentar a família. Casou-se novamente, porém sua segunda esposa suicidou-se no ano de 1928. Dez anos após esta tragédia, outra voltaria a ocorrer, mas desta vez com uma de suas filhas. O “Mestre-Sala dos Mares” se casou três vezes e teve 11 filhos.
João Cândido não tinha por hábito comentar sobre a Revolta da Chibata (1910) com seus filhos. De acordo com dona Zeelândia e Candinho, seu filho menor, era comum escutá-lo falar do levante na rua ou das homenagens públicas recebidas por ele. A família sabia que o maior sonho acalentado por João Cândido era retornar para a Marinha de Guerra. Infelizmente, este desejo nunca se realizou.
No mês de março de 1964, João Cândido recebeu o convite da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, sob a liderança de José Anselmo dos Santos – agente infiltrado dos órgãos de repressão brasileiros –, para participar do histórico encontro do Sindicato dos Metalúrgicos no Rio de Janeiro. Este reuniu cerca de duas mil pessoas e, de acordo com historiadores, foi o estopim para o golpe militar de 64. Junto a Leonel Brizola (1922-2004), então deputado federal, João Cândido, naquela ocasião, presenciou discursos inflamados. Alguns discursos, acerca da melhoria na alimentação dos barcos e revisão dos regulamentos da Marinha, eram velhos na memória do marinheiro. Outras questões, de cunho político, contra o governo, causavam-lhe desconfiança. Ao encerrar o palavrório, o velho marinheiro disse a frase que entraria para a história dos movimentos sindicais e seria lembrada por vezes: “Revolta de marinheiro só dá certo no mar.”
João Cândido faleceu, aos 89 anos, em 6/12/1969, vítima de câncer, no Hospital Getúlio Vargas, sendo sepultado no Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro. O “Mestre-Sala dos Mares” nos deixou uma herança de coragem e dignidade. Incrível é o fato que, em seu velório, ocorrido em pleno regime militar, foi vigiado por viaturas na área do cemitério.
Em 1959, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul concedeu uma pensão de dois salários para o marinheiro gaúcho. A pensão foi o único dinheiro que João Cândido recebeu dos cofres públicos, após a revolta de 1910, para sustentar a sua família.
O jornalista Edmar Morel (1912-1989) demonstrou sua importância para o país. Sustentado por entrevistas, com João Cândido e outros companheiros da revolta, matérias impressas nos jornais à época, documentos oficiais da Marinha e o diário do navio “Satélite”, o jornalista fez uma releitura da história apagada da memória da Nação. Foi um trabalho pioneiro e João Cândido, ainda em vida, teve a satisfação de ver publicado o livro A Revolta da Chibata (1959). Esta obra esteve muitas vezes nas listas dos livros mais vendidos, ao lado dos volumes do grande Jorge Amado (1912-2001). O jornalista Edmar Morel (1979, p. 182) registrou o depoimento que se segue, dado por João Cândido acerca da morte dos companheiros na prisão da Ilha das Cobras:
“Depois da retirada dos cadáveres, comecei a ouvir gemidos dos meus companheiros mortos, quando não via os infelizes, em agonia, gritando desesperadamente, rolando pelo chão de barro úmido e envoltos em verdadeiras nuvens da cal. A cena dantesca jamais saiu dos meus olhos.”
Homenagens ao Mestre-Sala dos Mares
Na maior festa popular do mundo, o Carnaval, a União da Ilha do Governador (RJ), em 1985, e a Camisa Verde (SP), em 2003, homenagearam a figura do Almirante Negro em seus enredos.
Em julho de 2008, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a anistia póstuma ao marinheiro João Cândido Felisberto, líder da revolta da chibata (1910). A anistia havia sido proposta, desde 2002, pela senadora Marina Silva (PT-AC). Numa solenidade em 20 de novembro de 2008, “Dia da Consciência Negra”, com a ausência da Marinha e do Ministério da Defesa, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reinaugurou no Rio de Janeiro, à beira-mar, a estátua do “Mestre Sala dos Mares” João Cândido Felisberto.
Devido à resistência da Marinha, a estátua demorou meses até ser transferida para a Praça XV, no centro do Rio de Janeiro. Antes, ela se encontrava no Museu da República. Graças à atuação do ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, a transferência se efetivou. Na ocasião o ministro declarou: “É uma medida emblemática na luta contra o racismo e pela Igualdade Racial, quando comemoramos 120 anos da Abolição da Escravatura. João Cândido é um herói negro do Brasil.”
Porto Alegre (RS) presta homenagem a João Cândido, no Parque Marinha do Brasil, por meio de um busto, criado pelo artista plástico Vasco Prado (1914-1998). Este é uma réplica de outro que se encontra na tradicional Sociedade Floresta Aurora, fundada, em 1872 por negros alforriados.
João Cândido ainda faz por merecer o reconhecimento do povo brasileiro pela sua coragem em desafiar e lutar por uma sociedade menos excludente e mais solidária. Sua luta foi pelo direito sagrado da liberdade diante de uma “abolição da escravatura (1888)” que libertou o escravizado do cativeiro, mas não viabilizou o acesso à cidadania plena. O legado de João Cândido (1880-1969), o “Mestre-Sala dos Mares”, é o exemplo de que não devemos nos calar jamais, lutando sempre que a liberdade e o bem comum estejam ameaçados em qualquer latitude do planeta.
Bibliografia
BRAGA, Cláudio da Costa. 1910 – O Fim da Chibata – Vítimas ou Algozes. Rio de Janeiro: Editora Cláudio Braga, 2010.
CHEICHE, Alcy. João Cândido: O Almirante Negro. Porto Alegre: L & PM, 2010.
GRANATO, Fernando. O Negro da Chibata. Rio de Janeiro: Editora Objetiva 2000.
MAESTRI, Mário. Cisnes negros: 1910: a revolta dos marinheiros contra a chibata. São Paulo: Moderna, 1998.
MARTINS, Hélio Leôncio. A revolta dos Marinheiros – 1910 Rio de Janeiro: Imprensa Naval, 1985.
MOREL, Edmar. A Revolta da Chibata. 4ª edição. 1986. Editora Graal.
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Cidadania, cor e disciplina na revolta dos marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad, 2008.
MEMÓRIAS DA CHIBATA (2005). Filme sobre João Cândido e a Revolta da Chibata
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Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite é pesquisador e coordenador do Setor de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa