Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O idiota da aldeia e o portador da verdade

“O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”, frisou o escritor e filólogo Umberto Eco, ao receber o título de doutor honoris causa em Comunicação e Cultura, na Universidade de Turim, na Itália. Crítico do papel das novas tecnologias na disseminação de informações, o pensador italiano foi enfático, ao reclamar que “normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel”. Para o autor de Apocalípticos e Integrados (1965), antes das redes sociais, os “idiotas da aldeia” tinham direito à palavra “em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”.

Ponto positivo da opinião de Eco foi trazer à baila a importante relação que precisa existir entre liberdade de expressão e responsabilidade argumentativa. A liberdade de opinião e o direito de expressá-la são uma conquista social, não apenas um direito individual para servir aos interesses e ao narcisismo de pessoas ou de grupos. Portanto, o livre exercício do direito de opinar, criticar, caricaturar e denunciar exige reflexão, responsabilidade e ética. Não podemos transformar a liberdade de expressão em um dogma, pois os dogmas são antidemocráticos e geram autoritarismo e posições extremistas.

Ponto negativo da declaração de Eco foi adotar um tom arrogante, agressivo, reducionista, repressivo e preconceituoso, ao proferir: “Redes sociais deram voz à legião de imbecis.” Em um regime democrático, caro Umberto Eco, tanto “um Prêmio Nobel” como “a legião de imbecis” têm o mesmo direito à palavra. A democracia é inconciliável com a censura porque a censura obsta o regular funcionamento da democracia. São condições essenciais para o funcionamento da democracia a livre circulação de ideias, opiniões, fatos, além do pluralismo ideológico. A censura também se constitui uma imposição autocrática e unilateral de ideias e opiniões. Aliás, cumpre evocar que a censura está sempre aliada aos regimes autoritários e antidemocráticos. Assim, por violar um direito dos mais caros ao homem, a liberdade de expressão, a censura torna-se incompatível com a democracia.

A liberdade de expressão, consagrada na Declaração dos Direitos Humanos de 1948, aprovada pela ONU e em textos constitucionais sem nenhuma forma de censura prévia, constitui um dos pilares mais importantes das sociedades democráticas. Ela compreende a faculdade de expressar livremente ideias, pensamentos e opiniões, sem impedimentos nem discriminações. O grito de alerta proclamado por Umberto Eco ganharia consistência argumentativa mais equilibrada se entrasse no mérito de enfatizar a relevante distinção entre liberdade de expressão e direito à informação. O objeto da liberdade de expressão compreende os pensamentos, as ideias e as opiniões, enquanto que o direito à informação abrange a faculdade de comunicar e receber livremente fatos que podem ser considerados noticiáveis.

Promoção da sociabilidade e da opinião pública

Edilsom Farias, promotor de Justiça e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no artigo “Democracia, censura e liberdade de expressão e informação na Constituição Federal de 1988” (Revista Jus Navigandi, de 01/10/2001), estabelece um divisor conceitual importante sobre a matéria em destaque:

“A referida distinção entre liberdade de expressão e direito à informação revela-se de grande importância para a densificação do âmbito de proteção, bem como para a demarcação dos limites e responsabilidades decorrentes do exercício desses direitos fundamentais. Por exemplo, enquanto os fatos são susceptíveis de prova da verdade, as opiniões ou juízos de valor, devido à sua própria natureza abstrata, não podem ser submetidos à comprovação. Resulta que a liberdade de expressão tem o âmbito de proteção mais amplo do que o direito à informação, vez que aquela não está sujeita, no seu exercício, ao limite interno da veracidade, aplicável a este último.”

Na esteira do pensamento filosófico proposto por Jürgen Habermas, pensamos também que a razão argumentativa qualifica a ação comunicativa, uma vez que promove as condições pelas quais será possível o florescimento de um debate livre entre as diferentes concepções de vida existentes na sociedade. Em decorrência, um ordenamento social somente pode ser considerado legítimo se puder ser validado por meio de um processo argumentativo, ou seja, de uma relação intersubjetiva comunicativa. É mais elegante compreender nestes termos o clamor de Umberto Eco, que se soma à preocupação geral com o exercício da responsabilidade argumentativa em sintonia com a qualidade consistente dos posicionamentos defendidos individual e socialmente no ambiente das redes midiáticas.

Não se pode, ao jogar a água suja fora, jogar, juntas, a criança e a bacia. Nem só de idiotice vivem as redes sociais, como apregoa Umberto Eco. Há manifestações de inteligência e sensibilidade que tornam este veículo de comunicação decisivo para a promoção da sociabilidade e da opinião pública. Como diria Marshall McLuhan, os meios de comunicação são extensões do homem. Por isso, complemento: é no espaço da comunicação dialógica e ética que a sociedade pode vencer o muro mental que divide “nós” e “eles”.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é jornalista, poeta, doutor em Estudos Literários e professor da Faculdade JK