Foi como perder um amigo de infância que há muito tempo não via. Um pesar mais simbólico e nostálgico do que afetivo; pois, como ensinava um bolero de Lucho Gatica, a distância nos faz esquecer (em espanhol é melhor: “dicen que la distancia es el olvido”), e eu passei décadas geograficamente afastado da livraria Leonardo Da Vinci. O que não significa que a esqueci; apenas deixei de frequentá-la depois de concentrar minhas atividades profissionais na zona sul do Rio e de receber minhas revistas francesas (Cahiers du Cinéma, Positif, Critique, Esprit, Communications etc.) diretamente de Paris e a comprar in loco os livros que antes só me chegavam da Europa através da Da Vinci, a nossa La Hune.
Como esquecer minha alma mater bibliográfica? Da Vinci foi a minha Sorbonne. Praticamente tudo o que de fundamental aprendi em francês e italiano sobre arte, filosofia e política, saiu das estantes daquela “loja subterrânea, ao termo de uma espiral” no 185 da avenida Rio Branco, cujo fechamento os jornais e a intelectualidade (não só a do Rio) prantearam no início do mês.
O que saiu entre aspas na frase anterior é um trecho da poesia que Drummond dedicou à livraria, de quem era frequentador assíduo. Encontrei-o lá algumas vezes, sempre a conversar com D. Vanna, reitora do pedaço. Giovanna Piraccini, uma antenadíssima imigrante que sabia de tudo e tudo parecia ter lido, criou a Da Vinci em 1952, três anos depois de chegar ao Brasil com o marido, o romeno Andrei Duchiade. Não conheci seu primeiro espaço, no Edifício Delamare da Presidente Vargas, onde ficou só até 1956, mas ainda peguei vivo o discreto Andrei, que me lembrava fisicamente Jean-Paul Sartre.
Andrei morreu em 1965, e D. Vanna, ainda viva com 89 anos, teve de tocar o negócio sozinha, eventualmente ajudada por um jovem universitário. Que rumo tomou na vida o solícito e erudito Manuel, cujo sobrenome sempre ignorei? Luiz Felipe Baeta Neves, outro que, se não troquei os canais, também trabalhou na livraria, se consagrou como um antropólogo de primeira linha.
Tinha o hábito de dar uma passada por lá duas ou três vezes na semana. No início dos anos 1960, para livros e revistas de cinema em língua inglesa (Sight & Sound, Films and Filming, Film Comment) a Crashley, no 68 da Ouvidor, era imbatível. Embora houvesse uma Livraria Francesa no prédio da Maison de France, ao lado da Faculdade Nacional de Filosofia, onde estudava, meus primeiros Cahiers du Cinéma e meus primeiros ARTS foram comprados na Da Vinci. Lá me iniciei no Nouveau Roman, sarampão de que depressa me curei, conheci Charles Fort (na tradução francesa: Le Livre des Damnés), Louis Pauwels (e seu Matin des Magiciens), Eco (Obra Aberta, na primeira edição da Du Seuil), e me familiarizei com o pensamento de Alain, Merleau-Ponty, Walter Benjamin (traduzido pela Denoël, sob a supervisão de Maurice Nadeau), noves fora Camus & cia.
“Morre uma discussão”
Ah, o ARTS, que cachaça! Grafado assim mesmo (em maiúscula, quatro letras serifadas em preto sobre fundo amarelo, entremeadas pelas palavras “lettres”, “spectacles” e “musique”, em letra cursiva), era “o hebdomadário da inteligência francesa”, um jornalão medindo 40cm x 60cm. Já o conheci sem a legendária página de cinema que, em meados dos anos 1950, era dividida entre Truffaut, Godard, Rohmer e Chabrol, sucedidos, que luxo, pela dupla Jean Domarchi-Jean Douchet, também dos Cahiers. Foi pelo ARTS que tomei conhecimento, em 1963, do romance de estreia de J.M.G. Le Clézio, Le Procès-verbal, estrondo literário que logo me chegou às mãos, por coincidência no mesmo dia em que fui apresentado a Fernando Gabeira, em plena Cinelândia. “Como você conseguiu?”, perguntou, os olhos arregalados de surpresa e inveja benigna. Ora, como; com D. Vanna, bien sur.
Ela conseguia tudo. Fui o primeiro (e, por um bom tempo, o único) de minha turma na FNFi com acesso a uma raridade incluída no currículo pelo professor José Américo Peçanha: La Philosophie et Sa Structure, de Raymond Vancourt. Um solitário exemplar adormecia nos arcanos da Da Vinci, e o jeito foi copiá-lo para os colegas, pelos primitivos meios de reprodução da época.
Numa antiquíssima caderneta de endereços, encontrei, dia desses, o velho telefone da livraria (527192) que, na época, sabia de cor, embora ligasse bem menos para lá do que de lá recebia recados sobre a chegada de novas encomendas, sempre anotados pela empregada de uma forma que jamais ousei corrigir: “Ligaram pro senhor da Leonardo da Vinte”. E lá ia eu endividar ainda mais minha conta, a 1403, a duras penas mantida por suaves prestações mensais.
Outros tempos. Com uma clientela fiel, a Da Vinci podia dar-se o luxo de vender suas mercadorias lentamente, sem ceder espaço a chorumelas e inglórios best sellers. Resistiu a um incêndio (em 1973), à tentação de ampliar a freguesia com cafés, artigos de papelaria e informática, à montante da autoajuda e ao avanço das megalivrarias, mas seu modelo de negócio, assediado pelo comércio de livros eletrônicos e à mercê de um mercado editorial cada vez mais filistino, tornou-se inviável. Além de prejudicado pelas constantes obras da prefeitura na Rio Branco.
“Estamos sendo punidos por nossas qualidades; nossas virtudes tornaram-se defeitos”, desabafou Milena Duchiade, filha de Andrei e D. Vanna, que há tempos dirige a livraria e a quem coube organizar a liquidação de seu farto e precioso estoque, iniciada há duas semanas, quando ainda havia a esperança de que o empresário Omar Peres, ligado a restaurantes, bares e padarias, confirmasse sua intenção de comprar e revitalizar a Da Vinci.
Quase que simultaneamente ao saldão da Da Vinci, a histórica La Hune também fez a sua queima de estoque. Aberta em 1949 por intelectuais da Resistência, bem no plexo do existencialismo, no Blvd St.-Germain, não resistiu ao segundo assalto gentrificador do mundo fashion, e, já em seu segundo endereço nas vizinhanças, fechou as portas para sempre no dia 14. Seus últimos livros, como da outra vez, foram arrematados pela escritora, fotógrafa e artista conceitual Sophie Calle.
Adam Gopnik concluiu seu relato sobre os funerais de La Hune com três frases aplicáveis aos funerais da Da Vinci: “Livros não são apenas artigos de luxo; são alavancas de nossa consciência. Toda vez que uma livraria fecha, morre uma discussão. Isso não é bom”.
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Sérgio Augusto é jornalista, colunista do Estado de S.Paulo