Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Complexo de pitbull

Há, na mitologia grega, a figura do salteador Procusto, derrotado por Teseu, que vivia na serra de Elêusis e ficava perambulando pelas estradas em busca de vítimas. Quando as encontrava, Procusto costumava puni-las em sua casa, em um leito que tinha tamanho fixo e forma imutável. Se a vítima fosse maior que o leito, suas pernas eram cortadas, se fosse menor, eram esticadas. A vítima devia caber em seu leito obrigatoriamente. Assim acontece também com os pensamentos e valores. O ser humano, quando incorre no erro da generalização, tenta adequar a vida e as situações aos seus leitos mentais e emocionais. Natural que todos tenham referências e que elas sirvam de baliza para se conduzir na vida e analisá-la. No entanto, à proporção que o ser amadurece, conceitos e entendimento são relativizados, permitindo que a dúvida tempere a certeza para que a verdade não se transforme em convicção. A compreensão é um ato de alteridade que significa valorização e inclusão da diferença como elemento fundamental da riqueza e da beleza da vida. Pensar, assim como sentir, pede resiliência.

O que é resiliência? Propriedade de um material em recuperar a sua forma ou posição original após sofrer choque ou deformação; elasticidade. No sentido figurado: poder de recuperação, capacidade de superar, de se recuperar de adversidades. E alteridade, o que seria? Capacidade de compreender o outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença. Sem resiliência e alteridade, somos um pote até aqui de mágoas. Muitos mantêm essa postura durante toda a vida, negando a dor emocional, que somatizam, mas não curam, lembrando uma frase comum de para-choque de caminhão e adesivos de vidro de carro, observadas nas estradas brasileiras: “Eu capoto, mas não freio.” Muitas doenças decorrentes das mágoas acumuladas na alma são evitáveis e representam a escolha do indivíduo em não se curar, ficando preso aos ganhos do papel de vítima da vida. O ressentimento não salva nem os campeões, não é mesmo, caro Dunga?

Informa o Correio Braziliense, de 27/06/2015, com manchete violenta: “Pediu pra apanhar”. Eis o miolo da matéria: “Na sexta-feira, véspera do fiasco sobre o Paraguai, pela Copa América, um repórter pediu para o técnico dizer se a pressão sobre a geração do 7×1 é maior do que a sofrida pela seleção da época dele – campeã da Copa América de 1989 e do Mundial de 1994; mas eliminada nas oitavas de 1990, na Itália. O então jogador Dunga foi culpado por não ter passado Maradona no lance em que o craque deu o passe para o gol de Caniggia. ‘Simples. Nós éramos ruins com sorte, os outros eram bons com azar. Aquela seleção tinha uma cobrança de 40 anos sem Copa América e 24 anos sem uma Copa do Mundo. Eu até acho que eu sou afrodescendente de tanto que apanhei e gosto de apanhar. Os caras olham para mim: ‘Vamos bater nesse aí’. E começam a me bater, sem noção, sem nada. ‘Não gosto dele’ e começam a me bater’, desabafou Dunga.” Continua tendo razão o abolicionista Joaquim Nabuco: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.”

Um país desbotado pelo ranger de dentes diário

Dunga e seu racismo estrutural. Dunga e sua falta de autocrítica. Dunga e sua arrogância peculiar. Dunga e sua mania de perseguição. Pare de promover o massacre da bola quadrada, dentro e fora dos campos. Ninguém fica imune ao confrontamento de tudo aquilo que tenha promovido em si mesmo ou no outro, visto que a lei da justiça tudo prevê, com equilíbrio, retornando ao ser, em seu corpo, em seu psiquismo e em circunstâncias o fruto de seu plantio, mais cedo ou mais tarde. Dunga, por que tanta sede de vingança? Por que tanta fome de sangue? O desejo de se fazer canal de justiça, que move os guerreiros e valentões, no cumprimento do “olho por olho, dente por dente”, escraviza o ser exatamente às emoções perturbadas, bem como o vincula às criações mentais que reforçam os padrões de ódio, angústia e infelicidade.

Aviso ao comandante da seleção brasileira: é necessário encarar a sombra, seus desafios, sua beleza oculta, sem medo, com amorosidade, questionando-se sempre a respeito de seus reais objetivos e interesses, manifestos ou ocultos, diante de seus sentimentos e realizações. Caso contrário, o medo negado se transforma em confrontamento, comportamento de risco que não reconhece limites ou perigos, e a sua vivência exacerbada será a eterna sensação de pânico. A tristeza não vivida, não sentida, será melancolia, e exacerbada será depressão. Negada, dá origem a mágoas; exacerbada, vira agressividade. Raiva é a resposta defensiva do mundo íntimo diante de uma ameaça de qualquer natureza, real ou imaginada. Na raiz de toda mágoa há raiva, reprimida ou reconhecida. Alguém que tenha a característica de liderança pode se tornar submisso ou autoritário, dependendo do “volume” de sua liderança, o que pode colocar a perder a característica que seja o seu ponto forte. Dunga, você é campeão do mundo, mas não consegue ganhar da própria petulância. Há aqueles, como o técnico da seleção brasileira, que gostam e envaidecem-se de dizer: “Aqui mando e sou obedecido”, sem lhes ocorrer que paira no ar um adendo revelador: “E sou detestado.”

Aquele que é verdadeiramente respeitado o é pela seriedade, comprometimento e sem a necessidade de levantar a voz para que o outro o acolha; quando tal postura se faz necessária, no estabelecimento de limites que às vezes as relações requisitam, o faz com clareza de intenções e argumentações sobre o que propõe ou pensa. Dunga é o retrato de um país desbotado pelo ranger de dentes diário. Se antes o Brasil vivia “o complexo de vira-lata”, como alertou Nelson Rodrigues, agora sofremos com o complexo de pitbull.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários