Como se não bastasse a exibição de truculência dos comparsas de José Sarney no Senado, como se não bastasse a reaparição despudorada de figuras banidas como Collor de Mello e Renan Calheiros no cenáculo do sistema representativo, como se não bastasse a consagração do cinismo e da mentira numa República empurrada pela real politik para a beira do abismo, como se não bastasse o retorno vexatório dos senadores biônicos criados pelo regime militar, como se não bastasse o clima de ruptura no início do agourento mês das bruxas, tivemos na sexta-feira (7/8) mais uma fanfarronada proferida por aquele que deveria ser o mais sensato, o mais discreto e o mais judicioso dos nossos expoentes.
Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, afirmou que a proibição imposta ao jornal O Estado de S.Paulo de revelar informações sobre a operação da Polícia Federal que investiga o clã Sarney não constitui censura, ‘é decisão judicial, não é política’.
Vitorioso em duas recentes polêmicas que colocaram a liberdade de expressão como cláusula pétrea do nosso ordenamento jurídico (a extinção integral da Lei de Imprensa e o fim da obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo), o meritíssimo reconheceu que ‘é possível fazer restrições à liberdade de expressão’ e confessou que não conhecia suficientemente o caso da punição ao Estadão.
Aura divina
Se Gilmar Mendes não conhece a questão sobre a qual se manifestou deveria calar-se. Uma autoridade que se pronuncia sobre algo que ignora corre o risco de ser considerada leviana ou irresponsável. Um magistrado só fala com base nos autos e se o ministro Mendes não teve acesso aos autos – e, mesmo assim, proferiu um juízo prematuro – está oferecendo um lamentável exemplo a todos os magistrados do país, já que além presidir o Judiciário, também preside o Conselho Nacional de Justiça. E se admite que é possível fazer restrições à liberdade de imprensa está admitindo publicamente que os seus votos anteriores partiram de premissas erradas e, portanto, estão basicamente errados.
Gilmar Mendes confunde tudo: o cerceamento da liberdade de informar do Estadão pelo desembargador Dácio Vieira pode não ter motivação política, porém continua valendo como um inequívoco ato censório. É autoritário e antidemocrático. E embora classificada como ‘decisão judicial’ pode estar errada, seja sob o ponto de vista técnico como moral. Convém não esquecer que o desembargador tem notórias ligações com o clã Sarney e seus apaniguados.
Certamente levado pelas melhores intenções, o ministro Gilmar Mendes, tenta envolver as decisões judiciais com uma aura de infalibilidade, divina, porém insuficiente para conferir à instituição que preside a necessária confiabilidade.
Ambições desmedidas
O desembargador Dácio Vieira não quis punir o Estadão por ter vazado informações de um inquérito protegido pelo segredo de justiça, o que poderia ter algum cabimento. Inclusive no âmbito da deontologia jornalística. Sua sentença não se refere a uma ação passada, a intenção dos advogados da família Sarney era preventiva: proibia a divulgação de revelações futuras. Este tipo de recurso tem nome: censura prévia. Inspirada em compadrio ou interesse político, é um flagrante atentado à liberdade de informar. Não é censura fardada, é censura togada.
Não contente com a barafunda que armou no campo da liberdade de expressão, o supremo magistrado enveredou temerariamente pela crise política desencadeada pela eleição de José Sarney para a presidência do Senado. Como cidadão, é legítima a sua preocupação com os sucessivos escândalos no Senado e também a sua angústia cívica diante da continua interrupção dos mandatos dos presidentes da Casa. Na condição de chefe do Poder Judiciário, porém, sua manifestação é impertinente e extemporânea. Não pacifica, exacerba.
Em nosso país, combinam-se as fúrias, a prepotência, as ambições desmedidas e a hipocrisia de diversas formas e nas mais variadas circunstâncias. Nesta quadra do ano, o pernicioso coquetel já produziu desfechos que ficaram conhecidos como agosteiros.
Plenos de desgostos.