Dois textos recentes publicados na Folha de S.Paulo – a reportagem ‘Tela fria‘ (30/7) e o editorial ‘A TV que não pega’, no dia seguinte – retomam a discussão sobre a EBC (Empresa Brasil de Comunicação) e a chamada televisão pública brasileira. São anotações essencialmente corretas, mas bastante tímidas. A reportagem tem como mote a saída de Luiz Gonzaga Beluzzo da presidência do Conselho Curador da empresa e o editorial alerta para a falta de penetração da TV Brasil, antes de sugerir a extinção da empresa.
Já que tocou no assunto, a Folha teria feito bem em aprofundá-lo. Os danos causados pelo que tem acontecido nos 19 meses desde que a EBC foi criada vão além do fato de a emissora onerar o contribuinte em 350 milhões de reais por ano em troca de nada. Nesse período de tempo, a EBC acabou comprometendo a utopia da construção de uma TV pública no país, que é em muitas décadas anterior a ela. Pior do que isso: colaborou para sedimentar a idéia de que uma televisão pública não é muito deferente de uma típica repartição pública: atrasada e descomprometida com o desenvolvimento da atividade-fim.
A Folha afirma que a EBC transformou-se num mero cabide de empregos. Mesmo que esteja certa, isso é como preocupar-se com o resfriado de uma pessoa que esteja com câncer. Parte do problema, como aponta o jornal, está no seu histórico. De fato, a gestação da EBC foi no Ministério da Cultura, mas, para reduzir o poder do MinC sobre ela, o governo acabou se decidindo por uma política de conflitos. Instalou o tiroteio no saloon, onde alguns ficam feridos, mas o bar despedaçado. Estabeleceu um modelo de gestão em que nem mesmo o governo tem condições de entrar na empresa que criou.
Interferir nos modelos
Televisão é uma atividade muito importante no Brasil. Televisão pública, ainda mais. Isso não acontece por acaso. O Brasil tem uma forte cultura televisiva, sedimentada por muitos anos de bons resultados da televisão privada. O fracasso do modelo de implantação da TV por assinatura no país (que tem menos de 10% de abrangência, contra mais de 90% nos EUA e na Europa) gerou uma concentração de audiência em duas ou três redes abertas que não tem similar no mundo. Tanto o conteúdo quanto o modelo de produção dessas redes, no entanto, são bem semelhantes.
Definiu-se uma dramaturgia padronizada e estipulou-se que produtor e exibidor são a mesma coisa – isto é, que cabe às emissoras produzir quase tudo o que exibem. Isso é também singular em relação ao resto do mundo. O processo imitativo de construção tanto de conteúdo quanto de grades de programação fez com que tudo ali se parecesse – e mais: o sucesso de uma emissora passou a ser aferido pela sua capacidade de clonar a competidora. Triunfaram as semelhanças, não as diferenças.
É um modelo que está instalado de fato, mas não é um modelo bom – e, como tudo, tem seu preço. Nesse caso, o preço mais alto é o engessamento da atividade, a sua incapacidade de produzir novidades. Seja no que diz respeito ao conteúdo, aos modelos de produção ou de negócios.
Para poder ser igual, a televisão aberta brasileira pretendeu esquecer que a sociedade é diferente. Foi se refugiar numa região do cosmos que está 10 ou 20 anos atrasada em relação aos jovens, ou aos brasileiros que não consideram ser necessário assistir A Fazenda ou ao BBB para se sentirem ligados ao mundo. Passou a ser um corpo estranho para o cidadão que se reconheça como parte de um nicho – social, cultural ou etário. Discretamente, tornou-se menos massificante. Caiu na armadilha que criou.
É aí que entra a televisão pública. Como o nome sugere, ela é paga pela sociedade. Mas não é paga para enfastiá-la; nem para lançar-lhe o obsoleto. É paga para lhe propor a experiência formal, a novidade conteudística, formas inovadoras de pensar os mecanismos de produção, o entendimento das formas de utilização das tecnologias disponíveis. É paga para ser consumida. E, como o produto de uma televisão é a programação, a programação tem que ser consumível.
De todos os desafios de uma televisão pública no Brasil, o de interferir sobre os modelos de produção vigentes é o mais fácil de vencer – e o de maior impacto sobre a atividade. Em um ano e sete meses, isso já poderia ter sido feito. Mas os fatos apontam em outra direção.
Caminho longo
Há duas semanas, a TV Brasil lançou um pitching para uma série de 36 programas sobre meio-ambiente e sustentabilidade. Pitchings são concursos para escolha de projetos. Estiveram na moda há dez anos, embora hoje sejam reconhecidos como formas pouco eficazes de construção de programação. De qualquer maneira, trata-se do primeiro concurso que a emissora conseguiu lançar nesse tempo todo (excetuando-se um inusitado projeto sobre a África).
Para a produção desta série, ela está destinando cerca de 1 milhão de reais. Isto significa 1% do que pretende gastar este ano em programação, ou 0,3% do que recebe anualmente da sociedade brasileira. Ainda assim, boa parte da comunidade audiovisual do país saudou a medida como se fosse a redenção do setor. Isso é notavelmente revelador de como os próprios produtores de conteúdo se acostumaram a uma situação anormal. Esta situação vem sendo acalentada pela EBC, com dois resultados perversos: amestra a produção e espanta a audiência.
Para sustentar-se numa teia de ardis corporativistas infantilmente banais, a EBC chegou a acenar com a possibilidade de se transformar num balcão de benefícios para produtores audiovisuais. É o pior que poderia acontecer com uma emissora pública. Só não fez isso porque era pouco dinheiro para muito vespeiro. A produção de conteúdo, que deve ser terceirizada como em qualquer lugar civilizado, deve obedecer, em televisão, a um ideário construído com solidez. Tem que vincular-se a estratégias sofisticadas de programação que passam ao largo de conselhos de achistas montados para ‘democratizar’ o funcionamento de uma empresa pública.
É claro que para a EBC refluem práticas do Estado que a abriga. Mas uma televisão pública saudável pode florescer mesmo dentro desse ambiente. Deve lutar para isso – e é questionável que a EBC o esteja fazendo. Talvez a Folha de S.Paulo não esteja certa ao propor, pura e simplesmente, a extinção da empresa – mas não se pode deixar de entender as razões que a fazem pensar assim. O que o jornal parece estar dizendo é que a EBC tem que cumprir o seu papel, ou não terá razão alguma para existir.
Uma televisão de excelência, afinada com o seu tempo, renovadora e útil à sua sociedade, é coisa possível. Sabemos que isso não está acontecendo no bojo da televisão privada. Há, portanto, um grande caminho a ser percorrido. Se não for pela televisão pública, por quem haverá de ser?
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Jornalista