Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Novos desafios para a TV Brasil

Não surpreende o editorial do jornal Folha de S.Paulo pedindo o fechamento da TV Brasil a pretexto desta ser irrelevante e gastar muito. A Folha também vê com desprezo e como gastança descabida o Bolsa-Família que está reduzindo a desnutrição crônica de crianças no limite entre a vida e a morte, portanto… Não será a primeira vez que a Folha incorre em posições antagônicas ao previsto na Constituição. Antes, a Folha participou do esquema de repressão a cidadãos brasileiros montados pela ditadura e esta é uma página inapagável na história deste jornal que não tem como reivindicar, sem causar risos, liberdade de expressão e direitos humanos.


Mas, agora a Folha, cuja tiragem de exemplares despenca ladeira abaixo – seria bom se pudéssemos também conhecer a ‘voltagem’ de exemplares rejeitados pelo escasso público leitor – vem novamente afrontar um dispositivo constitucional, aquele que prevê a complementaridade entre sistemas público, privado e estatal de comunicação. Embora não tenha oferecido os instrumentos para a realização concreta deste equilíbrio salutar e democrático entre modelos comunicativos, os constituintes foram sábios, como revelou o saudoso senador Arthur da Távola, indicando que as gerações futuras saberiam construir as condições políticas para que a nefasta tirania do mercado sobre a comunicação fosse corrigida e superada, tornando este artigo da Constituição uma realidade, que ainda não é.


Um passo concreto para começar a inverter este desequilíbrio que tem como efeito submeter a sociedade brasileira a uma comunicação embrutecedora, sensacionalista e deseducativa, foi a criação da TV Brasil, por meio da constituição da Empresa Brasil de Comunicação, de posse do estado brasileiro. Sabemos como é complexa a constituição de uma emissora de televisão, a superação de sua herança de jornalismo oficialista-bajulativo – o que já vinha sendo processado pelas gestões recentes da ex-Radiobrás – mas também a resistência às pressões de fato e de direito para realizar outra concepção de comunicação. Tão complexo é isto que a própria Folha se vê às voltas com queda vertiginosa de suas tiragens, jornais como a Gazeta Mercantil e a Tribuna da Imprensa fecharam as portas, fenômeno que também ocorre nos EUA e na Europa hoje, tendo o legendário jornal Le Monde também confessado recentemente estar em meio à vigorosa crise.


Mas, diante dos desafios de fazer uma TV de novo tipo, sintonizada com a Constituição, que prega a uma comunicação humanista, educativa, brasileira, regionalizada, diversificada – nada disso é praticado pelas TVs comerciais brasileiras – qual a solução apontada pela Folha para a TV Brasil que está apenas iniciando sua caminhada e já registrando elementos positivos na grade de programação que apresenta ao público? Fechar! Repitamos: ao invés de solicitar que a TV Brasil siga no seu esforço para cumprir, sim, o que está previsto na Constituição, fazendo uma TV sem marca da TV privada que com mais de 50 anos de existência – sempre privilegiada pelos recursos públicos que lhe permitiram erguer-se como conglomerados poderosos, e, até mesmo exorbitar para uma atuação política não respaldada em lei – a Folha pede simples e candidamente que se feche a TV Brasil!


O fechamento da Embrafilme


Tivemos exemplos anteriores em que a demolição do instrumentos públicos de comunicação e cultura – apoiados pela mídia privada, a Folha inclusive – resultou em prejuízos para o Brasil, a nossa cultura, a nossa indústria de audiovisual. Refiro-me à extinção da Embrafilme. Quando ela existia, o filme brasileiro de maior bilheteria da história foi Dona Flor e seus dois maridos, baseado na obra genial de Jorge Amado. Naquela época, o cinema brasileiro chegou a ocupar 40% do mercado. Uma campanha orquestrada de fora, com o apoio da mídia que embora se diga ‘a serviço do Brasil’ trabalhou contra o audiovisual brasileiro e favoravelmente à ocupação deste mercado pela produção audiovisual oligopólica norte-americana, fez com que hoje o mercado cinematográfico brasileiro seja ocupado em mais de 90% por filmes de Hollywood. Não por filmes estrangeiros genericamente, mas apenas por filmes de Hollywood, que lá recebe estratégico apoio estatal. Não apenas porque como disse um dos ocupantes da Casa ‘Branca ‘aonde vão os filmes norte-americanos, também vão as nossas mercadorias’, mas, sobretudo porque mantém acesa, renovada e agressiva a estratégica de ocupação e de expansionismo dos chamados interesses vitais do império. Eles enviam os filmes, contratam bolsistas, compram ações da Petrobras com dólar emitido sem lastro-ouro, depois enviam tropas para o Iraque, Colômbia e renovam a Quarta Frota, que é muito mais que uma base flutuante sobre os limites do petróleo pré-sal, lembrando que não reconhecem o mar territorial das 200 milhas. Tema que deveria ser tratado com muito mais exuberância e pertinência pelo jornalismo da TV Brasil. Afinal, o presidente Lula está condenando a nova instalação de bases militares estadunidenses na Colômbia e também a presença da Quarta Frota. Que pautaço!


Neste contexto, vai ficando sempre mais claro o papel desempenhado pela Folha. A TV Brasil deveria tomar-se em brios, aproveitando esta estapafúrdia recomendação do concorrente para não apenas seguir avançando naquilo que tem acertado com uma grade de programação humanista, educativa, respeitadora da diversidade cultural e histórica brasileira, sem concessões à imposição da ditadura publicitária cervejeira ou medicamentosa que domina a mídia privada. Deve também perceber o complexo quadro que está sendo formado, de hostilidades declaradas, ainda mais porque a mídia privada tem o eterno e petulante sonho de não ter que dividir recursos públicos com uma empresa de comunicação do campo público. A mídia privada fala nos benefícios da concorrência, mas quer mesmo é monopolizar as verbas públicas para a comunicação social. Não quer concorrência, nem da TV Brasil.


Esta também foi a razão da campanha da mídia comercial quando do surgimento da TV Senado, da TV Câmara: a mídia privada não admite a idéia da comunicação pública escapando ao seu controle e quer o monopólio sobre a cobertura dos assuntos do Congresso, agora dificultado pela transparência e pela diversidade editorial que a comunicação legislativa oferece ao público, com uma possibilidade de audiência crescente, enquanto a tiragem da Folha vai em direção oposta. Se tivéssemos dado ouvidos à mídia privada na época hoje não existiriam as TVs legislativas. Se tivéssemos dado ouvidos ao Estadão em 1953, hoje também a Petrobras nem existiria.


O exemplo encorajador do retirante que venceu o jornalismo conservador…..


O presidente Lula compreendeu muito bem este panorama, provavelmente por sua experiência própria em resistir e vencer a tamanhas e tão sistemáticas campanhas de demolição de sua imagem que queriam impedir que um retirante chegasse à presidência da República. Talvez falte à TV Brasil compreender esta situação que se afigura como de sabotagens anunciadas – ou seja, o concorrente quer apenas que você não exista – e transforme esta compreensão num jornalismo realmente liberado dos padrões jornalísticos praticados pela mídia comercial. Seu caráter educativo, cultural, diversificado regionalmente vai sendo assegurado e merecendo reconhecimento. Porém, o jornalismo padece dos males que levam o jornalismo privado a cometer os mesmos erros de interpretação, avaliação, pautando-se pelos mesmos valores. É verdade que não chega a ponto de divulgar montagem de documentos de ex-presos políticos, como a Folha fez com a ficha da ministra Dilma Rousseff. Bom, mas aí já não estamos falando de jornalismo.


A TV Brasil tem sim uma função a cumprir, tem cumprido parcialmente o papel previsto na Constituição para a TV e está superando vários obstáculos que a impedem fazer isto com plenitude. É, por exemplo, a única emissora que tem programas que discutem a própria mídia como o Ver TV e o Observatório da Imprensa. Tem espaço cativo só para o samba, este gênero peregrino da alma brasileira, escasseado na TV privada. Tem um correspondente na África. É a emissora que mais respeita o cinema brasileiro e mais se esforça para retirá-lo da semi-clandestinidade em que se encontra. Há pontos positivos, mas falta ainda falta caminhar. 


O editorial da Folha soa como declaração de guerra contra a comunicação pública. Questiona até o surgimento da TV Brasil, aprovado pelo Parlamento, característica que não marca o nascimento das TVs comerciais. Bom seria se a Folha se dispusesse a contar ao seu declinante público leitor a história do surgimento de certas redes de televisão, em particular o marcante relacionamento com a ditadura em cada caso, sobre o que, aliás, a Folha também tem experiência própria e especialização para reportar com, digamos, profundidade, sobretudo informações de bastidores, ou de porões sombrios.


Jornalismo convencional, conservador


Mas outros obstáculos ainda estão sem equacionamento desenhado. A experiência de realização de uma audiência pública, feita pela TV Brasil em julho, é inédita no Brasil, marca um avanço democrático na história da TV brasileira, mas requer continuidade, sistematicidade, regularidade, de tal modo que os diagnósticos e idéias ali surgidas ou que venham a surgir possam encontrar condições de ser provadas, transformadas em realidade quando se comprovem adequadas. As observações mais freqüentes apontam para o jornalismo, descrito como convencional não na sua forma, mas quanto ao seu conteúdo, comparando-se à própria novidade como fato político que é a existência mesma da TV Brasil, ou de uma realidade de se ter um presidente da República que não se intimida em criticar democraticamente segmentos da mídia que resvalam mais para o preconceito e a condenação do que para a prática de jornalismo propriamente dito.


Como prova mais evidente está a cobertura internacional errática das emissoras da EBC: enquanto o jornalismo caracteriza-se por ressaltar as teses mais conservadoras do processo político latino-americano, portanto um jornalismo editorialmente conservador, a própria política externa brasileira – denunciada como ‘retórica itamarateca’ pela mídia comercial – assume posturas mais progressistas, como por exemplo, ao não reconhecer de nenhum modo o governo golpista de Honduras.


Enquanto Lula defende publicamente as posições de Zelaya e telefona ao presidente legítimo no momento em que ele tentava transpor a pé a fronteira, o jornalismo da TV Brasil ainda afirmava editorialmente, sem citar fontes, que Zelaya foi deposto por pretendia perpetuar-se no poder por meio de reeleição indefinida – item que não do texto da constava da Consulta Popular que seria submetida aos hondurenhos – exatamente o argumento usado pelos golpistas para tentar dar um caráter ‘jurídico’ ao golpe militar que já ceifou várias vidas e tem isolamento internacional. Reconhecendo com importante o esforço de ter enviado a reportagem para a conturbada Honduras, a linha editorial segue merecendo reparos, no caso por falta de diversificação na divulgação de todas as teses em jogo ou por alinhamento conservador a um único ponto de vista. 


Houve quem acreditasse que o Iraque dispunha sim de armas químicas de destruição em massa e que por isso tinha que ser ocupado, destruído, rapinado. Meses depois o jornal New York Times, em editorial, pediu desculpas aos seus leitores por ter difundido informação inverídica, pois as tais armas de destruição massiva até hoje não foram encontradas.


Tarefa civilizatória: uma TV de novo tipo


Fora a mudança no jornalismo que ainda deve ao seu público telespectador, a TV Brasil tem todo um potencial de crescimento e consolidação como comunicação de missão pública, cumprindo o que reza a Constituição, trazendo inclusive com a sua crescente qualificação e capacidade de disputar legitimamente a audiência, uma possibilidade para que o público tenha mais alternativas informativas ao seu dispor. Eis o que preocupa a mídia privada. O que ofereceria aos que estudam a comunicação privada a chance de uma reflexão sobre o porquê, apesar de décadas de privilégios no acesso a verbas públicas, não conseguiu, salvo exceções, criar um modelo de comunicação que permita aos brasileiros elevar sua capacidade educativa, informativa, cultural.


Se a TV de mercado não foi ainda capaz de realizar esta tarefa civilizatória, temos o direito como nação de pretender criar outro modelo de televisão, democraticamente, cumprindo a Constituição, equilibrando a TV brasileira hoje rigorosamente capturada pelos valores impostos pelo mercado: consumismo, sensacionalismo, culto à violência, banalização sexista. Vale relembrar, foram sábios os constituintes na elaboração do capítulo da Constituição, mas não tiveram força suficiente para que uma TV a favor da vida e da cultura vencesse a supremacia do mercado que rebaixa a TV a uma deprimente escola de consumismo. Para quem pode consumir.


Para a Folha, autora do editorial, fica a recomendação para indagar-se por que depois de tantas décadas de existência, quando teve apoio e apoiou os governos da ditadura e as campanhas que tanto prejudicaram os interesses nacionais, fundamentalmente as da privatização do patrimônio público, estaria agora perdendo leitores? Se estivesse a serviço do Brasil não defenderia o fechamento do TV Brasil, mas o cumprimento da Constituição, a consolidação também dos modelos público e estatal de comunicação. E talvez devesse também indagar sobre o que tem levado ao fechamento sucessivo de jornais, seja nos EUA, seja aqui, como o ocorrido com a Gazeta Mercantil, lugar que deverá ser preenchido, já se anuncia, por um grupo de comunicação de capital europeu. Fechamento de jornais traz desnacionalização.

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Presidente da TV Cidade Livre, Brasília, DF