Em meio à grande quantidade de “opiniões formadas sobre tudo” que proliferam hoje nas redes sociais, chamou-me a atenção um longo texto que “viralizou” (até o dia em que escrevo esta análise eram 1.278 curtidas e 348 compartilhamentos do Facebook). O texto é de Anderson França, criador da Universidade da Correria, instituição que promove cursos gratuitos de empreendedorismo a moradores das periferias.
Com um tom informal de comentário, o texto aborda o programa Esquenta, da Rede Globo, e tange certas questões com uma rara lucidez. Reproduzo alguns trechos: “Hoje eu vi, por acaso, Esquenta. Uma mulher comentava como resgatou a autoestima dos jovens favelados que agora tocam numa orquestra que ela organiza, via ONG (…). Eu queria pedir, com todo respeito e elegância possíveis aos amigos, inimigos, ativistas, artistas e pessoas da periferia: tenham mais fé em si mesmos. Experimentem não ir no Esquenta. Perceba, a Globo é um canal importante. E mais importante ainda é como você chega nele. Se vocês aceitarem ir pro Esquenta, estarão dentro do recorte que ele dá pra vocês. Que você é um preto, pobre, coitado, favelado, mas se tornou um sujeito excepcional por tocar zabumba, uma vez que, se você é preto e pobre, tem que ser preguiçoso, vagabundo, esfaqueador, ladrão de botijão de gás e tumultuador (…).Você é excepcional por tocar violino? Não. Eles acham você excepcional porque você, que tinha tudo para não tocar violino (leia-se: vocação pra bandido) foi salvo (é aí que entram os atravessadores), e hoje você toca flauta doce (…). Eles não acham que você toca bem. Desculpa te informar. Eles acham incrível foi um deles ter salvo você.”
O texto segue e ainda debate sobre as fórmulas nas quais o programa adequaria os convidados – o do coitadismo, fetichismo e exotização, que não deixam de ser variantes de uma mesma lógica que pressupõe, afinal, a tendência a trazer o outro ao palco pelo olhar do distanciamento, do diferente, daquele que aqui se expõe para que possamos escrutiná-lo e auxiliá-lo. Mas não pretendo aqui refletir especificamente sobre o Esquenta, programa que considero que traz uma importante contribuição à grade da emissora justamente por possibilitar esta espécie de subversão ao “padrão Globo” ao montar um palco algo caótico, pulsante, carnavalizado e a dar voz àqueles que não cabem no jornalismo. Ou, quando estes entram nas matérias, é sempre no mesmo papel estigmatizado de alguém que precisa ser domesticado ou permanecer no papel predestinado a ele desde o nascimento (o algoz de algum crime, o proletário adaptado à lógica capitalista, ou seja, alguém que deve permanecer do lado de lá dos muros, como pontua o excelente texto da jornalista Eliane Brum).
O invasor que a TV, magnânima, pretende salvar
O que o texto de Anderson França explicita é algo mais sutil: é preciso atentar não apenas a quando certos temas ou grupos são abordados pela televisão, mas ao como, ou seja, ao enquadramento dado àquilo que, numa espécie de lógica “generosa”, no mau sentido, vem a público. Observe-se, por exemplo, a quantidade de reportagens que adentram as emissoras jornalísticas com bons exemplos, histórias edificantes, na perspectiva de adoçar o cardápio aos que defendem que o jornalismo só se atenta à desgraça, às más notícias (good news is bad news, diz o chavão da área). No intuito de contrabalançar esta gangorra (por vezes amargada pela alta quantidade de programas policiais que as emissoras têm nas grades), assistimos na televisão a muitos conteúdos que visam, sobretudo, a explorar a história do outro no intuito de trazer uma perspectiva de otimismo – aos espectadores e às próprias mídias.
Muito já se falou sobre a tendência ao assistencialismo nos programas populares de entretenimento, como os vespertinos de sábado e domingo, capitaneados por velhos conhecidos como Gugu, Luciano Huck, Rodrigo Faro – ou seja, a exploração de uma comoção do público por meio da ajuda pontual e direta a alguém que passa alguma necessidade, ainda que isso não repercuta de forma ampla para a melhoria de vida da população. Creio que esta lógica é menos evidente quando enquadrada na fachada do jornalismo e suas incontáveis matérias que evidenciam os sonhos, as dificuldades, a superação daqueles que passam necessidade, e que, pela visibilidade trazida pelas emissoras televisivas, são finalmente legitimados ou redimidos.
A história rasa da redenção – por exemplo, do pobre, do negro, do animal resgatado por uma boa alma, do deficiente que, apesar de tudo conspirar contra ele, conseguiu obter algum sucesso – é falha justamente por simplificar algo que certamente é mais complexo do que aquilo que normalmente as reportagens abordam. Na tentativa de “humanizar” aquele que sofre, desumaniza-o, torna-o herói, fere sua dignidade. Ou seja: como sugere o ótimo texto de Anderson França, os personagens que a televisão trata, na maior parte das vezes, mais a ajudam do que são ajudados por ela.
Obviamente, esta discussão se atenta à generalidade e há exceções e espaços ocupados de forma mais pertinente, que efetivamente abrem espaço para que o outro se coloque tal como é, “desencaixado” da lógica domesticada que a TV normalmente reserva a ele. Mas algo é certo: precisamos estar atentos às sutilezas do discurso nestes tempos confusos em que todos se consideram “gente do bem” – seja os que defendem os direitos das minorias, seja os que acreditam que a diminuição da maioridade penal é uma forma de proteger as (suas) crianças. Talvez seja um momento propício para que a televisão reflita sobre como tem colaborado (ou não) para complexificar o olhar sob o outro. Para que, afinal, este outro deixe de configurar um invasor que a TV, tão magnânima, pretende salvar.
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Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha