Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Visita ao blogue de José Saramago

Blogue é palavra que veio do inglês weblog, onde estão embutidos os étimos web, rede, e log, registro, diário. Os dicionários brasileiros insistem em escrever blog, e não blogue, embora registrem blogueiro e bloguista. Em Portugal são aceitas as duas formas, blog e blogue, com preferência para a segunda, como faz o Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora.


Escrevo blogue desde as primeiras vezes em que precisei da palavra na página semanal de etimologia que faço para a revista Caras e também em crônicas ou em outras colunas publicadas em jornais e na internet, inclusive neste Observatório da Imprensa e em meu próprio blogue. Com o tempo, todos escreveremos blogue. Aliás, foi isso que aconteceu com buldogue, que se escrevia bulldog, já uma junção das palavras do inglês: bull, touro, e dog, cachorro.


Os blogues estão na ordem do dia e muitos escritores têm blogues. Alguns, aliás, ainda não têm livros publicados, mas já têm blogues.


Todavia, o único Prêmio Nobel de Literatura de nossa língua ter blogue é coisa destes desconcertos e perplexidades que José Saramago volta e meia nos inspira, quer nos livros, quer nas entrevistas. Sempre vale a pena ler José Saramago, embora em se tratando do escritor de sua dimensão e alcance, os livros sejam sempre superiores às entrevistas, o que é natural nele, mas não em todos os escritores. Conhecemos escritores que falam melhor do que escrevem e até cineastas que escrevem e falam melhor do que filmam.


Professores universitários também precisam visitar o blogue de José Saramago. Quem sabe, sejam ressuscitados os cuidados com o contexto e com a biografia dos autores de livros sistematicamente ignorados pela mídia e pela universidade ou comentados com tanta ligeireza.


Quem dera, um olhar sério


Em recente visita a seu blogue eis o que li:




‘Mikhail Bahktine escreveu na sua Estética e Teoria do Romance: `O objecto principal do género romanesco, aquele que o `especifica´, aquele que cria a sua originalidade estilística, é o homem que fala e a sua palavra.´ Creio que raramente uma asserção de âmbito geral como esta é terá sido tão exacta como no caso humano e literário de Franz Kafka. Desrespeitando certos teóricos que, não destituídos de razão, se têm insurgido contra a tendência `romântica´ de ir procurar à existência de um escritor os sinais da passagem do vivido para o escrito, o que, supostamente, seria a final explicação da obra, Kafka não esconde em nenhum momento (e parece fazer mesmo questão de que se note) o quadro de factores que determinaram a sua dramática vida e, em consequência, o seu trabalho de escritor: o conflito com o pai, o desentendimento com a comunidade judaica, a impossibilidade de deixar a vida celibatária pelo casamento, a enfermidade. Penso que o primeiro daqueles factores, isto é, o antagonismo nunca superado que opôs o pai ao filho e o filho ao pai, é o que constitui a trave mestra de toda a obra kafkiana, dele derivando, como os ramos de uma árvore derivam do tronco principal, o profundo desassossego íntimo que o levou à deriva metafísica, à visão de um mundo agonizando pelo absurdo, à mistificação da consciência.’


Onde se lê um texto desta profundidade? Quem dera críticos e resenhistas tivessem um olhar sério, aplicado, naturalmente não com o estilo do texto acima, que seria exigir demais, mas com a utilização de ferramentas adequadas por parte dos jornalistas na consideração dos livros que comentam.


Ressuscitar cuidados com biografias


O que vemos atualmente no Brasil, neste particular, são duas grandes vertentes na mídia: um ocultamento de produções literárias referenciais e um desinteresse literário pelo que andam fazendo escritores solares de nossas letras.


Falta de espaço não é, pois a mídia dá amplos espaços a questões extraliterárias. Por exemplo, recentemente, quando Rubem Fonseca deixou a Companhia das Letras, para a qual entrou quando ela estava dando seus primeiros passos, a mídia, numa obediência infeliz, aceitou a imposição de uma lacônica nota daquela editora de que não comentaria o assunto.


Bem, se a mídia fizesse a mesma coisa com as ordens recebidas dos senadores, estaríamos até agora sem saber de nada e, portanto, sem condições de construir nossa opinião, a opinião pública, que já derrubou poderosos e exaltou humildes. No caso em tela, houve obsessão com os valores do leilão dos direitos autorais do escritor e nenhuma palavra sobre a inegável qualidade e alcance de sua obra.


Professores universitários também precisam visitar o blogue de José Saramago. Quem sabe sejam ressuscitados os cuidados com a biografia dos autores dos livros ignorados ou daqueles que são comentados com tanta ligeireza.


Apenas motivos de fofocas


O poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant´Anna, em fragmentos de um diário, em Rascunho (publicado em Curitiba e dirigido por Rogério Pereira), lembra este mês que na década de 1980 teóricos franceses badalados no Brasil como mestres da interpretação literária não eram conhecidos e muito menos adotados em universidades francesas por serem muito difíceis. Pois aqui, alunos de Letras de muitas universidades não passavam de ano se não lessem os gajos, embora pudessem, como podem agora, ser aprovados sem ler qualquer autor brasileiro.


A propósito do que escreve José Saramago, Betty Milan está com novo romance na praça, o sexto de sua carreira literária. Chama-se Consolação (Editora Record, 165 páginas) e tem posfácio da escritora e ensaísta francesa Michèle Sarde (seu livro mais recente é De l´Alcôve à l´Arène: Nouveau regard sur les Françaises, Paris, Éditions Robert Laffont, 2007, 563 páginas). Entre Paris e São Paulo, a brasileira Laura chora a morte do marido francês Jacques. Viúva, errando pelo cemitério e pelas ruas, vai se convencendo de que o amor é maior do que a morte e que o que importa não é viver muito, é viver bem. Uma visita à biografia da romancista explicaria melhor os temas e iluminaria o romance, mas no Brasil são poucos ainda os biógrafos e os biografados.


De passagem, Michèle Sarde toca num dos dois maiores temas europeus dos dias que passam (não, um deles não é a crise, não): a eutanásia, que, ao lado da imigração, está mexendo profundamente, não apenas com os Estados, mas com cada um dos cidadãos. O continente está ficando velho, os casais têm poucos filhos, os imigrantes têm famílias numerosas e o direito de morrer vem sendo seriamente questionado em muitos países, embora liberado em outros.


Se a mídia quiser crescer na admiração dos habitantes da Galáxia Gutenberg, agora incrivelmente multiplicados pela internet, deve tratar seriamente das questões e não fazer dos grandes temas apenas motivos adicionais de fofocas.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)