Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Meu amigo, o negão Almeida

13 de maio é dia de minha devoção, não apenas pela comemoração da Abolição da Escravatura, nem somente por ser Dia de São Benedito. É que, na minha infância, marcava o encerramento da Festa de São Benedito, no largo defronte de casa. Durante o mês de abril assistíamos os ensaios dos congos, dentre os quais meus amigos de pelada, o Osório, o Pulguinha e o Luiz Salomão.

Talvez embalado por essas lembranças de infância, aceitei o convite para participar de um debate no lançamento de um livro de um escritor que integra uma das alas do movimento negro.

Tempos atrás escrevi um artigo sobre o ‘Racismo Negro’, criticando esse modismo importado de tentar criar diferenças raciais no país. Com as reações à coluna, deu para perceber claramente que o tal movimento negro não é homogêneo. Há um grupo maduro com ótimo poder de argumentação. E um outro pessoal, em geral ligado à Universidade, que brande um discurso à Pantera Negra, com um radicalismo importado. O convite vinha dessa ala.

Por via das dúvidas, convidei a me acompanhar o Almeida, o negão, meu amigo e companheiro de música há mais de trinta anos, citado na coluna em questão.

O encontro foi previsível: professores espertos brandindo a retórica radical para alunos inexperientes, aprendendo, desde cedo, o exercício da intolerância. Havia preconceito não apenas contra os ‘brancos colonizadores’, mas contra homossexuais, que ousaram insinuar que Zumbi tinha modos suaves, contra portugueses, contra o Brasil, contra os filhos da miscigenação.

Não havia dona Ivone Lara, o samba, o boteco, não havia meus conguinhos de São Benedito, não havia Paulinho da Viola, não havia o Brasil.

Uma banana

Terminado o debate, fiquei um pouco no coquetel, conversando com algumas pessoas. Aí chegaram alguns rapazes, queixo empinado e peito estufado, tal qual militantes negros americanos que quase me surraram uma vez em Washington, porque invadi seu território, mencionando a história do Aristocrata Clube, que juntava os militantes de décadas atrás.

O negão Almeida rodou a baiana: ‘Para de bobagem, isso não aconteceu’. E, antes que o rapaz abrisse a boca, contou detalhes sobre o pai do rapaz e sobre o clube. E contou sua vida de militância, como fundador do clube, fundador de um grupo que, nos anos 60 se cotizava para pagar a universidade para negros – e que não foi adiante por falta de interesse dos sócios–, e sua luta para quebrar o preconceito racial no Clube Esperia, em São Paulo. A rapaziada murchou, passou a tratá-lo de ‘senhor’, como fazem os jovens pilhados pelo tio severo quando estão aprontando.

Na saída, o negão percebeu meu desalento com essa internacionalização rastaqüera, que tirou não apenas a identidade cultural dos filhos da classe média branca, mas também da classe média negra. ‘Não esquenta, turco, esse pessoal não tem a menor relevância para o movimento’. Falei, negão, mas nesses trinta anos, você nunca me contou nada sobre sua militância. E ele: e precisava?

Aí olhei seus cabelos começando a embranquecer, ele chegando aos 70 anos, trabalhando para viver, sem um plano de saúde, sem uma aposentadoria, ainda se convalescendo de uma cirurgia só possível graças ao extraordinário humanismo do Miguel Srougi. Anda com a voz meio trêmula, com passos vagarosos, ele que, até alguns anos atrás, era campeão sul-americano sênior de atletismo. O negão sempre foi vendedor, de livros, de boi gordo, de lista telefônica.

Deixei-o na rua Cubatão e, enquanto caminhava para o ponto de ônibus, fingi que o carro não pegava, para poder acompanhá-lo com os olhos. E me dei conta de que meu amigo Almeida e eu ainda temos muito que conversar, além desses trinta anos de amizade, companheirismo e música.

Saí cantarolando a música que comecei a compor em sua homenagem, e que não consigo terminar por conta do ritmo louco desses tempos de insanidade: ‘Cadê esse negro malandro / que vem balançando pra lá e pra cá / Que tem um braço que parece o tronco do jacarandá / Que quando começa no samba / Coloca o mundo a rodar / Vem cá, ó negão, e me diga o que há’.

E dei uma banana aos politicamente corretos.

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Jornalista