O buraco das contas públicas brasileiras, um dos maiores do mundo, chegou a 8,12% do PIB (produto interno bruto) nos 12 meses terminados em junho. Essa proporção é muito maior que a encontrada nos países desenvolvidos, os mais afetados pela crise mundial, e deixa longe os números dos emergentes, com a evidente exceção da Venezuela. Mas nenhum jornal apresentou essas comparações nas páginas de economia, ao noticiar o desempenho fiscal no primeiro semestre, apontado em todas as matérias como o pior desde 2002.
O foco de todas as coberturas foi o resultado primário das contas públicas, uma escolha justificável neste momento. O superávit primário, calculado sem o serviço da dívida, é o dinheiro separado para o pagamento de juros. Neste ano talvez nem sobre essa verba. Mas o resultado geral, classificado como “nominal” nas contas oficiais, é afinal o mais importante.
Esse valor, tradicionalmente deficitário, inclui a conta de juros. Quanto o governo é incapaz de realizar todos os pagamentos, o Tesouro é forçado a refinanciar seus papagaios no mercado. O déficit nominal aumenta e, é claro, a dívida também. Por isso o superávit primário é importante: para manter a dívida controlada e, se possível, diminuir seu peso em relação ao PIB.
Nenhum grande jornal destacou o déficit nominal das contas públicas. Quando citados, os números gerais do semestre e aqueles acumulados em 12 meses apareceram detalhes complementares. como além disso, algumas coberturas nem chegaram a mencionar esse item.
Mas bastam algumas comparações para deixar mais claro o tamanho do problema fiscal brasileiro. Qualquer redator poderia, com poucos cliques, ter acesso aos dados necessários. Para um quadro mais completo seria preciso lembrar, como primeiro dado, o agravamento de uma situação financeira já muito rum no ano passado.
Em 2014 o déficit geral das contas públicas brasileiras chegou a 6,23% do PIB. Isso foi mais que o dobro do déficit médio contabilizado para os países da zona do euro, segundo balanço da OCDE, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). No caso dos 34 países membros da organização, o resultado médio, também no vermelho, ficou em 3,7%.
O Brasil ficou pior na foto
Neste ano o Brasil ficou muito pior na foto. O buraco nas contas gerais do setor público – União, Estados, municípios e estatais – ficou em R$ 209,65 bilhões no primeiro semestre e chegou a 462,7 bilhões em 12 meses, soma equivalente a 8,12% do produto interno bruto (PIB) estimado para o período.
O déficit nominal de 8,12% do PIB nos 12 meses até junho é muito maior que os números médios previsto para este ano na zona do euro – 2,1% no vermelho – e para os membros da OCDE – um buraco de 3,1%. Outras instituições multilaterais podem apresentar estimativas diferentes, mas muito próximas desses valores. Para chegar mais perto de resultados como esses, o saldo brasileiro terá de melhorar de forma espetacular no segundo semestre, mas, neste momento, essa recuperação parece muito improvável.
O problema das finanças públicas é muito mais grave no governo central que nos outros níveis da administração. Segundo o novo relatório do Banco Central sobre as contas consolidadas do setor público, o poder central teve um superávit primário de R$ 16,22 bilhões no primeiro semestre. No ano passado, entre janeiro e junho, o saldo primário chegou a R$ 29,38 bilhões, em valores correntes.
A meta inicial para este ano era um superávit primário de R$ 66,3 bilhões, equivalente a 1,1% do PIB projetado. O Executivo federal anunciou há poucos dias uma nova meta, bem mais modesta: um superávit de apenas R$ 8,7 bilhões, 0,15% do PIB. O governo central – Tesouro, Previdência e BC – deverá, em princípio, contribuir com R$ 5,8 bilhões. O resto dependerá de Estados, municípi0s e estatais.
Para alcançar até esse pequeno resultado o Tesouro dependerá de receitas muito incertas – de um imposto sobre recursos enviados ao exterior, de acertos de tributos em atraso e de concessões de infraestrutura. Sem isso, o governo poderá, segundo projeto enviado ao Congresso, abater até R$ 26,4 bilhões da meta e fechar o ano com déficit primário superior a R$ 17 bilhões.
Com a retração econômica e os empresários mudando o esquema de recolhimento de tributos (deixando de pagar por estimativa e adiando o acerto), a receita líquida do primeiro semestre, R$ 513,3 bilhões, foi 3,3% menor que a de um ano antes, descontada a inflação. O aumento real da despesa foi de 0,5%, puxado pela Previdência. Além de outros problemas, o governo enfrentou o pagamento de obrigações em atraso e corrigiu pedaladas fiscais do ano anterior.
O Banco Central divulgou as contas consolidadas do setor público no dia 31, sexta-feira. Um dia antes o Tesouro havia informado as contas do governo central, com déficit primário em junho e no semestre. O déficit semestral foi apresentado, na maior parte dos títulos – e até dos textos – como inédito. Mas a qualificação – resultado primário – foi pouco realçada, ou até esquecida, em boa parte da cobertura. Por isso, a maior parte do público deve ter absorvido uma informação falsa. Déficit nas contas do Tesouro é o resultado mais comum. Incomum, há muitos anos, é o déficit nas contas primárias, isto é, sem a despesa de juros. Faltou atenção a um detalhe muito importante.
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Rolf Kuntz é professor titular de Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP) e colunista de economia do jornal O Estado de S. Paulo.