A vinda ao Brasil do diretor do Charlie Hebdo, Laurent Sourisseau, que sobreviveu ao ataque à redação do periódico no começo deste ano, e a entrevista que concedeu ao Roda Viva, reavivam as discussões de temas como liberdade de expressão, fanatismo e, nas próprias palavras de Sourisseau, da defesa da democracia “racional” (como ele a definiu), por não terem se curvado ao fanatismo. Afinal, segundo ele, “se deixarmos de exercê-lo, o direito à liberdade deixa de existir”. Em determinado momento do programa Roda Viva, Augusto Nunes, em apoio ao entrevistado, afirmou: “Somos todos Charlie” (frase que ficou famosa por ser usada por aqueles defendiam e defendem a publicação). Entretanto, há muita complexidade por debaixo de algumas dessas palavras defendidas por quase todos, que é ignorada por muitos que se dizem Charlie.
Em 10 de novembro de 1962, a Revista do Rádio publicou um texto de Carlos Imperial sobre Ray Charles. Em letras garrafais, na página 10, tenta-se atrair o leitor com o seguinte: “Cego, prêto e feio, êle é o novo ídolo dos moços”. E, também em outras letras garrafais, logo abaixo: “Ray Charles ganhou o amor de uma bonita loura”. Curiosamente, o texto critica o racismo norte-americano. O que não obscurece o racismo do próprio Carlos Imperial ao unir os pretensos problemas de Ray (segundo ele, Ray ser cego, preto e feio) com a afirmação de que ele foi “contemplado embevecidamente” com o amor da branca – e loura – Greta Johnson.
Um francês satirizar árabes é como um brasileiro branco satirizar negros. Carlos Imperial não satirizou, mas o efeito é parecido, como se tentará explicar. Hoje, piadas e comentários como esses contra negros não são apenas de mau gosto; são também crime. Por isso, o absurdo de se assassinarem doze pessoas não deveria resultar no instantâneo aplauso à publicação francesa, pois se o antissemitismo do século passado na Europa se direcionava aos judeus, hoje o principal alvo dessa descriminação são os muçulmanos.
O constrangimento à liberdade de escolha
Tenta-se isentar a publicação dizendo-se que eles criticam igualmente e com a mesma violência todas as religiões. Esse argumento não funciona por duas razões. (1) O resultado social de se fazer chacota com o cristianismo e o judaísmo não é igual a fazê-lo com o islamismo pelo fato de não se poder ignorar o preconceito europeu em relação aos árabes. Ignorá-lo seria cinismo. Rir-se de quem está socialmente em condição mais elevada ou igual é uma coisa; outra bastante diferente é fazê-lo em relação a quem sofre de preconceito a todo o tempo. Comparativamente, uma coisa é, no Brasil, fazer piada de norte-americanos, brasileiros e argentinos entre si. Outra coisa muito diferente é argentino caçoando de paraguaios, brasileiro de negros, paulista de nordestinos, bolivianos etc. O resultado da piada em relação aos norte-americanos é socialmente inofensivo. O resultado do segundo tipo de exemplos, não. Reforça preconceitos. (2) Diz-se que quando se fazem brincadeiras com o cristianismo, os cristãos não se transformam em homens-bomba. De fato, não. Afinal, os elementos mais sagrados dos países cristãos não estão sendo atacados. Os dos muçulmanos, sim. Explico-me: nos países laicos cristãos, os elementos historicamente religiosos podem estar de fato sendo atacados (a figura de Jesus, por exemplo), mas não se trata, de forma alguma, de uma agressão que afeta todas as esferas da vida do indivíduo – pela via moral, religiosa, política, associativa e comunitária ao mesmo tempo. No caso dos muçulmanos, sim. Afinal, é o islã que os une moral, religiosa, política, associativa e comunitariamente. Ou seja, o grande nexo social de todas as esferas da vida está sendo posto em xeque.
Para quem não teve boas aulas de antropologia, essa ideia talvez possa parecer estranha, mas ela se torna totalmente compreensível quando, em nome dos elementos sagrados do Ocidente, os ocidentais agem da mesma forma que os muçulmanos agem. A figura religiosamente mais relevante para os muçulmanos é o profeta Maomé. Aquele que caçoar dele deve pagar. A figura religiosamente mais relevante ao Ocidente não é mais Jesus, como já foi um dia. Isso porque o sagrado da sociedade não precisa estar mais, necessariamente, na santidade histórica: o sagrado pode estar em outro lugar. A complexidade da sociedade ocidental permite uma grande variedade de valores morais que deslocam o sagrado para diversos outros aspectos da vida, que não necessariamente o religioso. A coisa mais importante e intocável da vida de um indivíduo não precisa ser necessariamente a sua religião. Pode ser uma ideia política, objetos de consumo, uma crença partidária, um time de futebol, a manutenção do corpo sadio – ideias que podem ter o mesmo caráter congregacional, ritualesco e de culto. A variedade da sociedade ocidental impede que aquilo que a une moral, religiosa, política, associativa e comunitariamente seja apenas uma figura religiosa, um único elemento como, por exemplo, Jesus Cristo. Portanto, sátira de Jesus = sátira de Maomé não é uma comparação sociológica ou antropologicamente verdadeira. E a resposta a coisas distintas tende a ser, logicamente, distinta.
Pode não haver punição a quem puser chifres em Jesus, mas sim, por exemplo, para quem, não sendo uma figura do Estado (um policial ou um militar), coagir outra pessoa. Trata-se do constrangimento à liberdade de escolha. Temos, portanto, um dos elementos sagrados do Ocidente a ser defendido com a força da lei: a ideia de liberdade. E não é necessário que haja liberdade efetiva para que ela seja motivo de sacrifícios pessoais, criação de mártires etc.; trata-se simplesmente da ideia/crença de liberdade. Assim, se compreende por que a defesa da liberdade de expressão ganhou tantas manifestações nos países ocidentais logo após o atentado.
Proíbe-se a burca em nome da laicidade
Contudo, o ocidente realmente esteve defendendo a “liberdade de expressão”? Esteve e está, de fato, defendendo que essa liberdade não pode ser cerceada? Não se trata disso. Essa foi e continua sendo a justificativa, mas não é o real motivo. Caso fosse, não se aceitaria tampouco a prisão de Dieudonné M’bala M’bala. Afinal, todos se tornaram Charlie (“Je suis Charlie”), mas M’bala M’bala foi preso por dizer que se sentia “Charlie Coulibaly”. Coulibaly foi um jihadista assassino de uma policial e quatro judeus. Dieudonné M’bala M’bala não matou ninguém, apenas disse, tentou usar a tal liberdade de expressão. E foi preso. Preso porque fez piada com a morte de determinadas pessoas. Nota-se, portanto, que a “liberdade de expressão” não é tão livre assim como o ocidente diz que é, nem é para todos e menos ainda para tudo. Alguns são livres para exprimir-se. Outros, nem tanto. Rir do assassinato (como fez Dieudonné) não é de bom tom e, nesse caso, nem livre de punição legal, afinal, vida é outro valor sagrado para o ocidente (deixemos de lado a identidade do grupo social a que ele se referiu). Da mesma forma, mesmo que não fosse preso, provavelmente sofreria uma enorme sanção social alguém que fizesse uma piada a respeito de crianças com câncer, pois estaria envolvendo dois fortes elementos sagrados do ocidente (vida e infância) e um tabu (as doenças terminais). Danilo Gentili foi processado pela piada que fez com uma doadora de leite, comparando o tamanho dos seus seios ao pênis de um ator pornô. Aqui, novamente mais elementos demasiado sagrados aos ocidentes para serem satirizados: maternidade, amamentação e, digamos, o pudor de uma mulher benfazeja. Rafinha Bastos também teve problemas ao fazer uma piada que envolvia pedofilia. Portanto, o Ocidente não aceita e, mais do que isso, pune provocações às suas santidades específicas. Por isso, não há a alegada liberdade de expressão irrestrita. Esta é a primeira parte da questão.
Sendo assim, por que tantas pessoas saíram em coro dizendo que não aceitariam o cerceamento da liberdade? Isso nos impõe procurar o motivo em outro lugar, já que o explicitado não é coerente o suficiente para explicar o fenômeno.
Há, como se nota, uma graduação de aceitação de manifestações de qualquer tipo. Em país cuja “liberdade” diz-se ser total e tão assegurada, chama à atenção que Sarkozy tenha dito que, na França, não havia espaço para a burca e que o congresso francês tenha conseguido fazer passar a proibição da burca e do véu integral em espaço público por motivos religiosos (sem fazer nenhuma menção ao crucifixo ou ao quipá). Posteriormente, tentou-se justificar a lei, dizendo-se que se tratava de uma medida que se assemelhava à proibição de capacetes, ou seja, de elementos que cobrissem o rosto de possíveis criminosos, o que é uma tentativa de esconder a islamofobia francesa. Afinal, será que houve um número estatisticamente relevante de crimes praticados por pessoas cobertas pela burca para que essa lei fosse aprovada realmente por esse motivo? Houve esse estudo estatístico para pautar a proibição? Ou a proibição está pautada em outras questões?
Primeiramente, proíbe-se a burca em nome da laicidade do espaço público, mas os elementos cristãos e judeus não sofrem a mesma sanção. Depois, saem em marcha, em nome do não-cerceamento da liberdade de expressão do Charlie Hebdo, exatamente aqueles que satirizavam o grupo socialmente mais marginalizado do país; mas não se defendeu maciçamente a liberdade de expressão de quem satirizou a morte de outros grupos sociais, como o fez Dieudonné. Do lado da defesa do Charlie, havia a exigência, por parte da grande massa, do direito à expressão do preconceito aos árabes. Já do lado de Dieudonné, o direito à expressão do preconceito de um árabe, que é conhecido pela sua veia anti-Israel, não foi concedido.
A falsa veneração da liberdade de expressão
Obviamente, os jihadistas praticaram uma ação inaceitável contra a revista. Entretanto, essa atitude não deveria instantaneamente fazer-nos não notar o quão complexo foi tudo o que ocorreu, urrar contra “a barbárie” para posicionar-nos contra a impraticável total liberdade de expressão. Afirmar que o atentado se tratou de uma atitude medieval de fanáticos dementes contra porta-vozes do progresso não explica absolutamente nada e nos coloca em uma situação tão cegamente teimosa quanto a dos jihadistas. A atitude deles é injustificável, entretanto, não deixa de ter alguma racionalidade (“weberianamente” falando) e estar envolvida em um complexo jogo de conflitos muito graves, o que nos força a notar que os graus de racionalidade e neutralidade em que são comumente enquadrados os agrupamentos sociais são criações falsas: como demonstrado acima, as manifestações pelo não-cerceamento da liberdade de expressão se aproximam menos da alegada liberdade e mais da vontade europeia de libertar-se dos muçulmanos (estampando-se em cores divertidas o quão “atrasados” eles podem ser), mas esse desejo mal escondido é justificado com valores sagrados da nossa sociedade: democracia, liberdade, liberdade de expressão. Mas a liberdade, como visto, é seletiva na França, logo, não é democrática. E a democracia vota pelo cerceamento dos elementos islâmicos no espaço público. Logo, a liberdade não se aplica a muitos.
E essas criações de que supostamente o conflito é entre um povo “atrasado e supersticioso” contra árduos defensores dos valores mais progressistas são falsidades que geram posturas arrogantes e assimetrias sociais que, por sua vez, infelizmente geram mais mortes. Não notar o absurdo da proibição da burca sem menção aos elementos de outras religiões, assim como não perceber o aspecto político das manifestações imediatas de apoio à revista (e não apenas às vítimas) como se ela fosse o baluarte da liberdade de expressão são atitudes tão religiosamente orientadas quanto ir à igreja. Ou à mesquita. Atitudes que têm o objetivo de trazer alguma tranquilidade de espírito e consciência que se funda pela falsa ideia de que o outro é atrasado e está errado; enquanto eu, por oposição, estou irremediavelmente certo e avançado.
Laurent Sourisseau, em uma afirmação bastante jihadista, disse que “eles [os jihadistas] só vão parar se forem mortos”. Baseou sua frase genocida na ideia de que “se você está com eles, você está vivo; se você está contra eles, você está morto”. Primeira pergunta que poderia ser feita ao senhor Sourisseau: a existência do extremismo é, básica e unicamente, fruto de mentes perturbadas (robôs, nas suas palavras) ou, ao contrário, é fruto (1) das constantes intervenções desastrosas do ocidente nos países islâmicos e (2) da islamofobia disseminada pela Europa, que coloca muçulmanos como cidadãos de segunda, terceira, quarta classe? Segunda pergunta: matar jihadistas é mais inteligente do que ter uma política interna e externa que minimize conflitos culturais e políticos? O extremismo islâmico não tem relação nenhuma com o comportamento da Europa? Terceira pergunta: a “liberdade de expressão” exercida pela revista, teoricamente inofensiva, puerilmente colorida, não é mais uma fonte que alimenta esse preconceito no nível consciente e inconsciente e, por conseguinte, faz parte do complexo conflito que gera tragédias como a da qual foi vítima?
O primeiro mandamento judaico-cristão diz: “Amar a Deus sobre todas as coisas”. Entretanto, esse deus defendido por todos os Charlies – uma democracia livre – é um deus realmente robusto ou é um tanto Frankenstein? Tenho a impressão de que se trata do segundo caso. Poderia dizer também que se trata de uma religião secular (cujo sagrado é a ideia de democracia, liberdade e liberdade de expressão) que, ao contrário do protestantismo, não incentiva a reflexão, a autorreflexão, mas que tem em comum com os protestantes a ideia de que o mundo está dividido entre predestinados e pecadores pelas suas posições sociais. Mas infelizmente esses predestinados fazem de conta não notar o quão frágil é a sua teologia e o quão parcial é o seu deus.
E o mais pernicioso de tudo é que pecam no segundo mandamento – “não tomar seu santo nome em vão” – ao clamarem o seu nome sagrado (“democracia”, “liberdade de expressão”) com essa falsa veneração. É que conclamar essa veneração, por mais falsa que seja, gera muito prestígio social. E recordes inesperados nas vendas de exemplares porque os fiéis tendem a arrebanhar-se, mesmo que a reza não seja tão sincera quanto jura ser.
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Rafael Mantovani é sociólogo