Vimos nas últimas semanas uma mobilização nacional dos meios de imprensa para cobrir os efeitos da homologação da área Raposa Serra do Sol, localizada no estado de Roraima, fronteira com Venezuela e Guiana Inglesa.
O que parecia um fato consumado – haja vista a trajetória histórica e os impasses que se estenderam por mais de duas décadas em torno da demarcação, a decisão presidencial pela homologação em área continua poderá representar a ponta de lança de um dos mais árduos desafios a serem enfrentados pelo atual governo, podendo se alastrar por anos, talvez décadas, diante da complexidade e da diversidade de interesses envolvidas na questão.
É provável que a imprensa regional jamais tenha produzido um volume tão significativo de notícias, em tão curto espaço de tempo, e acerca de uma mesma pauta. Estamos nos referindo à questão fundiária que se transformou, nos últimos anos, num dos mais conflituosos temas da Amazônia e, por conseqüência, em matéria de primeira página para a imprensa regional. Segundo nota do jornal O Liberal , do Pará, de julho de 2002, dos mais de cinco milhões de quilômetros quadrados de terras que compõem a Amazônia brasileira, apenas 10% são documentadas em cartório, o que tem dado margem aos crimes de grilagem, e à exploração ilegal dos recursos naturais.
Em pouco mais de 20 dias da assinatura do decreto, já é possível traçar um panorama sobre o que representa ou representará a homologação da Raposa Serra do Sol em área contínua para o estado de Roraima, pela ampla cobertura da imprensa nacional e local.
Se tomarmos a Folha de Boa Vista, de Roraima, como parâmetro, a constatação extrapola todas as expectativas, isto é: de 15 de abril, data da assinatura do decreto, até hoje, 10 de maio de 2005, foram publicadas mais de 140 matérias, entre reportagens e artigos, envolvendo grupos a favor ou contrários à demarcação da forma como foi feita. Grande parte na editoria de Política.
A variedade de fontes de informação dos mais diversos setores ouvidas até o momento dá sinais de que a imprensa roraimense está procurando ajustar seu discurso às novas tendências do jornalismo, apesar de sua linha editorial muito afinada com os setores políticos, ao longo de décadas, até mesmo por questões de sobrevivência financeira – e aqui, incluímos, também, o jornal Brasil Norte , segundo em circulação no Estado.
Lacunas significativas
Um segundo ponto importante é que o material produzido pela imprensa, especialmente pelos jornais, poderá subsidiar futuras pesquisas multidisciplinares, considerando que a questão indígena, fundiária, ambiental etc. são interdependentes e que a homologação da Raposa Serra do Sol provoca efeitos sociológicos, antropológicos/culturais, econômicos e essencialmente políticos, pois é das ações do governo que dependerá o futuro da região e dos seus habitantes. Pesquisadores defendem o caráter documental histórico dos jornais para subsidiar pesquisas que visem a elucidação de eventos ‘jornalísticos’, comunicativos.
Vale ressaltar que, até o momento, os veículos de imprensa têm sido os principais mediadores do conflito Raposa Serra do Sol o que, por si só, justificaria um maior comprometimento com os desdobramentos dos fatos, quando comissões especiais começam a ser criadas pelo governo federal para acompanhar os destinos dos mais de 1,7 milhão de hectares onde convivem pelo menos quatro etnias indígenas, ribeirinhos, pecuaristas, arrozeiros, organizações não-governamentais, religiosas etc.
Gostaria de registrar dessa forma o papel decisivo da imprensa quanto aos rumos dessa questão.
Se por um lado os jornais se superaram em termos quantitativos, até mesmo qualitativos, ao resgatar alguns formatos essenciais para o aprimoramento jornalístico, como a reportagem – um tanto ausente das coberturas nos últimos anos –, por outro lado deixaram algumas lacunas significativas.
Postura vigilante
Desvendar, trazer ao conhecimento da opinião pública os reais interesses/perspectivas do governo federal quanto ao futuro da reserva Raposa Serra do Sol da forma mais esclarecedora possível constitui-se no maior desafio a ser enfrentado pela imprensa. Por exemplo, analisando os interesses que pesaram na decisão no governo:
1)
Interesses socioambientais, pelos quais o governo estaria realmente procurando cumprir uma meta social de seu mandato, reconhecendo o direito dos índios (minorias) à terra e/ou atender à política de criação de parques nacionais, pelos quais os índios poderiam seguir o seu próprio destino, a exemplo do vem ocorrendo na Venezuela;2)
Interesses geopolíticos, considerando que se trata de uma área de fronteira que desperta interesses internacionais dos mais diversos e que poderiam interferir em questões de soberania na região;3)
Interesses econômicos, considerando que a área é rica em minérios que devem ser preservados da cobiça de exploradores ilegais. E isso me faz relembrar a primeira aula que ministrei no Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Roraima, em 1994, quando os alunos de Redação Jornalística me alertaram de que era proibido debater minérios e índios em sala de aula, por serem temas muito polêmicos, apesar de integrarem o agendamento permanente da imprensa local;4)
Interesses alternativos, de transformar a região em laboratório para a implantação de projetos de desenvolvimento sustentado, considerando a presença de interesses políticos, econômicos e sociais, elementos essenciais para a consolidação de projetos dessa natureza.Se considerarmos a nota veiculada pela TV após a homologação, tudo leva a crer que o interesse governamental na homologação da Raposa Serra do Sol em área contínua esteja voltado para a implantação de projetos alternativos de desenvolvimento.
Identificar as reais pretensões do governo federal com relação às políticas de desenvolvimento para a região é, a meu ver, o ponto fundamental para que a imprensa possa cumprir plenamente o seu papel: contribuir para o aperfeiçoamento democrático, a transformação social, o futuro da Amazônia.
Independentemente de quais sejam os interesses do governo com relação a Raposa Serra do Sol, é preciso que a imprensa esteja vigilante diante dos fatos, buscando manter informada a opinião pública, muito embora tenhamos pleno conhecimento das dificuldades enfrentadas para coberturas no interior do estado, como o difícil acesso aos fatos e às fontes – muitas têm receio de se declarar por medo de retaliação ou perseguição por parte de grupos radicais, de ambos os lados, além dos altos investimentos necessários.
Agenda positiva
Se tomarmos a história como testemunha diante dos projetos governamentais para a Amazônia ao longo das últimas décadas, tudo leva a crer que Raposa Serra poderá se transformar num grande fracasso. Modelos alternativos de desenvolvimento dependem de mudança de mentalidade, atualização cultural. E isso nos leva a uma pergunta inevitável ao governo.
Como implantar projetos de desenvolvimento sustentado se estes dependem de políticas de longo prazo, como levar a educação às comunidades envolvidas? Leonel Brizola – um dos mais incansáveis defensores da educação no Brasil – não hesitava em afirmar: ‘Não vai haver país desenvolvido sem brasileiro desenvolvido que possa promover o seu desenvolvimento’.
Isso significa que, sem o envolvimento do Ministério da Educação e de equipes multidisciplinares nos projetos de desenvolvimento para o estado de Roraima, voltaremos à estaca zero, e as promessas do governo federal correm o risco de ficar no plano do discurso e do oportunismo político/ideológico.
Se isso ocorrer, é provável que no futuro a imprensa tenha que retornar a Raposa Serra do Sol para relatar mais um fracasso das políticas públicas na Amazônia, como o extermínio de índios isolados em Roraima, em plena Era da Informação e tecnologias digitais, e, com eles, o desaparecimento de uma das maiores riquezas culturais/antropológicas da região, talvez do mundo; e de arrozeiros moribundos e de famílias inteiras à espera de indenização.
Com certeza, este seria o maior desafio para a imprensa regional, que sempre defendeu uma agenda positiva para o estado de Roraima.
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Jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP; professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Roraima