Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Você gostaria de ser um meme?

Para começar, duas perguntas. A primeira: você venderia sua alma ao diabo? É uma provocação, obviamente – mas creio que, mentalmente, todo leitor deste texto tenha respondido, de pronto, que não. Afinal, todos nós temos com mais ou menos clareza uma lista de valores aos quais nos associamos e – ao menos em teoria – fazemos e faremos de tudo para mantermo-nos fiéis a eles. Uma segunda pergunta, esta mais pragmática: você já compartilhou memes (aquelas mensagens, geralmente engraçadas, que se difundem de forma viral nas redes) em alguma das redes sociais que utiliza?

Muito se tem falado sobre o fenômeno da segunda tela e das mudanças nos modos de se assistir à televisão, compartilhando/comentando/rindo daquilo a que se assiste na TV com uma imensurável comunidade de espectadores que, assim como nós, parece não mais se satisfazer com a permanência algo passiva no papel do público que contempla os programas. Há os que digam, com certa razão, que esse outro “programa” para além da tela tem-se mostrado mais divertido que a atração original.

Vários programas têm sido extremamente bem-sucedidos nesta formação de uma espécie de “aldeia virtual” – apenas para honrar a ideia de aldeia global difundida pelo pensador Marshall McLuhan, que se deslumbrou ao observar o quanto os meios de comunicação uniam pessoas absolutamente desconexas entre si por meio da formação de uma audiência. Cada vez mais, conforme podemos notar, os programas mais antenados a esta tendência têm articulado formas de “viralização” – vide, por exemplo, as estratégias do novo programa de Xuxa e o quanto ela tem se mostrado aberta para que brinquem com sua imagem (veja análise de Maurício Stycer): “Pode tirar sarro que eu adoro”, disse a apresentadora em certo momento.

Um dos programas mais inteligentes neste aspecto é o Masterchef, reality show culinário que, de alguma forma, reavivou a rede Bandeirantes no posto de segundo lugar entre as emissoras televisivas. Os espectadores cativos do programa sabem que, paralelo ao que se desenrola na TV, há uma outra atração nas redes, em especial no Twitter, de uma infinidade de comentadores que fazem circular memes e piadas diversas, muitas extremamente espirituosas. É, certamente, um fenômeno que merece consideração e que fala muito sobre as possibilidades de reinvenção e sobrevivência da televisão.

Uma gigantesca rede comunitária

O que chama a atenção, e inspira a pergunta que abre este texto, é o enredo deste programa que se desdobra na segunda tela. Como sabemos, a atração pelos reality shows se fundamenta pela perspectiva de estarmos vendo pessoas que são filmadas enquanto se esquecem (ao menos em alguma medida) das câmeras, exibindo-se portanto como elas mesmas, para além dos papéis que desempenham cotidianamente.

A matéria-prima deste formato, portanto, é a expressão do íntimo, do sentimento mais genuíno, da alma que escapa e é capturada pela lente da televisão. Todos os que aceitam ingressar em um reality show, de alguma forma assinam um contrato velado que diz: mesmo que eu entenda estar dentro de um jogo, aqui estou sendo eu mesmo e é isto que ofereço ao público.

O domínio do público das ferramentas digitais, além da popularização das redes sociais, têm levado o Masterchef a um outro patamar de reality show. Ainda que a analogia seja um tanto exagerada, diria que estar em um programa destes significa o equivalente a vender a alma – ou seja, desencarnar-se, virar uma imagem oca que pode ser preenchida para sentidos, interesses e prazeres de outrem. Todo suspiro, todo tremor do corpo, todo signo expelido pode ser capturado e esvaziado de seu sentido original, tornado chiste, piada, material para cimentar os vínculos desta gigantesca rede comunitária. Utilizamos destes “avatares” em nossos memes de forma despretensiosa, sem dúvida; mas também sem qualquer empatia, alguém poderia dizer, com alguma razão (pense: você gostaria de ser um meme?).

Um depoimento bastante pertinente

É bastante impressionante ver o quanto os participantes de Masterchef foram incorporados em personagens diversos. Fernando, o grande vilão, condenado por sua autoconfiança inabalável e sua consequente arrogância (como ousa ele?, bradamos, em silêncio, nos nossos memes). Izabel, por outro lado, é a insegura, que depende da bondade e da aprovação alheia. Cristiano, o descontrolado, o “magoado” que não consegue separar a vida pessoal da profissional (reivindicação que retorna toda vez que lembramos que “é um jogo”). Jiang, em sua adorável complacência, evoca o favoritismo do público e exala algo de Davi frente a Golias – uma frágil e silenciosa estrangeira que, indo pelas beiradas, deixa os confiantes para trás.

Ao que me parece, todos são e não são aquilo que ali demonstram. Mas ecoa, para mim, a pergunta: qual o preço e qual o prêmio de colocar-se de forma tão vulnerável ao escrutínio do público todas as semanas? Alguns falarão em dinheiro, outros de reconhecimento profissional, mas algo é certo: todos os que ali estão vendem sua privacidade em troca de uma (ainda) muito almejada visibilidade midiática. Ainda que já tenhamos vários depoimentos arrependidos dos que comercializaram sua vida privada ao reality shows (veja aqui), ainda está valendo a pena tornar-se meme.

Por fim, deixo aqui a sugestão do instigante vídeo O preço da vergonha (veja aqui), do TED Talks, com Monica Lewinsky, a “eterna estagiária” da Casa Branca que teve seu caso íntimo divulgado a público em 1995. Ainda que, na época, o público tivesse acesso a menos veículos de comunicação, a devassa na vida de Monica foi completa. O depoimento dela é bastante pertinente e fala do ônus que a atingiu (e atinge até hoje) por ter “palavras furtadas da vida privada e tornadas públicas, sem consentimento, sem contexto e sem compaixão”. É algo a se refletir se estamos tão longe da lógica que já imperava em 1995.

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Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha