Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Margareth Sullivan

Há mais de um século, Mark Twain queixava-se das “mentiras, as danadas das mentiras e estatísticas”. “Muitas vezes, os números me enganam”, escreveu, “principalmente se sou eu que os organizo.”

Atualmente, numa época inundada por números e em que a palavra “algoritmo” parece estar na boca de todo mundo e veículos jornalísticos, como o blog FiveThirtyEight blog, de Nate Silver, ou o blog Upshot, do Times, se baseiam na interpretação de estatísticas, surgem algumas perguntas jornalísticas básicas: qual a importância de dados para a reportagem? Levam o leitor a ficar mais próximo da verdade ou a escondem?

Penso nesse assunto devido a dois recentes textos publicados pelo New York Times – e ambos produziram uma considerável reação por parte dos leitores.

O primeiro foi um importante relatório denunciando as cruéis condições de trabalho na Amazon, baseado em seis meses de reportagens e, em grande parte, relatado por ex-empregados e empregados de hoje. Embora tenha sido contestada, inclusive pela Amazon, a matéria transmitiu, sem dúvida, conhecimentos essenciais sobre esta empresa fabricante de discos rígidos. Num post do meu blog, escrevi que, embora tivesse gostado muito do texto, seu tamanho e sua exposição poderiam ter ficado obsoletos, uma vez que a ausência de provas concretas sobre as práticas da Amazon a tornam um desvio.

Um pedido de correção teve decisão contrária

Dean Baquet, editor-executivo do jornal, discordou. “Discordo da ideia de que você possa contar uma matéria como esta senão através de relatos curtos”, disse-me ele. “Você conversa com o maior número de pessoas possível e tira suas conclusões.”

O segundo texto foi uma matéria de capa de revista, construída a partir de dados e argumentando que um temido “apocalipse criativo” da era digital nunca aconteceu. Ao invés disso, dizia o texto, longe de despencarem na era pós-Napster, as fortunas dos produtores de conteúdos criativos melhoraram. Muitos leitores contestaram as conclusões do artigo e fizeram a acusação de que os números de que a matéria dependia haviam sido escolhidos a dedo para torná-la imperfeita.

Um leitor, James Margraf, escreveu acusando a matéria de “parecer verdadeira”. Assim como outros, ele opunha-se a uma estatística que, segundo ele, era uma comparação de maçãs-com-laranjas – do número de músicos que trabalham existentes há alguns anos e mais recentemente. Só os números mais recentes incluíam professores de escolas de música. Com eles, o número de músicos na ativa sobe, sem eles, teria caído. “Embora existam outras denúncias questionáveis na matéria, o uso específico de dados neste caso parece difícil de defender”, escreveu Margraf.

A tese da matéria e os detalhes foram bem trabalhados desde que foi publicada. A Coalizão do Futuro da Música [Future of Music Coalition], um grupo de apoio aos músicos, fez um longo post de resposta em seu site. O autor do artigo, Steven Johnson, respondeu detalhadamente e em seguida o grupo também lhe respondeu. O departamento de padrões de ética do Times avaliou um pedido de correção e teve decisão contrária. “Nós lemos atentamente e não constatamos um erro para corrigir”, disse-me Greg Brock, editor do departamento. Em minha opinião, o artigo original deveria ter explicado com maior clareza como mudara a categoria.

A complexidade e sujeira do mundo reduzida a dados

Pedi ao editor da revista, Jake Silverstein, que esclarecesse as questões. (Você pode ler nossa troca de mensagens, na íntegra, no blog Public Editor’s Journal.) No caso específico da questão levantada por James Margraf e outros, ele escreveu que Steven Johnson e os verificadores de fatos do Times haviam concluído que o uso de estatísticas era adequado, destacando que algumas pessoas haviam migrado de uma categoria para outra ao longo dos últimos 15 anos.

No que se refere à dúvida quanto à escolha de dados específicos por Steven Johnson para provar sua tese, Jake Silverstein disse: “Recuso por completo a ideia de dados escolhidos a dedo. Escolher a dedo implica que um fato não-representativo foi usado, um desvio que não reflete o predomínio de dados sobre determinado assunto, mas que torna um argumento mais dramático e intenso. Na realidade, tanto Steven Johnson quanto nossos verificadores de fatos revisaram cuidadosamente todos os dados a que conseguiram ter acesso e escolheram o número que levaria seu caso a ser mais moderado, ou menos dramático.” A matéria não se dispunha a provar uma conclusão pré-estabelecida, disse ele, mas mergulhava nos dados disponíveis e convidava o leitor a explorá-los.

Mesmo assim, Jake Silverstein reconheceu que matérias que se baseiam na análise e filtragem de dados representam desafios.

Os dados parecem ser a coisa mais útil (mais empregada?) quando são usados para rejeitar ou confirmar paradigmas, como nos mostrou o economista Alan Blinder em 2014…

Uma coisa muito importante é a seguinte: se você vai escrever um artigo baseado na análise e filtragem de dados, você deve certificar-se que suas definições são expostas de maneira clara e…

Eu ficaria curioso para saber como a sua organização vem adotando uma posição ligeiramente diferenciada sobre a Amazon. As condições de trabalho são “brutais”, mas Jeff Bezos…

“Acho que o perigo de matérias baseadas em números é que eles podem aparecer muito bem-cuidados, como se a complexidade e sujeira do mundo real pudesse ser reduzida a simples dados”, disse ele. “É por isso que publicamos uma combinação de matérias que visam a captar o mundo de várias maneiras. O jornalismo de análise e filtragem de dados é uma dessas maneiras e é útil, desde que estejamos conscientes de que ele não pode relatar uma matéria completa por si só. Sempre existirá uma enorme porção de complexidade e heterogeneidade num conjunto de dados.”

Uma estimativa mais próxima da verdade

Também conversei sobre isto com Alex Howard, professor no Tow Center for Digital Journalism, na Columbia University, que escreveu The Art and Science of Data-Driven Journalism. “Acho que todos nós estamos procurando a verdade e a defesa é que ela está, em algum lugar, nos números.”

Howard reconhece sua própria parcialidade em relação a essa maneira de pensar – e não em relação ao estilo tradicional de narrativa-jornalismo – mas também reconhece que os dados nem sempre são confiáveis – assim como não é a maneira pela qual os jornalistas, às vezes, os interpretam. (Exemplos de como podem resultar em erro, destacou, podem ser encontrados no site wtfviz.net.) “O que pode transformar os dados num jornalismo sadio”, disse ele, “é o contexto, junto com a verificação e checagem de fatos.”

Alex Howard também acredita em consultar especialistas que ajudem a interpretar os dados ou detectem suas falhas. Matérias sobre mudanças climáticas ou sobre a importância das vacinas são lugares em que se usam dados, mas nem sempre para bons resultados, diz ele. Ele também é um enérgico defensor de que as organizações jornalísticas compartilhem os dados originais, de maneira a que os leitores possam fuçá-los e talvez desafiar as conclusões. Como de costume, a transparência vai longe.

Matérias de narrativa, fortalecidas por relatos leves e reportagens de sola-de-sapato não vão sumir, nem deveriam. E a abordagem de análise e filtragem de dados também chegou para ficar. Uma combinação das duas – quando possível – pode ser o melhor dos mundos, trazendo os leitores a uma estimativa mais próxima da verdade.

Uma correção: é apropriado incluir aqui meu próprio passo em falso. Em minha última coluna, escrevi que o orçamento de 300 milhões de dólares para a redação do Times havia subido 50% desde os 200 milhões de 2008. Embora os números aproximados sejam corretos, o método contábil mudou. O aumento percentual não deveria ter sido incluído.

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Margaret Sullivan é ombudsman do jornal The New York Times