Desta vez, os porteiros das redações se questionaram e vacilaram antes de postar a arrasadora foto, a última que se fez do menino Aylan Kurdi.
Hesitação decente, conscienciosa: ao postar, publicar ou inserir fatos ou fotos o jornalista deve formular ao menos uma pergunta: estou contribuindo para melhorar a humanidade?
A resposta afirmativa, unânime, e a forte comoção que sacudiu o mundo segundos depois, interrompeu o rotineiro kit de perguntas que carregamos vida afora para satisfazer a ânsia de saber. Como ocorre com frequência, o sobrenome da criança sugeria um patronímico, mas a identidade síria do pai encerrou prematuramente uma pesquisa que revelaria tragédia infinitamente maior: nacionalidades podem ser tão funestas quanto prisões, exílios, desterros. Basta serem impostas pela força. Compulsórias.
O velho ideal da autodeterminação continua privilégio de poucas etnias e povos. Privados do direito a um pertencimento nacional, atrelados a passados, culturas, idiomas e crenças alheias, geralmente antagônicas e arbitrárias, ter uma pátria ainda é um luxo.
A Síria é uma nacionalidade num país que se extingue: os Kurdi, originários do território que no passado chamava-se Curdistão, estão sendo defendidos dos massacres promovidos pelo Estado Islâmico apenas pelos curdos iraquianos.
Somam hoje cerca de 35 milhões (a quarta maior etnia asiática) espalhados pela Turquia (a maioria), Iraque, Irã, Síria, Armênia e Geórgia. No Ocidente vivem 2 milhões de curdos, metade deles na Alemanha, o resto nos EUA, Canadá e Austrália. Na Grande Guerra de 1914-1918 os curdos lutaram bravamente contra o império otomano, em troca receberam a promessa de um estado independente nunca materializado.
Perseguidos implacavelmente por Saddam Hussein, em seguida à sua derrubada e com o apoio americano, os curdos iraquianos conseguiram estabelecer na fronteira com a Turquia, cercanias de Kirkurk, uma região próspera, organizada e algo autônoma – a primeira em sua atribulada história – e por isso tratada com visível hostilidade pela Turquia e nenhuma complacência da Síria e Irã, todos igualmente temerosos do mesmo fantasma: uma possível Federação Curda com algumas dezenas de milhões habitantes, mais tolerante, menos tirânica e fanática do que o universo em volta.
Junto com a etnia yazidi com a qual tem fortes vínculos culturais e religiosos, os curdos são os alvos prediletos do Estado Islâmico. Quem defendeu Kobani — a cidade onde há três anos nasceu e agora foi sepultado o menino Aylan Kurdi — das milícias do Estado Islâmico não foi a combalida e decadente Síria.
Seria trabalhoso entregar-se à curiosidade em torno do sobrenome do menino que morreu na praia. O jornalismo contemporâneo prefere enredos mais simples, sem tantas vinculações e desdobramentos, compactos, retilíneos, sobretudo assimiláveis. Contar a história e a tragédia dos Kurdi e dos curdos daria muito trabalho aos novos porteiros das redações.
“Quem afogou Aylan Kurdi, o curdo?” é uma provocação complicada, penosa. Escancara um rol de injustiças que o mundo contemporâneo — superinformado, invulnerável à dor, por isso volátil — não tem ânimo nem paciência para conhecer.
Melhor fingir que o menino curdo era sírio. Factóides são mais fáceis de publicar e entender.
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Alberto Dines é jornalista e fundador do Observatório da Imprensa.