Outro dia, numa rede social, alguém postou: “Quando leio um jornal, não quero saber a opinião do jornalista: só quero saber da notícia.” Rebati no ato: “Ao contrário, eu quero, sim, saber a opinião do jornalista!” E de outras pessoas. E a notícia também, por que não?
É que a minha opinião só se forma a partir do fato noticiado e da ponderação de todas as opiniões a respeito dele a que eu tiver acesso. E isso não significa que tenho que concordar necessariamente com a opinião de nenhum jornalista ou de quem quer que emita sua opinião. Como ninguém precisa concordar com o meu ponto de vista. Basta respeitar.
Está na essência da democracia, da tolerância e da convivência a pluralidade de ideias e o respeito à diversidade. Cada cabeça, uma sentença, diz a sabedoria popular. E somos cerca de sete bilhões de cabeças no mundo – 204 milhões delas só no Brasil. Por que deveria achar que a minha opinião é mais importante ou a única correta e que deveria ser seguida por todos?
Muita presunção.
Como é presunçoso e arrogante achar que a opinião alheia também seria irrelevante ou descartável. Como é injusto e antidemocrático vetar ao jornalista o direito de emitir juízo próprio. Como é ingênuo imaginar que toda notícia é isenta de manipulação por quem a publica.
Telefone sem fio
Sim, nenhuma notícia é a total expressão da verdade sobre um fato. Os livros de História estão aí, para comprovar isso. Entre o fato acontecido, o testemunho do fato, seu registro ou relato e sua chegada ao conhecimento do leitor ou espectador final, muita coisa é editada e se transforma, como aquela clássica brincadeira de telefone sem fio. Vamos a exemplos:
– Um repórter de TV grava meia hora de entrevista com uma personalidade qualquer. No telejornal da noite, a entrevista que vai ao ar não dura mais que 15 segundos.
– Um fotógrafo faz mais de 100 fotos durante a cobertura de uma partida de futebol. Na manhã seguinte, o jornal publica uma.
– Um portal de notícias publica em sua capa cerca de 80 chamadas para notícias diversas, de política, esporte, cultura, comportamento, finanças, tecnologia etc. Entre elas, uma chamada com foto dizendo que a pseudocelebridade Tal foi flagrada exibindo seu corpão na praia, no dia anterior.
– O depoimento do ex-ministro sobre a crise econômica – que levou um dia inteiro para ser negociada pela produção do telejornal e incluída em sua apertada agenda – foi resumido a uma única frase, pinçada de meia hora de gravação bruta. Além disso, foi inserido em uma matéria de 48 segundos, na qual o repórter incluiu ainda uma fala do ministro atual, de um economista independente e de uma dona de casa num supermercado.
Para o leitor que buscava apenas saber os detalhes do gol da vitória do seu time no jogo da véspera, o que ele viu, ao abrir o jornal, foi a foto da briga entre torcidas nas arquibancadas do estádio, em que morreu um inocente torcedor atingido na cabeça por um vaso sanitário e que, para o editor de esportes do jornal, foi o fato mais importante da partida.
O corpão exposto da ex-BBB na praia – como se “corpão” não fosse arroz de festa em qualquer praia brasileira – foi considerado pelo editor como algo digno de nota e chamada no portal, ainda que isso não tenha a menor relevância para milhões de leitores que, como eu, não curtem corpões ou celebridades instantâneas. (Mas o editor gosta e sabe que há outros milhões que pensam como ele e irão clicar no link só para ver a peladona famosa.)
O que há em comum em tudo isso? Todas essas informações foram, em alguma medida, editadas – ou manipuladas – antes de serem publicadas, segundo conveniências, gostos e convicções pessoais, limitações de tempo ou espaço e, mesmo, interesses insabidos.
Então – tirando-se a suposta ingenuidade de quem possa julgar que toda notícia publicada é isenta por si própria –, o que move alguém a querer desancar a legítima opinião de um jornalista?
Educação, diversidade e pluralidade de ideias
De uns tempos para cá – mais precisamente com a profusão das redes sociais – muita gente achou confortável e oportuno culpar a chamada “grande mídia” pela mazelas do mundo. Cada um, com seu smartphone e pau de selfie na mão, julgando-se a única e confiável “testemunha ocular da História”, passou a divulgar pela internet a sua “isenta” versão dos acontecimentos.
“Pau que dá em Chico, dá em Francisco”, entretanto.
Nada é isento, nas redes sociais. Se a grande mídia é acusada de conivência com governos (a quem deve impostos), subserviência ao poder econômico (que a patrocina) ou de favorecer este ou aquele partido político (visando a possíveis benesses pós-eleitorais), não se pode acreditar que as mídias chamadas “livres” também não tenham rabo preso, quer seja com ideologias e projetos próprios de poder, ou com grupos econômicos que as financiam subrepticiamente.
Num passado não muito distante, tivemos no país um fenômeno similar, embora guarde muitas diferenças. Na década de 1970, tivemos no país o surgimento de vários jornais independentes, de clara oposição à ditadura em que vivíamos. A maior parte deles era em formato tabloide, o que os destacava dos jornalões tradicionais e que os levou a serem conhecidos como “imprensa nanica”.
Naquele tempo, contudo, mesmo os jornalões, em sua maioria, eram contrários ao governo militar e eram recorrentemente perseguidos pela censura e pela prisão, tortura e morte de seus jornalistas. Havia também pressão e intimidação contra anunciantes, para que não veiculassem publicidade nesses veículos. Os “nanicos”, por seu lado, sobreviviam à custa de exemplares vendidos, não dependiam de anunciantes (não que não o desejassem, claro), ou teriam sido financiados pelo fabuloso “ouro de Moscou”. O fato é que a maioria se autopublicava na marra, sob risco de morte de seus editores e colaboradores, de apreensão de tiragens antes de chegarem às bancas, e de empastelamento de suas gráficas e redações. Tempos de coragem e medo, muito medo.
Mas hoje, a coragem de quem ataca a “grande mídia” reside no território sem lei das redes sociais, em que qualquer um se julga o herói da notícia e o dono da verdade. Abrigados no conforto e segurança do mundo virtual, franco-atiradores miram em quem não compartilha sua opinião e interesses próprios e, nessa batalha insana e míope, elegeram jornais e redes de TV como alvo principal – quando não, sua própria razão de viver.
Ao contrário do que pensam (pensam?), essa demonização da mídia tira o foco dos nossos reais problemas e canaliza para uma questão menor (não desprezível, porém) a energia e os esforços necessários para se mudar verdadeiramente o país. Mudança que só virá com a priorização de uma educação de qualidade, que forme cidadão críticos, tolerantes com a diversidade e pluralidade de ideias, e impossíveis de serem manipulados pela mídia – seja ela de que tamanho for.
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José Carlos Aragão é escritor, dramaturgo e cartunista