O título deste artigo alude ao poema de Drummond, trazendo em si a ironia do nome daquela que aplicou uma rasteira num migrante que tencionava atravessar as fronteiras da Hungria. O prenome da jornalista que fazia a cobertura da migração é Petra – um nome que vem do grego petrós, e quer dizer “pedra” – feminino de Pedro, o mesmo nome daquele discípulo que Cristo havia dito que seria a pedra sobre a qual edificaria a sua Igreja. Mas aqui a “pedra” de Laszlo é apenas pedra de tropeço, lançada enquanto trabalhava a serviço da imprensa.
A cena, que foi amplamente veiculada, possui pelo menos dois ângulos: um é o de Petra Laszlo, observando o migrante com uma criança no colo, fugindo do policial; o outro é o ângulo de outro jornalista, observando aquela que observava a fuga desesperada de um homem. Nas mãos de Petra estão as lentes que focam a fuga; por outro lado, sobre as mãos do outro jornalista estão as lentes que enquadram, não somente as “mãos” de Petra focando o evento da migração, mas também o gesto sub-reptício de seus “pés” que derrubam. O jornalista que enquadra Petra observa a observação de uma certa imprensa, e com mestria, num só lance, reúne o sentido manifesto e o sentido oculto: mãos que retratam e pés que detratam.
Há quem postule a chamada “neutralidade” da imprensa, e não são poucos. Faltam aos impolutos que ainda habitam o Éden do jornalismo a pureza e a coragem do jornalista que, ao focar a rasteira de Petra Laszlo, aplica uma rasteira na noção de “neutralidade” jornalística e, por conseguinte, em si mesmo, por ser ele partícipe de um corpo jornalístico. Aliás, a atitude de Laszlo é a cristalização da ideia de que o jornalismo é neutro. Explico. Pode parecer que não, uma vez que, sem receios, ela milita politicamente enquanto trabalha no ofício de jornalista. Mas aqui a nossa suspeita é de que o próprio ranço da “neutralidade” forjou a cena “bipolar”, pois seu ângulo de visão não alcançava os próprios pés, de modo que estaria resguardada pela neutralidade oferecida pela tecnologia da câmera filmadora.
Um ver jornalístico que se renova
Tecnicamente é possível a “neutralidade”, porém não humanamente. Ao creditar na tecnologia como a garantia da “neutralidade”, a repórter acabou esquecendo que os pés que derrubavam eram pés de barro: frágeis – demasiadamente humanos. A crença na “neutralidade” é o delírio de um salto para fora do fato, como o salto dos deuses para fora da história. O “calo”, a mania, o mau costume de Petra Laszlo, roubou seu espírito jornalístico, impossibilitando-a de ver realmente o dia que acontecia para além de seus caprichos pessoais. O mais desconcertante disso tudo é que aquilo que estamos chamando de cristalização da noção de “neutralidade” cegou seus olhos de repórter para o acontecimento e deu, por outro lado, azo para a liberação de suas idiossincrasias. Tecnicamente, a “neutralidade” é possível. No entanto, mais cedo ou mais tarde a noção de “neutralidade” tomará uma rasteira dessa dimensão humana ineludível.
Diante de uma certa imprensa, que não sabemos se tem espírito ou não, devemos fazer uma pergunta bem nietzschiana: o que quer o jornalista que “quer” isso – ou melhor: o que vê o jornalista que “vê” isso? Nunca vemos a “rasteira” imediatamente e, por isso, a tal pergunta nietzschiana se faz necessária, pois nem sempre teremos o auxílio das lentes de um outro ângulo.
Petra Laszlo talvez esteja agradecida pela “rasteira” que um colega lhe deu, pois agora, após a “queda” do cínico Éden da “neutralidade” jornalística, ela estará na possibilidade de adquirir a acuidade de um ver jornalístico que se renova aplicando, vez ou outra, rasteiras em si mesma.
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Eduardo da Silveira Campos é professor e doutorando em Filosofia