Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A promiscuidade com a cartolagem no jornalismo esportivo

selo_rev_jorn_espmDurante a abertura da transmissão da final da Liga dos Campeões entre Barcelona e Juventus, pela Rede Globo, em junho passado, o narrador Galvão Bueno fez um verdadeiro editorial sobre o escândalo que envolve a cartolagem do futebol no Brasil e no mundo, graças às investigações realizadas pelo FBI:

“Não podemos deixar passar em branco e nos esquecer, neste momento em que a gente vive muitas tristezas no mundo do futebol. Toda investigação é extremamente positiva e os culpados, sejam eles quais forem, têm que ser punidos exemplarmente. Tem que ser, sim, investigado tudo, e os responsáveis, fora e dentro do Brasil, têm que ser punidos”.

E o narrador finalizou: “Temos que ter a certeza de que a justiça será feita, pra você, torcedor, e para nós que transmitimos, para quem vai ao estádio, pra quem curte um espetáculo como esse. Que as investigações sejam sérias, profundas. Quem estiver limpo, fica limpo; quem estiver sujo, que pague pelos erros cometidos”.

Irretocável seria o desabafo não fosse por um detalhe absolutamente essencial: Galvão, apesar de nada ter a ver com a corrupção no futebol, sempre conviveu alegremente com alguns dos principais envolvidos no episódio, como o empresário e réu confesso J. Hawilla, dono da Traffic, a maior empresa de marketing esportivo da América Latina, e a mais corruptora também.

Se não bastasse, Galvão jamais economizou nas homenagens a João Havelange, o capo di tutti capi, e a Ricardo Teixeira. Galvão sempre poderá alegar que não sabia, como fazem os políticos em geral.

Mas jamais poderá negar que viveu promíscuamente com tais personagens, algo que jornalistas não devem se permitir nem com Jesus Cristo e seus 12 apóstolos.

Galvão Bueno não é exceção, ao contrário, e, diga-se, certamente nem percebeu como soou falso o desabafo/editorial para os que sabem como são suas relações com a superestrutura do poder do esporte brasileiro.

Embora soubesse que havia um terceiro tipo, Antônio Carlos Magalhães, o coronel baiano que por décadas infelicitou a cena brasileira, dizia que havia duas espécies de jornalistas: os que se vendem por dinheiro e os que são comprados com informação.

No jornalismo esportivo brasileiro não é diferente, embora, felizmente, seja cada vez maior o número dos que não se vendem nem por uma coisa nem por outra. Mas o que tem de “jornalista” que trabalha como garoto-propaganda é uma grandeza. E pouco importa se, também, de marcas que patrocinam, por exemplo, a CBF.

Perdida a virgindade para a publicidade, vale tudo, e a proximidade com os poderosos passa a ser justificada como busca de notícia – só publicada, porém, se a favor ou, ao menos, se neutra em relação aos poderosos.

Numa área em que a informação e a emoção se confundem, nada parece inaceitável.  Estar bem com o presidente do clube campeão é mais de meio caminho andado para obter privilégios na hora da festa, sempre em nome do telespectador.

Sim, do telespectador!

O uso aqui não é por acaso nem serve como sinônimo de leitor ou internauta, embora possa servir como de ouvinte.

Porque tamanha promiscuidade é marca registrada da TV aberta brasileira e da maioria das emissoras de rádio, enquanto os jornalões e seus portais guardam distância de tais práticas.

É constrangedor ver – como se viu no escândalo que abalou a Fifa, e pôs na cadeia o ex-presidente da CBF José Maria Marin, na TV nacional –, gente que até trabalhou para a Fifa, como membro de seu staff de jornalistas em Copas do Mundo, fazendo cara de paisagem .

Fariam bem nossos jornalistas se aprendessem com a sabedoria mineira e jamais ficassem tão próximos dos poderosos que não pudessem deles se afastar ou tão distantes que não conseguissem se aproximar – mas apenas para se informar.

É de fato um exercício difícil, mais fácil de enunciar do que de praticar, mas que deve ser buscado permanentemente.

Impossível dizer quais serão as consequências finais das investigações do FBI e quantos grupos de mídia serão atropelados por elas.

Sejam eles quais forem, espera-se que tenham aprendido uma lição elementar: atropelar a ética em troca da exclusividade de eventos pode custar caro não apenas ao bolso, mas à credibilidade de quem negocia com mafiosos.

Igualmente, fugir da responsabilidade de informar sobre os bastidores do esporte e inventar uma fórmula em que o entretenimento se sobrepõe à informação tem um preço que, cedo ou tarde, o telespectador cobrará.

A “leifertização” da cobertura esportiva, em que a gracinha ocupa o espaço da notícia, é a maneira mais cômoda de evitar problemas com os sócios no negócio das transmissões, mas a mais rápida para perder a credibilidade perante o telespectador inteligente.

Separar o evento do jornalismo, a transmissão do jogo do noticiário, é o caminho que as redes sérias de TV pelo mundo afora encontraram – e não é de hoje.

A compra de um evento não transforma, ou não deve transformar, o comprador em sócio do vendedor.

Essa foi a confusão que, no Brasil, transformou J. Hawilla no arquivo vivo que hoje assombra, além da cartolagem do futebol, a mídia nacional, e seus ex-sócios nos mais diferentes setores de atividades espúrias.

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Juca Kfouri é colunista da Folha de S.Paulo e está também na ESPN-Brasil. Foi diretor das revistas Placar e Playboy, comentarista esportivo do SBT e da Rede Globo. Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, e apresentou o Bola na Rede, na Rede TV, e o Juca Kfouri ao Vivo, na Rede CNT.