Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lições do abismo

Cada geração tem direito a um grande erro — desde que não seja o mesmo. Tudo o que nos perturba neste momento já aconteceu antes, já foi experimentado, visto, revisto com pequenas diferenças. Nossa desgraça é a incapacidade de processar as mutações da realidade e assim reconhecer as referências com a rapidez necessária para acionar os alarmes. Por default, embarcamos num sonambulismo protetor, confortável, como se fôssemos neófitos.

Não somos: as atuais turbulências já se manifestaram com arranjos assemelhados em inúmeras ocasiões no passado recente, mas os aplicativos utilizados parecem descalibrados.

A atual conflagração é abrangente, endógena, múltipla e multipolar: temos guerras com diferentes intensidades em diferentes partes do mundo, as recessões não se limitam à América do Sul, nem apenas às economias emergentes. A visível recuperação norte-americana pode ser abalada pelas vacilações chinesas ou pelos desdobramentos da campanha eleitoral em 2016.

A catástrofe dos refugiados parece ter sido apontada intencionalmente para os pontos mais vulneráveis da União Europeia: os Bálcãs (há dois séculos convertidos em sinônimo de fragmentação e xenofobia) e os parceiros da antiga Cortina de Ferro sem grande apego à democracia, ao humanismo, por isso mais suscetíveis às tentações totalitárias.

Não esqueçamos que a Hungria, atual vilã na tragédia dos refugiados, só foi “invadida” pelos nazistas nos momentos finais da 2ª Guerra Mundial, até então parceira de suas barbaridades. A cada lance deste novo êxodo num continente que sonhava acabar com guerras e fronteiras, ficam visíveis as semelhanças com as expulsões no Leste Europeu pré-1939 e o extermínio perpetrado em seguida. Antes as vítimas foram os ciganos e os judeus, agora são os curdos, yazidis e outras minorias étnicas abominadas tanto pelos fundamentalistas islâmicos como por países com pretensões hegemônicas regionais como a Turquia.

No entrelaçamento de complexidades, por ironia, a distração maior relaciona-se com nossa irreprimível atração pelo abismo. Convivemos com ele sem saber identifica-lo. Marcados pela sucessão de golpes castrenses desde a implantação da República e, sobretudo, pelo horror à ditadura militar, imaginamos que a inexistência de fantasmas fardados retira da atual situação qualquer periculosidade.

Nunca demos a necessária atenção ao fascismo: com as bênçãos de seculares tradições esquecemos a força maléfica da Ação Integralista Brasileira, seu papel na proclamação do Estado Novo, sua tentativa de golpe no ano seguinte e, mais tarde, na sustentação da paranoia militar. Não percebemos que a maior aposta fascista reside no desgaste das instituições democráticas decorrente da intensa polarização política. Um regime atordoado, dominado pelo sectarismo e associado a um projeto de poder enferrujado é o caldo de cultura ideal para um neototalitarismo conservador com seus irresistíveis apelos à ordem e bons costumes.

A onda fascista atual, ao contrário da anterior de meados do século passado, espalha-se pelo mundo, personificada por figuras bem-sucedidas como o bilionário Donald Trump, a família francesa Le Pen, a revelação de estadista, o húngaro Victor Orban. Gente “normal”, aparentemente confiável, bem-falante, crente, sem exibir aberrações demoníacas de Adolf Hitler e Benito Mussolini.

Anestesiados pela incrível sucessão de sustos e emoções, não distinguimos a beira do abismo. Na era da informação não podemos alegar falta de conhecimento. Mas ela é uma realidade. Jornais esquálidos, telejornais alienados, percepções embotadas oferecem reprises, remakes e um indisfarçável bocejo de tédio que corre o risco de ser derradeiro.

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Alberto Dines é jornalista, escritor e fundador do Observatório da Imprensa