Para o jornalista Elio Gaspari, o mundo só começou a encarar o Holocausto a partir dos anos 1960, com o julgamento público de Adolf Eichmann em Israel. De fato, a captura do oficial nazista em Buenos Aires por um comando israelense, seu transporte clandestino para Tel Aviv e as audiências na Suprema Corte em Jerusalém renderam milhares de reportagens, centenas de livros e ensaios, questionamentos políticos, filmes e documentários.
Entretanto, essa revelação histórica – a do mais brutal massacre institucional de cidadãos promovido por um governo em solo europeu – poderia ter sido antecipada e exibida ao mundo 15 anos antes, ainda em 1945, caso as autoridades britânicas e americanas não tivessem arquivado em uma repartição pública militar os cinco cilindros de filme que registraram em tempo real o horror dos campos de concentração alemães.
Uma decisão jamais discutida, em qualquer tempo, pelos meios de comunicação, pesquisadores, intelectuais e organizações sociais a quem caberia, ao menos, uma palavra de indignação diante do ocorrido.
Cenário macabro
A filmagem feita por cinegrafistas do exército aliado acompanha a libertação de onze campos de concentração nazistas – de um total de 1.094 já documentados – a partir de abril de 1945. Entre eles os campos de Bergen-Belsen, com 70 mil mortos (onde Anne Frank morreu), Majdanek (80 mil), Dachau (30 mil) Buchenwald (56 mil), Ebensee (20 mil), Matthausen (150 mil) e Auschwitz-Birkenau (1,1 milhão).
As imagens aéreas mostram vastas planícies ocupadas por fileiras de barracões cercadas por arame farpado e guaritas. No solo, cadáveres sem roupa se misturam aos doentes e moribundos que agonizam sob a indiferença daqueles que ainda reúnem forças para disputar algum resto de comida. Um cenário macabro onde proliferam a imundície, as epidemias e a fome.
O filme também mostra as equipes nazistas – homens e mulheres – que atuavam nos campos da morte. Sob a ordem do exército aliado, esses soldados alemães cavam imensos buracos onde são jogados os milhares de cadáveres que jazem insepultos. Todos esquálidos e desnudos. O material, catalogado sob a inscrição F3080, permaneceu abandonado nas prateleiras de um departamento do antigo ministério da Guerra (hoje, ministério da Defesa) e em 1952 foi transferido para o “Imperial War Museum” – IWM que o registrou sob o título de “Memory of the Camps” (Memória dos Campos). Ali ficou enterrado e esquecido por décadas.
Culpa coletiva
Planejado para ser um documento histórico e didático que funcionaria como uma prova real da existência dos campos e das práticas abomináveis exercidas pelo regime nazista, o projeto do comando aliado ficou sob a responsabilidade de Sidney Bernstein (1899-1993), chefe da seção de cinema da divisão de Informação britânica, que chamou Richard Crossman para ajudá-lo no roteiro. Crossman foi um dos primeiros oficiais britânicos a pisarem no campo de Dachau e posteriormente entrou para a política, tornando-se líder do Partido Trabalhista e ministro do Trabalho. Com apoio dos colegas do serviço americano de informação, Bernstein recrutou ainda o diretor de cinema Alfred Hitchcock (1899-1980), que trabalhava em Hollywood, para supervisionar o documentário.
Mas, em 9 de julho de 1945, menos de três meses após o início efetivo do projeto, os americanos retiram a sua participação no filme. Em setembro de 1945, com o documentário inacabado, as autoridades britânicas resolvem interromper o trabalho. O comando militar, àquela altura, estava empenhado em melhorar as relações anglo-germânicas, conter uma possível expansão soviética e não dar publicidade à vitimização dos judeus que lutavam por uma pátria na terra de Israel sob mandato britânico. A exibição do filme iria incutir uma culpa coletiva sobre a população alemã, o que segundo as autoridades aliadas aumentaria ainda mais o caos e a desmoralização de uma nação derrotada.
Nas imagens engavetadas, moradores das cidades e vilas próximas aos campos, convocados pelo exército aliado, visitam esses locais em plena efervescência de uma indescritível e absurda tragédia humana. As câmeras registram o constrangimento e a aparente vergonha dos alemães diante daquela multidão de seres desfigurados, reduzidos ao nível mais baixo de miséria e humilhação. Um pesadelo inimaginável que se sucedia a poucos quilômetros de suas casas, sem que ninguém soltasse um suspiro de misericórdia. Vizinhos das indústrias da morte, os moradores são forçados a encarar, naquela primavera de 1945, a máquina genocida que amparada na indiferença e pouco caso de seus cidadãos exterminou milhões de crianças, idosos e cidadãos civis inocentes.
O historiador Geoffrey Megargee, do Museu do Holocausto de Washington, afirma que de 1933 a 1945 o regime nazista implantou uma rede de trabalho escravo que funcionou em 42.500 locais na Alemanha e nos países ocupados. Foram 1.094 campos de concentração e 1.150 guetos, além de milhares de fábricas e outros centros de trabalho forçado, de tortura e de morte.
O mapeamento e o censo completo desses locais irão compor uma enciclopédia que deverá estar concluída nos próximos anos. “A existência de campos de concentração não era segredo e dada a dimensão dos números é quase impossível acreditar que os alemães não tinham conhecimento do sistema de matança de Hitler”, avalia o pesquisador. “Quando você tem dezenas de milhares de acampamentos e milhões de trabalhadores forçados, prisioneiros de guerra e prisioneiros de campos de concentração em todos os lugares, todos fazendo todo o tipo de trabalho que se possa imaginar, é muito difícil dizer que você não sabia de nada desse sistema”, completa.
Exibição na TV
Em 7 de maio de 1985, após 40 anos de um esquecimento premeditado e moralmente injustificável, o documentário em estado bruto é apresentado na TV americana. Pesquisadores do premiado programa de jornalismo investigativo Frontline – focado em temas políticos e internacionais – haviam encontrado em um cofre do IWM, em Londres, os cinco cilindros de filme e mais um rolo sem data, com imagens não editadas, um roteiro datilografado para narração e uma lista de termos que corresponderia às imagens editadas (um sexto carretel de filme que mostrava a libertação dos campos de Auschwitz e Majdanek teria sido levado para Moscou por cinegrafistas soviéticos).
O ator britânico Trevor Howard (1913-1988) é escalado para a narração das imagens que se mantém fiel ao roteiro original. Com o mesmo título registrado pelo museu, Memory of the Camps é exibido pelo canal aberto PBS (Public Broadcasting Service), dos Estados Unidos, uma emissora pública voltada para programas culturais e educativos.
Acerca do filme, um dos cinegrafistas responsáveis pelas imagens chocantes registradas no campo de Bergen-Belsen foi o sargento do exército britânico Mike Lewis, que não tinha ideia do que iria encontrar naquela tarde de 15 de abril de 1945 ao cruzar os portões do campo recém-libertado. Tinham dito que ele iria filmar um acampamento de prisioneiros, de criminosos. Anos depois, sua filha, Helen, conta a saga do pai: “Ele entrou pelos portões de arame farpado e deparou com um terreno baldio cheio de corpos de pessoas mortas, em sua maioria despidas, ao lado de outras morrendo de fome. Eram em torno de 10 mil pessoas que jaziam insepultas e outras 13 mil que morriam de desnutrição e doenças.”
Helen Lewis diz que seu pai permaneceu por 10 dias filmando no campo de Belsen, apesar da epidemia de tifo que assustava a todos. “Foi um trabalho de registro histórico que inclusive foi usado em um dos primeiros julgamentos de crimes de guerra.” De fato, cenas do documentário foram apresentadas como prova documental no julgamento de Josef Kramer, o chefe do campo de Bergen-Belsen, cuja imagem está presente no filme. Conhecido como “a besta de Belsen”, Kramer também foi responsável pelo controle das câmaras de gás de Auschwitz. Ele foi condenado por uma corte militar britânica e enforcado em 13 de dezembro de 1945.
Em Berlim
Um ano antes, em 1984, por ocasião do 34º Festival de Cinema de Berlim, as imagens de Memory of the Camps foram mostradas à parte da competição oficial. O documentário sem som foi precedido pela leitura do texto dos editores originais. Após os 60 minutos de filme houve um debate acompanhado pela rede americana de TV NBC (National Broadcasting Company). O tema abordava a possibilidade de exibição do documentário em toda a Alemanha Ocidental (o muro de Berlim que separava as duas Alemanhas – a Oriental sob o governo soviético e a Ocidental, alinhada com os Estados Unidos – só foi derrubado em novembro de 1989). Porém, o assunto não foi adiante em termos práticos e os debatedores e a plateia se mostraram evasivos.
O crítico de cinema Harlan Kennedy, que escrevia para a revista americana Film Comment e estava presente ao encontro, comentou que o único traço de realidade sobre o que acontecia no país na época em relação ao Holocausto veio através da observação de um estudante. “Ele disse que nunca se falava sobre essas atrocidades na escola. E que havia participado de uma visita com seus colegas a Bergen-Belsen, mas a história e o horror do lugar foram apresentados de forma bem abreviada. Disse ainda que nunca tinha visto nada parecido com as imagens do filme, o que fez o mediador local pular da cadeira e justificar que não havia esse tipo de material disponível na Alemanha.”
Imagens digitalizadas
Em 2015, três décadas após essas apresentações que tiveram divulgação restrita, o governo britânico resolve marcar os 70 anos da libertação dos campos nazistas e o fim da II Grande Guerra (1939-1945) com o documentário recuperado sob o título original: German Concentrations Camps Factual Survey (Inspeção local dos campos de concentração alemães, em tradução livre). Pesquisadores do IWM, onde o filme esteve abandonado por mais de 60 anos, se empenharam no processo de digitalização das imagens e de outros acabamentos, como a inclusão de som e áudio e a reabilitação do rolo dado como perdido.
Contudo, permanece a estranheza sobre a decisão das forças aliadas de desistirem de concluir o documentário, em 1945, e deixá-lo enterrado por tanto tempo, longe do olhar e da consciência do mundo. A filha de Sidney Bernstein, o idealizador do filme, revelou em entrevista ao jornal israelense Haaretz, que não tinha conhecimento da existência do material até 1984, quando as imagens foram liberadas em estado bruto. Cineasta e autora de dezenas de curtas-metragens, Jane Wells confessou que foi uma surpresa completa saber que o pai esteve em Bergen-Belsen. Realmente, Bernstein, impressionado com o pavoroso relato do correspondente britânico da rádio BBC Richard Dimbleby, sobre o campo de Belsen, foi ao local e decidiu retratar os crimes dos nazistas de tal maneira que seria impossível alguém negar que aquilo existiu.
Em 1984, aos 85 anos, Bernstein lamentou que o documentário não se concluísse. “Minhas instruções eram para filmar tudo, o que provaria que realmente aquilo aconteceu. Eu queria provar que tinha visto porque a maioria das pessoas iria negar.” Sobre a presença de Hitchcock no filme, acredita-se que foi importante para delinear o roteiro, enfatizando quão perto estavam os campos de concentração das aldeias e cidades, onde civis alemães viveram durante a guerra. O cineasta queria planos longos, sem cortes, para que o documentário transmitisse credibilidade e assim se tornar irrefutável a possíveis controvérsias quanto ao extermínio sistemático de milhões de pessoas naquelas fábricas de mortes.
Memory é tema de filme
Ressuscitado da censura e do ostracismo, o documentário de 1945 agora está sendo apresentado em museus e centros de cultura a uma geração que na maioria das vezes dá de ombros para o que aconteceu porque não houve um processo sistemático de conscientização coletiva sobre o tema que ficou restrito às teias literárias, memoriais e artísticas. Mas, ainda assim suas imagens surpreendem pelo extremo nível de desumanidade e a brutalidade que registram.
Ciente e sensibilizado pelo trabalho de restauração do documentário, o antropólogo e documentarista inglês Andre Singer partiu para a realização de um filme tendo como base o Memory of the Camps. Autor de documentários premiados de TV e ex-diretor do Discovery Channel na Europa, Singer revive a história de alguns sobreviventes, apresentando imagens do filme original, depoimentos de soldados e cinegrafistas que estiveram nos campos, e a visão de Bernstein e Hitchcock. Apresentado no Festival de Berlim em 2014, o filme Night Will Fall (em alusão à citação do roteiro original: “A menos que o mundo aprenda a lição que essas imagens ensinam, a noite vai cair”) foi exibido na TV, no início de 2015, em mais de 15 países, durante a semana de celebração do Dia Internacional do Holocausto (27 de janeiro).
Na Alemanha, onde o filme teve estreia mundial, o historiador Heinrich August Winkler admitiu que “o Holocausto é o fato central da história alemã do século 20”. Também afirmou que a população da Alemanha levou muitas décadas para reconhecer o Holocausto e que não se pode colocar um ponto final diante desses acontecimentos. Professor emérito da Universidade Humboldt, de Berlim, ele discursou no parlamento alemão na cerimônia dos 70 anos do fim da Segunda Grande Guerra, em sessão especial realizada em 8 de maio de 2015. Falando para uma plateia de autoridades, o historiador lembrou que a ascensão política de Hitler foi o triunfo do mito sobre a razão e advertiu que a xenofobia e o antissemitismo atuais presentes na vida das sociedades alimentam e nutrem esses mitos, que na verdade nunca desapareceram. Continuam à espreita, esperando a sua hora para agir.
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Sheila Sacks é jornalista