Não raro, diretores de cinema somos fulminados por amigos e admiradores com a seguinte pergunta: praquê servimos se o produtor levantou o dinheiro, o roteiro foi escrito por alguém do ramo, o ator decora seu papel, o diretor de fotografia consulta o fotômetro, se o operador da câmara sabe do foco, assim como os diretores de arte, cenógrafos, figurinistas, etc., que se orientam por esse azimute literário que é o roteiro, o que fazemos nós antes, durante e depois das filmagens? É que sem diretor não tem filme, telenovela, minissérie, documentário ou animação!
Arremato com outra questão lapidar: como sobrevivem os cineastas e diretores do audiovisual quando não filmam, quando não se autoproduzem, – uma situação comum no cinema brasileiro, onde muitas vezes somos igualmente produtor e diretor, ou, quando por razões que fogem ao nosso controle, os realizadores não logram levar à tela e às telinhas a concretude de seus projetos e sonhos? Ou seja, uma poderosa comunidade de criadores cuja sobrevivência está sempre ameaçada, como, também, a remuneração autoral por seus filmes. Essa imponderabilidade existencial e financeira está com seus dias contados.
Dignificar o papel do diretor de cinema e de televisão é a palavra de ordem que estimulou a fundação e, agora, o pleno funcionamento da DBCA – Diretores Brasileiros de Cinema e do Audiovisual.
Trata-se de entidade apoiada pelas mais prestigiosas congêneres internacionais da América Latina e da Europa que lutam pela proteção dos direitos autorais e, igualmente, proporcionam benefícios sociais a quem assina a obra audiovisual.
É a primeira vez no Brasil que uma associação, com recursos próprios, fruto da arrecadação de seus direitos autorais, e detentora de iniludível vocação de justiça moral e solidariedade para com seus pares, é criada para congregar todos os que militam na atividade, sejam jovens estreantes, sejam diretores construindo sua obra ou com filmografia consolidada.
Desde já, a DBCA se credencia como uma feliz coroação de generoso ideário formatado há quarenta anos quando, em 1975, no auditório da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, sob a liderança do mestre Nelson Pereira dos Santos e do inesquecível cineasta, Leon Hirszman, foi fundada a Abraci – Associação Brasileira de Cineastas, objetivando defender o direito autoral do diretor de cinema.
Para tanto, através de acordo com a distribuidora Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes, ficou acertado que 5% da renda dos filmes exibidos seriam recolhidos em benefício dos cineastas, pacto esse que cessou com a extinção da estatal em 1990 pelo governo Collor de Mello.
Mas os ideais de proteção dos direitos do autor audiovisual permaneceram. Em duas ocasiões, o tema voltou à baila, novamente, com Nelson Pereira dos Santos, e outra em 2005 por iniciativa de um conjunto de associações gremialistas.
Finalmente em 2014, integrantes da diretoria da Abraci retomaram o projeto original a partir de um convite da DAC (Directores Argentinos Cinematográficos), para conhecer a entidade em Buenos Aires, estimulando-os a criar a DBCA (Diretores Brasileiros de Cinema e do Audiovisual – Associação Geral de Diretores Autores Brasileiros).
Assim nascia a DBCA, cuja fundação ocorreu em abril próximo passado, aqui, na cidade do Rio de Janeiro, justamente, para realizar a gestão coletiva dos direitos autorais de diretores de cinema e do audiovisual no Brasil, bem como fomentar e manter um trabalho de assistência social para os seus afiliados.
Com o apoio de associações que já realizam a gestão coletiva em seus países, a DBCA vai promover institucionalmente a regulamentação da arrecadação e distribuição dos direitos relativos à comunicação ao público da obra audiovisual no marco da Lei 9610/98, a conhecida Lei dos Direitos Autorais. Ou seja, a exemplo do que ocorreu recentemente no Chile, tornar explícito em nossa Lei dos Direitos Autorais, que se encontra em fase de revisão, o direito de remuneração aos diretores de cinema e de televisão, a exemplo do que já se dá com os músicos, e também, com os atores e dubladores através dos chamados direitos conexos. É por essa isonomia, que nos aproxima dos próprios roteiristas, igualmente, órfãos dessa monetização de seus direitos autorais, que se balizará toda ação da DBCA.
No âmbito internacional, a DBCA está fechando acordos de reciprocidade com sociedades multinacionais de gestão filiadas à ADAL (Alianza de Directores Audiovisuales Latino-Americanos), como a citada DAC (Directores Argentinos Cinematográficos), a DASC (Directores Audiovisuales Sociedad Colombiana de Gestión), ATN (Sociedad de Autores Nacionales de Teatro, Cine e Audiovisuales/Chile), SOMEDIRE (Sociedad Mexicana de Directores, Realizadores de Obras Audiovisuales, Sociedad de Gestión Colectiva de Interés Público), e com as europeias, SACD (Société des Auteurs et Compositeurs Dramatiques, da França), Directors UK (reunindo cineastas da Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte), SGAE (Sociedad General de Autores y Editores e DAMA (Derechos de Autor de Medios Audiovisuales, ambas da Espanha). Organizações essas nucleadas em torno da CISAC (Confédération Internacionale des Sociétés d´Auteurs et Compositeurs), e a seu braço audiovisual, a W&DW (Writers and Directors Worldwide).
Hoje há cerca de dois milhões de autores membros ou que estão afiliados a entes como a nomeada CISAC, sociedade não governamental, fundada em 1926, com sede em Paris (França) e com quatro legações regionais (Hungria, Chile, Burkina Faso e China), reunindo 230 entidades de 120 países que tenham como escopo a gestão coletiva de direitos autorais.
A gestão coletiva de direitos permite aos titulares de direito autoral se organizarem em torno do objetivo comum de cobrar pela utilização de obras protegidas pelo direito autoral em todos os meios e plataformas capazes de exibi-las, reproduzi-las e transmiti-las, garantindo aos titulares o devido pagamento pelo uso do audiovisual com sua assinatura. Pois, o direito autoral é intransferível e irrenunciável, como se diz em linguagem jurídica. Inclusive, é cláusula pétrea inscrita na própria Declaração dos Direitos do Homem.
Cineastas, diretores de telenovelas, minisséries, documentários e filmes de animação brasileiros, constituímos uma ativa e altiva população congregando centenas de inventores, a maior da América Latina, com um mercado consumidor que ascende a 150 milhões de espectadores e telespectadores que, diuturnamente, nos assiste. Inalienáveis, legítimos e irrenunciáveis por lei, sim, direitos autorais é mercado no seu mais nobre sentido. Um não subsistiria sem o outro.
Daí que a crescente consciência, tanto moral quanto patrimonial dessa condição, como a própria Internet conflagrando as relações entre homens e seus feitos, estar provocando uma férrea defesa dos direitos do diretor, cujo espectro reivindicatório tornou-se planetário. Algo nunca antes tentado e agora a todo vapor na Europa, América Latina, Ásia, África e Oceania. Portanto, reconfigurar, de forma democrática, pacífica e solidária, o caráter predador da internet, é o fundamento central de emergentes sociedades de governança coletiva, nacionais e internacionais, encabeçadas pelos próprios fautores das obras, ou seja, ninguém melhor!
Nesta hora, ao tempo em que a DBCA se qualifica para arrecadar e distribuir esses incontornáveis rendimentos devidos pelas nossas obras junto aos usuários (os chamados, players) do Brasil e do exterior, sua missão social e humanitária se intensifica na mesma medida através de sua diretoria de Ação Social.
Quantos cineastas, jovens, maduros ou vividos, já recebemos angustiantes apelos pela vida e sobrevida de nossos colegas de fortuna e infortúnios? Parentes, porta-vozes ou os próprios, deprimidos, adoecidos, carentes de cuidados especiais, ou súplicas de esposas, companheiras e filhos/filhas, viúva(o)s e herdeiro(a)s, encarecendo ajuda e recursos, muitas vezes em forma de “vaquinha” para pagar despesas hospitalares e funeral (xô!).
Serão dela, da Ação Social da DBCA, os recursos específicos alocados para cuidar de quem está em atividade e para quem, por força da entressafra de projetos, desemprego, saúde debilitada ou idade avançada, teve que parar de trabalhar e/ou se aposentar São incentivos pecuniários permanentes que vão de subsídios a nascimentos, compra de remédios, jubilação complementar, internação hospitalar e pensão por viuvez, a empréstimos pessoais livre de juros, e planos de saúde integral, principalmente, visando nossos maiores que dão e deram sua vida e talento pela grandeza do cinema brasileiro.
Agora, com miríades de novas fruições tecnológicas surgindo a cada dia, urge criar um organismo nacional para blindar institucionalmente as nossas criaturas toda vez que elas faiscarem em qualquer superfície vertical e/ou horizontal. Assim, como fomentadores da DBCA, apoiados por expressivos setores da atividade, estamos mobilizados para preencher esse hiato civilizatório pela defesa e permanência da vida, tanto a nossa quanto a dos nossos rebentos audiovisuais.
São bens materiais embutindo e absorvendo bens imateriais que, pela sua natureza, se harmonizam pelo talento e expertise, pelo conhecimento e cultura, de seus criadores. Trata-se de um bem que tem autor e com respectivos proventos a receber pela sua consecução física e comunicação pública, e nas reprises a vir e no porvir. Sejamos cineastas, músicos ou roteiristas, essa autoria, única por vez, sempre impalpável até a finalização da obra, é o nosso único patrimônio, pois os fotogramas & frames, textos e pentagramas rodam e grudam no cotidiano como uma segunda pele, e deles depende nossa sobrevivência, digna e virtuosa. E, também, da própria vitalidade, abrangência e renovação da cultura, da arte e do entretenimento de um país.
A bem da verdade, quando imaginávamos que a internet seria o maná eletrônico da hora e do futuro, ela se oferece como um horrível ogro que nos surrupia imagens e sons com a melhor velocidade e na maior impunidade. Ostensivamente, graças à inércia poética pela qual transita a maioria dos criadores, pois seu destino é a invenção e não o vezo institucional e burocrático, a web profana a titularidade desse inestimável e interminável fluxo imagético que lhe aufere consistência, cingindo-se de lucros extraordinários. A ressaltar que ninguém é contra o lucro, mas, diabos! que tal democratizá-lo, hein? Como se o que a internet espraia, intensa e extensivamente, configurasse obra que remonta ao proverbial autor não nominado de antigamente, ou fruto de geração espontânea do laboratório do Dr. Papanatas.
Ao passar o rodo nos direitos de autor (no nosso caso, cite-se, de diretor), em quase todo o conteúdo de imagens e sons que lhe dá substância nos bilhões de acessos e, em sendo a existência e a maximização da internet irreversíveis, portanto, fulcro do próprio mercado e do negócio audiovisual em si, há que se encontrar mecanismos que remuneram, de forma justa e irretratável, ambos os protagonistas do evento, para que amanhã, tanto e tão grave quanto agora, não continuemos nessa inocente servidão voluntária de nuvens cada vez mais aziagas.
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Sylvio Back é diretor de cinema e presidente da DBCA
[1] A DBCA (Diretores Brasileiros de Cinema e Audiovisuais) é presidida por Sylvio Back tendo como vice-presidente Antonio Carlos da Fontoura; secretário geral, Ricardo Pinto e Silva e como tesoureiro, Guilherme de Almeida Prado. Também integram a diretoria, com mandato de tres anos, os seguintes nomes: Helena Solberg, José Joffily, Marcos Bernstein, Tetê Moraes, Miguel Faria Jr.,Murilo Salles, Nelson Hoineff, Oswaldo Caldeira e Walter Carvalho.